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Carlos Nogueira: água. e a casa é o mundo

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David Silva Revés

 

Entrevista a Carlos Nogueira

Com um percurso iniciado em 1968, Carlos Nogueira (1947, Moçambique) tem vindo a desenvolver uma obra multidisciplinar e polissémica que continuamente o tem afirmado como um dos mais relevantes artistas da sua geração. Sendo fortemente influenciado pela natureza do espaço e sua mensurabilidade, assim como pela matéria, a luz e o tempo, o trabalho de Carlos Nogueira produz-se num movimento entre o efémero e o permanente, o visível e o invisível, a exaltação da palavra e o silêncio contemplativo, revelando um caminho próprio rumo a uma harmonia ou radicalidade cosmológica e elemental.

água. e a casa é o mundo é a sua mais recente exposição individual, a primeira no município de Oeiras onde o artista vive há mais de cinco décadas. Com curadoria de Catarina Rosendo, estará patente no Palácio Anjos, em Algés, até 29 de Dezembro de 2023. É justamente no contexto deste projecto que conversei com Carlos Nogueira: não só sobre a especificidade desta exposição e o lugar que desempenha no seu trajecto artístico, como também sobre a generalidade da prática do artista e sobre as preocupações que este conserva acerca do seu trabalho e da vida. Ou, para melhor utilizar um termo que abordaremos no decorrer deste encontro, falámos de alguns dos seus tumultos

 

David Revés (DR): água. e a casa é o mundo é a tua mais recente exposição individual desde as três que apresentaste no ano passado: desenhos de casas. para ti (Arquivo Aires Mateus), mais desenhos de casa. para ti (Galeria 3+1) e sombras de vento. entre águas (Fundação Arpad Szenes — Vieira da Silva). Todas elas, apesar de distintas, bastante próximas no tempo e nos espaços que ocuparam em Lisboa. Pergunto-te como nasceu este projecto e quais os eixos de proximidade que se estabelecem entre esta nova exposição e as anteriores. Da mesma forma, gostaria de te ouvir sobre os movimentos de dissemelhança e/ou novidade que esta exposição pode estabelecer com a generalidade do teu trabalho. 

Carlos Nogueira (CN): Esta nova exposição surgiu de um convite do director municipal da cultura da Câmara Municipal de Oeiras, Jorge Barreto Xavier. No Palácio Anjos mostro trabalhos recentes e inéditos, assim como um conjunto de trabalhos mais antigos, nomeadamente de 1980, que achei por bem revisitar, sendo que alguns deles são também inéditos.

Por mais distantes que os trabalhos se localizem no tempo e sem que alguma vez se repitam, penso que o que faço constitui uma unidade onde é sempre possível encontrar constantes, quer pela consonância que se verifica, quer pela dissonância que, penso, mais não seja pela oposição, são sempre modos de encontro.

 

DR: Esta exposição conta com a curadoria de Catarina Rosendo, alguém que tem acompanhado de perto a tua prática e com quem trabalhaste noutras ocasiões, nomeadamente na tua exposição antológica o lugar das coisas | a place for all things (2012/13) no CAM — Fundação Calouste Gulbenkian, da qual a Catarina foi também curadora. Fala-me um pouco desta já longa ligação de trabalho e de como a relação artista-curadora se foi desenvolvendo neste projecto. 

CN: Devo dizer que o convite para esta exposição se fez num momento inesperado e implicava que se realizasse agora. Ou seja, em muito menos de um ano desde o convite. 

Como sabes, preciso sempre de muito tempo para desenvolver o meu trabalho. [O tempo é, na verdade, o meu maior amigo e o meu pior inimigo.] Por isso, marcada a data desta exposição, haveria que atalhar caminhos para concretizar algo que tivesse a qualidade que me exijo e que se me exige. 

A Catarina Rosendo foi a pessoa de quem imediatamente me lembrei para me acompanhar neste processo. Conheci a Catarina há muitos anos, durante uma inauguração na Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea, em Almada. Sucessivos encontros e ainda o tempo em que posteriormente expus na Casa da Cerca, onde a Catarina integrava o Serviço de Exposições, aproximaram-nos, assim como a experiência da minha exposição antológica na Gulbenkian, da qual, como referiste, a Catarina foi a curadora. A Catarina é uma profissional de grande qualidade. O rigor e a exigência com que trabalha, o espírito aberto, atento, crítico e informado que a caracteriza, além do imenso gosto pelo que faz, fazem dela uma excelente parceira. Como amiga e conhecedora que é do meu trabalho, aceitou prontamente o convite, para meu agrado e alegria. Começámos, assim, a pensar em coisas. 

