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It's a date: Giulio Scalisi

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Alberta Romano


It’s a date é uma rubrica da Contemporânea da autoria de Alberta Romano, dedicada a visitas a ateliês de artistas de Lisboa e de todo o mundo, tanto físicas como online.

 

Episódio 3: Giulio Scalisi

 

Lisboa > Milão, 13 de Dezembro, 2020

 

Li hoje a seguinte frase da Ursula Le Guin: “Tempos difíceis estão a chegar, tempos em que desejaremos que as vozes de escritores consigam ver alternativas ao modo como agora vivemos”.

Antes que pudéssemos sequer conceber a possibilidade de uma pandemia, os tempos em que vivíamos foram descritos como “interessantes”. Tornaram-se, depois, difíceis, frenéticos e praticamente insuportáveis. Por isso, se vivêssemos de acordo com as palavras de Le Guin, agora seria tempo para novas histórias, novos cenários que pudessem funcionar tanto como caminhos de fuga, como ferramentas para questionar as direcções que a nossa realidade tóxica possa tomar.

Giulio Scalisi trabalhou sempre com este objectivo, mesmo antes de descrevermos os nossos tempos como “interessantes”.

Conhecemo-nos pela primeira vez numa visita ao seu ateliê, em Outubro de 2016, e desde então que temos mantido um contacto muito próximo: fizemos férias juntos pelo menos duas vezes, ele participou em três das exposições de que fui curadora, fizemos o mesmo programa de residências na Calábria… e tenho um dos seus trabalhos tatuado no meu braço (ok, isto agora parece um pouco estranho). Dito isto, nunca íamos querer parecer pouco profissionais, e para esta visita virtual decidimos marcar uma hora para uma chamada de vídeo a sério.

 

— Olá amo, estás aí?

— Skype?

— Sim!

— Tenho o teu contacto no Skype?

— Hmm… espera… não tenho. Não, não, espera, já te encontrei. Disse-te "olá".

 

O encontro começou.

Antes de tudo, digo ao Giulio que durante a conversa vou fazer algumas capturas de ecrã, por isso passamos os primeiros cinco minutos a escolher os melhores e mais imersivos fundos de imagem (estes têm, porém, uma duração muito curta: ficaremos a saber em breve que além de nos envolverem em cenários soalheiros e brilhantes também conseguem absorver qualquer conteúdo que tentemos mostrar… que metáfora adequada para a nossa realidade mediada. Mais tarde ou mais cedo terei de a usar no início de um artigo e não apenas aleatoriamente entre parêntesis).

Enfim, começamos a nossa conversa real falando sobre videojogos que o Giulio está actualmente a jogar. Era de esperar que os videojogos viessem a ser um dos elementos centrais da nossa amizade. Uma das primeiras coisas que o Giulio me disse foi: “Eu gosto de poesia, videojogos e pilas”.

E essa frase não era obviamente apenas reveladora da personalidade do Giulio, mas também do seu trabalho artístico: extremamente directo, profundo, e, claro, com uma estética inspirada nos videojogos antigos, mas apontando na direcção das mais recentes experiências 3D.

 

— Sabes, estou a ler um livro interessante… Homebase: The Interior in Contemporary Art da Marion Eisele… este aqui (é neste exacto momento em que, depois de algumas tentativas, temos de retirar os nossos fundos). Conheces?

— Não.

— Ok…basicamente aborda o tema dos interiores, embora não o faça apenas de um ponto de vista artístico…posso ler-te uma pequena passagem?

— Claro!

 

“O mundo sustém a respiração no interior, mas será mesmo que sustém a respiração quando estamos ligados ao mundo através de todas as tecnologias de comunicação possíveis? Poderá o interior ser ainda um refúgio de autodescoberta e intimidade, bem como de recreação física e psicológica quando o mundo é o seu hóspede permanente?”

Enquanto ele lê, percebo que o Giulio sempre teve um fascínio pelo conceito de privacidade ou, para ser mais precisa, pelo modo como a linha que separa os espaços interior e exterior é hoje extraordinariamente ténue.

Recordo-me de um dos seus primeiros trabalhos, phantoms and notifications (2015), uma animação vídeo desenhada pelo Giulio para ser vista num iPhone… talvez o mesmo que está ao nosso lado na mesa de cabeceira e que a meio da noite, quando estamos quase a adormecer, nos vai falar através de um gato-antena fofinho e assustador. Não nos mantém apenas acordados, mas diz-nos que a sua “única existência coincidirá com a atenção da nossa mente”.