Nessa conversa — entre mim e a Catarina — fomos juntando peças. Começámos por pensar nos trabalhos que estava a realizar naquele momento, ou que eram de alguma forma recentes, aos quais juntámos outros mais antigos. Adoptámos também um critério, nomeadamente em relação ao uso da cor. Mais uma vez, voltando ao habitual que caracteriza a maior parte do meu trabalho: a utilização de um leque mínimo de cores. 

DR: Podemos agora falar um pouco sobre o título escolhido: água. e a casa é o mundo. Conhecendo a maior parte dos textos que escreveram sobre ti, percebi que fazes uma referência — ou de certa forma te inspiras — numa frase da poeta Adília Lopes vinda de um texto que ela escreveu para ti, intitulado .A casa, para o catálogo da tua exposição individual desenhos de construção com casa. e céu, que aconteceu em 2006, justamente na Casa da Cerca. 

Escrevia a Adília nesse texto: “eu vim ao mundo na casa. E a casa era o mundo”. É uma frase muito bela. 

CN: A Adília Lopes é uma pessoa de quem gosto muito. Devo dizer-te, no entanto, que não me lembro disso, o que é curioso. 

A Casa, a casa! Para mim a casa é o guarda-joias da vida. Ali me encontro, ali rio, ali choro. Ali sou quem sou sem ter de usar cortinas. 

DR: Acrescentaste ainda uma partícula a isso: água. Este título faz, assim, uma ligação estreita a dois pontos nevrálgicos/motes do teu trabalho: a água e a casa. Tens inclusive variadíssimos títulos de outras exposições tuas, assim como de peças individuais, onde essas palavras entram. 

CN: Sim, também a água está presente. Neste caso concreto, também porque uso elementos que têm que ver directamente com a água, até na forma, como é o caso dos rios [desenhos de rios]. 

Do mesmo modo, tenho casas: desenhos de casas e projectos de casas. 

Este título surge ainda por outros motivos, mais politicamente comprometidos, diria. Por um lado, é uma situação que mais do que nunca é preocupante no mundo contemporâneo, para não dizer devastadora, uma vez que a casa é um lugar onde se poderá estar com o mínimo de dignidade e cada vez mais menos pessoas têm direito ou acesso a esse bem elementar. Ou têm acesso a casas de tal forma precárias que a vida perde toda a dignidade e sentido. 

A casa está actual e indiscutivelmente — e não me refiro unicamente à situação do nosso país — posta em questão. 

A casa também surge no meu trabalho, por vezes enquanto escrita, de forma rasurada, porque não me vem outra forma à cabeça... A casa rasurada é cada vez mais uma realidade. 

Depois, o mundo... Porque se a globalização tem aspectos menos interessantes, ou até desagradáveis, a verdade é que é um caminho irreversível. E que só pode melhorar se for devidamente entendida e se forem de algum modo corrigidos muitos dos comportamentos, nomeadamente de abusos de poder, que a ela estão associados. 

Lembrei-me do Tagore [Rabindranath] e do seu livro A casa e o mundo, uma das obras deste autor de que mais gosto. Joguei com a água: elemento essencial em vias de extinção. Joguei com a casa: lugar fundamental cada vez mais precário. 

E com o mundo: um universo comum cada vez mais agitado, deslaçado e tornado violento, independentemente das máscaras que se lhe queiram pôr. 

DR: Falaste da casa como o “guarda-joias da vida”, uma ideia que o Gonçalo M. Tavares parece igualmente sugerir num outro texto sobre a casa que escreveu para o mesmo catálogo no qual foi incluído o texto da Adília Lopes.  Tudo isso faz com que exista uma proximidade de outro nível, quase inconsciente, entre ti e as pessoas que te rodeiam, e que eu acho muito bonita de perceber e testemunhar. Falavas agora no Tagore e na referência ao título do seu romance. A tua obra é impregnada pela literatura e pela escrita, ou seja, pela palavra. É mesmo uma das maiores influências do teu trabalho, sendo que tu também escreves. Todos os títulos — tanto das tuas peças individuais, quanto das exposições que realizas — poderiam mesmo ser percebidos como um texto comum, sendo quase excertos ou versos de um mesmo poema em potência. Da mesma forma, não raras vezes, fazes acompanhar as tuas exposições com textos próprios. Queria que me falasses um pouco dessa relação com a escrita. 

CN: Sim, há um chão comum entre mim e as pessoas que trago ou são trazidas para junto de mim, e que faço sempre por manter e cultivar.  

Falando da relação com a escrita... Gosto muito das palavras, mas digo frequentemente que não sou escritor. E digo-o explicando-te porquê: o escritor tem um quotidiano e prática de escrita que eu não tenho. O que comigo acontece é que gosto muito das palavras e do conteúdo específico que cada uma pode comportar se formos capazes de conhecer e usar ao máximo a sua amplitude. Tenho um carinho e respeito muito grandes pelas palavras e gosto de usá-las sempre com a maior propriedade de que sou capaz. Por exemplo, para citar um texto de trabalho meu: “dizer preto ou negro não é a mesma coisa, até porque o negro é muito mais retinto. e húmido.”. 

DR: Fiquei muito surpreendido com a obra que colocaste perto da entrada de uma das primeiras salas: três grandes vidros sobrepostos que têm inscrito a silicone o nome desta exposição. Sendo esta uma das novas peças apresentadas, ela destaca-se, ainda assim, da tua restante produção recente. Se pode ser vista como um retorno aos painéis de vidro que fizeste para a instalação beyond the very edge of the earth, realizada em Londres, na The Economist Plaza, em 1998 [e que são em tudo semelhantes a estes], esta obra pode ser igualmente vista como um retorno às acções que fazias nos anos 80 de escrita nas paredes (lembro-me por exemplo de a Camões e a ti, de 1980), ou pode mesmo ser sintomática da generalidade da tua actividade de escrita e da forma como por vezes a integras nas tuas exposições e obras.

CN: É consequência de tudo isso. É decisivamente um retorno à peça de Londres, mas também um solução que procurou responder ao lugar específico que ocupa nesta exposição. O espaço onde está instalada é constituído por portas e não permitia que se colocassem obras nas paredes. Era, no entanto, para mim, muito estranho aquele vazio. Assim, pensei nesta solução e resolvi escrever o nome da exposição nesses vidros. Do mesmo modo, permitiu-me voltar à rasura e à procura pelo riscar. Curiosamente, inicialmente tencionava rasurar a palavra “casa”, que é o que é mais precário em tudo isto, obviamente. Mas antes de pensar no garatujar, um lapso de memória e uma perda de visão — porque o ângulo não me deixava ver o que tinha escrito a silicone sobre o vidro — fez com que a peça ficasse assim. Foi realizada ali, no sítio onde está. 

DR: Isso faz-me pensar, também por conhecer a tua prática e a tua Obra, que não existem limites temporais demasiado marcadas ou constrangimentos cronológicos no teu trabalho, embora se percebam passagens, mudanças, flexões no teu percurso (e a isso já lá iremos). Isso é visível também, de certa forma, em algumas das datações presentes nas fichas técnicas de várias peças aqui expostas. Por exemplo, (1985-2015), ou (1980-2022), (1990-2018), entre outras. O teu trabalho parece existir num plano de continuidade e comunicabilidade quase intemporal, ou melhor: atemporal. 

CN: Tenho trabalhos que estiveram 30 anos em reserva à espera de uma qualquer alteração. Um dia, ou os transformo, ou inutilizo, ou decido dá-los por acabados, como aconteceu com uma peça que mostrei na minha exposição individual no Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso. 

De um modo geral, só assino as minhas obras e só as dato quando saem das minhas mãos. Muitas das datas são apontadas por aproximação, porque eu até gostaria de não colocar datas, fazendo-o, por vezes, por meras razões práticas. Isto porque as minhas obras continuam sempre a ser minhas. Além de que o meu tempo de vida, mesmo que pudesse ser outro, é relativamente tão curto que isso acaba por pouco significar. 