Embora alguns anos tenham passado, estamos agora mesmo aqui a pensar: “Poderá o espaço interior ser ainda um refúgio para o conhecimento profundo de uma pessoa?”

E, evidentemente, não temos uma resposta.

O Giulio lê-me outros excertos do livro e continuamos a pensar sobre o nosso conceito de intimidade. Não é algo que possamos descrever facilmente, especialmente neste ano de confinamentos, em que as esferas privada e pública parecem ter ficado viradas do avesso e ninguém consegue ver claramente a sobreposição de uma sobre a outra. E este conjunto de sentimentos ambivalentes gerados pelo confinamento forçado leva-nos ao novo projecto do Giulio, que parece ter muito a dizer sobre a nossa desvinculação gradual da realidade.

O Giulio está actualmente a trabalhar num novo vídeo. Diz-me que o enredo andará provavelmente à volta de um edifício de forma fálica que, num futuro sci-fi próximo, não será o único do seu género mas antes um módulo de habitação disseminado. O protagonista deste vídeo terá talvez perdido gradualmente qualquer contacto com uma realidade feita de interacções físicas e emocionais.

O protagonista, tal como o resto da população, não teria contactos humanos sem ser com os couriers e encontros amorosos, ambos “marcados” através de aplicações online. A população seria forçada a viver nestes módulos habitacionais devido à alarmante falta de oxigénio: no exterior já não existiria ar suficiente para manter seres humanos pensantes. Mas o protagonista tem uma teoria e… talvez não devesse revelar demasiado.

Depois de me contar todas as reviravoltas possíveis que o seu novo trabalho poderá tomar, ele acrescenta: “Sempre concebi o meu trabalho artístico como uma hipérbole. Quero dizer, tento muitas vezes representar situações de maneira muito explícita para realçar as formas como a nossa vida diária poderia degenerar-se.”

O Giulio lembra-me de quão rápidas e subtis estas degenerações podem ocorrer actualmente. “Lembras-te de quando tirar uma selfie era considerado ridículo e coisa de coitados?”, pergunta-me.

Agora que estou a escrever, uma Alberta adolescente aparece à minha frente, escondida no seu quarto a tirar fotografias à sua cara com uma câmara digital cor-de-rosa: subitamente ela começa a perceber as implicações de ter de levar aquelas fotografias para o laboratório de fotografia. “Talvez o tipo nem olhe para elas… não, claro que não vai olhar, ele tem muita coisa para revelar… mas e se olhar?? Oh meu deus, não posso revelá-las!”

Talvez num futuro próximo não sejamos mais capazes de reconhecer o que é ridículo. Talvez venhamos a viver num futuro sem auto-crítica ou crítica em geral.

E é desta forma que regressamos ao nosso ponto inicial. As histórias de ficção científica não são apenas um passatempo, elas muitas vezes transformam-se em instrumentos para arrancar o véu da nossa hipocrisia.

Um dos trabalhos do Giulio de que mais gosto é, de longe, Shipwrecked (2017). Shipwrecked é um filme de animação que tenta explorar os diferentes graus de virtualização que dominam a nossa vida quotidiana, e reflecte sobre o modo como as imagens são consumidas, ou antes como as imagens que criamos nos consomem. Neste vídeo, a água torna-se uma poderosa metáfora sobre a qual projectamos os reflexos das nossas ilusões, desvendando a possibilidade real de nelas nos afundarmos ou de perdermos o caminho de regresso a casa.

Não vou dizer isto só porque o Giulio é meu amigo, mas lembro-me de uma senhora na casa dos cinquenta anos a sair da sala onde projectávamos este vídeo em Ansedonia e de me dizer: “Isto é demasiado para mim, não conseguia aguentar nem mais um minuto… Preciso de mais tempo… literalmente, isto é demais…”. Esta é uma das razões porque acho que as realidades sci-fi juntamente com uma boa dose de introspecção podem mesmo tornar-se armas poderosas para uma análise interior.

O Giulio e eu continuamos a conversar até que acabamos por falar sobre a Chiara Ferragni (uma empresária, influencer e designer italiana que surgiu no primeiro lugar da lista da Forbes dos Top Fashion Influencers) e a sua decisão consciente de definir a futura reputação do seu filho, bem como a percepção que ele terá de si mesmo, tendo iniciado uma relação muito próxima com vídeo-selfies desde tenra idade; mas também sobre a família das Kardashian que talvez tenha sido a primeira a aproveitar a oportunidade de sucesso ao navegar o hype mediático que surgiu à volta do julgamento de O. J. Simpson (Robert George Kardashian foi um dos advogados de defesa de O.J.).