DR: Pergunto-te se isso também conduziu o gesto de convocar trabalhos que realizaste especificamente nos anos 80, trazendo-os para esta exposição em diálogo com trabalhos recentes, maioritariamente dos últimos 10 ou 15 anos até ao presente. Falo, por exemplo, dos estudos de riscado para camisa sem bolsos

CN: Os estudos de riscado que são absolutamente fundamentais para mim. Há muitos outros trabalhos que nem sei por onde param, e ainda outros que eventualmente se vieram a perder. (Houve uma bienal de desenho em Lisboa que ardeu e onde arderam trabalhos meus que considero importantes. Mas a vida é assim.)

Não gosto de voltar aos mesmos títulos (como, por exemplo, estudos de riscado). Logicamente que não me repetirei, mas não me importo de partir sempre das mesmas premissas. Até porque repetir é um beco fechado. Usar as mesmas premissas, se elas me parecerem minimamente ricas e plenas de possibilidades, é algo que eu não recuso de forma nenhuma. 

Além do mais, eu não tenho quaisquer problemas em pegar num trabalho que tenha estado muito tempo parado e do qual eventualmente já nem goste (o que não é o caso destes desenhos). Porque se o trabalho não mudou, a minha exigência e os meus critérios vão evoluindo. E penso que sempre para melhor. Não me preocupo nada em retomar um percurso antes abandonado, se lhe descobrir um novo interesse. 

DR: Estas peças, e as que se lhes sucederam nessa década (alguns dos quais estão igualmente presentes nesta exposição), são de alguma forma charneira no teu percurso. A partir daqui o teu trabalho muda. Há outra forma de expor e ocupar o espaço. 

CN: Sim, mudou muita coisa. A forma de ocupar o espaço, a forma de repetir sem ser repetitivo. Nos desenhos de que falas, cada linha é feita à mão, com a tensão e a carga que cada novo traço pode ter. 

Como de costume, a noção do definitivo é uma noção que tenho sempre presente. A minha primeira fase de trabalho subordinava-se a um tema que é esbanjamento e partilha. A segunda aconteceu com a minha descoberta da ideia de finitude. Esses trabalhos enformaram-se e informaram-se nas ideias de contenção e permanência

DR: Podemos falar nessa passagem? Antes dos anos 80, e no seu início, uma prática mais convencionada de performance existia de forma prática no teu trabalho. O teu corpo estava presente — ou de outros que convocavas para integrarem ou interagirem com as tuas obras — havendo acções, acontecimentos, jogos, partilhas, etc. A partir daí, há a passagem para uma performatividade menos evidente, expressa plasticamente através dos gestos e acções de um corpo — teu ou dos elementos naturais, por exemplo — que se apresenta ausente. Em tudo isso o sentido performático e o performativo não se deixam de participar, justamente, no tipo de horizontes que compõem a radicalidade da tua Obra: como existir, como habitar, como conviver em conjunto.

CN: Sim, onde o corpo e os afectos nunca deixaram de estar presentes. 

 

DR: Pensando-os de outras formas....

CN: Exactamente. Quero que o corpo esteja sempre presente. Vivo muito do corpo e para o corpo, sempre de uma forma que pretendo que seja o mais extensa e projectiva possível. 

E, como dizes, estou sempre a falar dos mesmos horizontes. Embora não com um carácter repetitivo, mas como permanente descoberta. Faz-me estar vivo.

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DR: Falando sobre transições, há uma outra que a mim me interessa particularmente. A transição entre uma noção de leveza (onde a performance dos anos 70 e 80 obviamente se inclui) — ou seja, uma efemeridade ou leveza dos materiais, das presenças, dos corpos — para algo que tem muito mais peso, substância, densidade. Os teus trabalhos começam, a partir dos anos 80 e por aí em diante, a ganhar outro peso e outras opacidades. 

CN: É verdade. Definitivamente o meu trabalho ganha, a partir dessa altura, uma outra densidade que se traduz efectivamente muito mais no peso real que as matérias acabam por ter, do que pelo aspecto que aparentam. Há peças minhas que parecem muito leves e que são pesadíssimas. Jogo com esta quase contradição — que não é contradição mas sim uma maneira de estar como outra qualquer — que é parecer pesado e ser leve. 

Há também uma palavra que, por muito fora de moda que esteja, desde sempre me prende. É a palavra Beleza. Podendo cair no erro de transgredir, quase diria que a Beleza é uma das provas da existência de Deus...