A conferência da campanha de Trump no Four Seasons Total Landscaping também ocupou uma grande parte da nossa conversa, especialmente a sua versão virtual povoada apenas por furries.

Por esta altura, o Giulio e eu estávamos à conversa há mais de hora e meia e talvez tivesse chegado o momento de nos despedirmos, pelo menos formalmente, um do outro. Como muitas vezes acontece, passados alguns minutos começamos a enviar mensagens um ao outro: eu envio-lhe uma fotografia de um edifício real com a forma de um pénis em Guangxi (China) e ele envia-me uma fotografia de um bolo de chocolate Pan di Stelle que está a comer. Ok.

Aprendi também algo nesta breve visita virtual com o Giulio Scalisi: o confinamento ou o isolamento emocional em geral podem gerar reacções diferentes na maneira como decidimos abordar a nossa própria realidade, mas seja qual for a forma que escolhermos não deveremos nunca esquecer-nos de quão difícil se pode tornar habituarmo-nos a pensar sozinhos, sem ninguém a opor-se às nossas teorias. Mediar as nossas emoções através do olhar de uma outra pessoa não só nos ajuda a ultrapassar facilmente os nossos problemas, mas sobretudo mantém vivas todas as nuances e as múltiplas camadas de que todas as situações são feitas.

 

 

2_Phantoms and Notifications — 2015, video on iPhone, 16.9 (vertical), 1080p, 3 min on loop_4
3_Phantoms and Notifications — 2015, video on iPhone, 16.9 (vertical), 1080p, 3 min on loop_2
4_A House for a Gentleman — 2020, work in progress still from a video
5_Shipwrecked — 2017, video, 16.9, 1080p, 17 min
6_Shipwrecked — 2017, video, 16.9, 1080p, 17 min_3
7_Shipwrecked — 2017, video, 16.9, 1080p, 17 min_2

 

A Caixa-Mistério é composta por links, dispostos de forma aleatória no fundo da página, que o levarão a coisas sobre as quais conversámos durante a visita. A forma como são apresentados não é apenas uma maneira nostálgica de recordar o suspense mágico que pertencia a estruturas do início da internet, mas oculta também a esperança de suscitar a curiosidade dos leitores um pouco mais do que as clássicas notas de rodapé.

 

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Giulio Scalisi (Salemi, 1992) vive e trabalha em Milão. É um artista multimedia cujo trabalho ganha forma através de diferentes media e formas, como o vídeo, banda desenhada, instalação e desenho. Em 2014, conclui a sua licenciatura em Artes Visuais na NABA, Milão, e em 2016 o Mestrado em Artes Visuais na Écal, Lausanne. Exposições colectivas incluem: Good Guys (Gran Riserva), Gasconade, Roma; tAPC/the Artist’s PC, Le Botanique Centre Culturel, Bruxelas; Life is a Bed of Roses, Fondation Ricard, Paris; Homesick, Futuredome, Milão; “Fedeli alla linea”, Sonnenstübe, Lugano; “Every breath you take”, Galleria Umberto di Marino, Nápoles; Dripping in crocodile tears, Like a little disaster, Polignano; 1999, Kaleidoscope @ Spazio Maiocchi, Milão ; A healthy dose of confusion before the bang, Federica Schiavo Gallery, Milão. Exposição individual: Alghe Romantiche, Tile Project Space, Milão.

 

Alberta Romano é historiadora de arte e curadora de arte contemporânea, nascida em 1991 em Pescara. Actualmente é curadora da Kunsthalle Lissabon. Desde 2017, tem trabalhado com a Fundação CRC em Cuneo, coordenando as aquisições para a sua colecção de arte contemporânea.

Depois de se formar em História de Arte na La Sapienza em Roma e com um Mestrado em Culturas Visuais e Práticas Curatoriais da Academia de Belas Artes de Brera em Milão, frequentou o programa curatorial CAMPO16 na Fundação Sandretto Re Rebaudengo em Turim. Escreveu para publicações como Artforum, Flash Art, Contemporânea, Kabul Magazine e outras revistas.

 

Tradução do EN por Gonçalo Gama Pinto.

 


Imagem de capa: Poetry, video games and dicks, 2020. Visita virtual ao atelier de Giulio Scalisi's. Rubrica "It's a date" de Alberta Romano. Restantes imagens: 1 e 2. Giulio Scalisi, Phantoms and Notifications, 2015, video para iPhone; 3. A House for a Gentleman, 2020, work in progress, video still; 4, 5 e 6: Shipwrecked, 2017, vídeo, 16.9, 17 minutos. Todas as imagens cortesia do artista.

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