DR: Já nos debruçaremos sobre essas questões. Antes disso, penso que poderíamos falar um pouco sobre o teu apego às matérias e aos objectos do quotidiano. À forma como os encaras, como os trabalhas e como os redesenhas partindo dos seus desenhos iniciais, ou mesmo acidentais. Sempre para com isso falares, uma vez mais, das mesmas coisas, como vimos: novamente a questão da casa, do desenho, do habitar, da vida e da sua radicalidade. Gostava que me falasses um pouco sobre essas relações. 

CN: Desde sempre — como até já disse num texto dos anos 60 que foi publicado no nº65 da revista Colóquio, da Fundação Calouste Gulbenkian — “não colecciono nada, junto tudo: pedras, palavras, perguntas e outras histórias”. Nesse pequeno texto digo ainda: “tenho uma barriga grande, grande, vês! Estou prenhe de histórias.”. 

Desde sempre juntei coisas. Juntei coisas que me agradam — pela matéria em si, ou pela cor, ou pela forma. Ou por uma qualquer outra razão.

DR: Uma certa intuição?

CN: Sim, precisamente. Intuição. É muito mais elemental. 

Lembro-me de que o meu primeiro vocabulário de formas foi construído em 1970 na casa onde ainda hoje vivo. Chamava-lhe assim: vocabulário de formas. Nesse vocabulário estavam desde fotografias até simples seixos, mais ou menos rolados, onde uma simples protuberância justificava que eu os tivesse guardado. O terraço de minha casa, onde vivo há mais de 50 anos, está pejado de pedras que juntei só porque me pareceram interessantes. É claro que estas são parte, apenas, das pedras que elegi.

Desde sempre juntei coisas, como disse nesse texto de que falava. Acontece que depressa lhes descubro uma vida que ultrapassa aquele primeiro e simples olhar do princípio e que faz com que as queira manter comigo. Ainda assim, a idade vem-me trazendo a consciência de que vou ter de pôr esses objectos nos sítios certos. Se calhar, no que respeita às pedras, terei de fazer uma pequena viagem a pé, com um carrinho cheio dessas pedras que irei deixando cair no meu percurso. Ou que vou perdendo, para que elas encontrem o seu próprio curso e caminho, embora não sejam esses os sítios originais onde as encontrei. 

Desde sempre juntei coisas como desde sempre percebi que há coisas que fazem boa vizinhança com outras. 

DR: Como por exemplo?

CN: Por exemplo um ferro direito e um ferro em arco.  

Nesta exposição tenho uma peça a que chamei afluente e que é o conjunto de um ferro em arco com um ferro direito. Qualquer deles já os encontrei muito velhos e deteriorados. Depois cuidei deles, decapando-os e metalizando-os para lhes aumentar a resistência ao tempo — embora seja somente esta e apenas uma pretensão, já que da natureza das coisas, tudo acaba, título que dei a uma outra peça. 

Pus um parafuso num e outro noutro, fiz dois furos na parede e a peça lá está pendurada. Porque, de facto, esta peça é um afluente de mais um rio. E os rios são o que há de mais construtivo. E em mudança, “ganhando sempre novas qualidades”.

DR: Para resgatar uma outra raiz do teu trabalho — a ligação à arquitectura, ao edificar e ao construir, onde claramente a relação com a casa se insere de forma paradigmática — parece-me pelo que dizes que há a atenção especial a um outro tipo de arquitectura no teu trabalho:  diria uma arquitectura cósmica, planetária, ou elemental...

CN: Por falares nisso, não sabes como nos últimos anos a ideia do cosmos me prende. Vivo à procura de imagens do universo e de novas descobertas científicas. De cada vez que uma sonda espacial envia mais imagens para a Terra, fico a adivinhar o que estará para além disso. Uma coisa que me maravilha é perceber a dimensão incalculável e desconhecida que “tudo isto” tem. Em contrapartida, vejo as lutas intersticiais que muitas vezes se fazem por uma mera necessidade de afirmação, ou de vão poder, e que não deixo de achar que é um exercício possível e plausível, mas que me faz acima de tudo constatar que não passamos de simples grãos de areia. 

DR: Sob um certo ponto de vista, poderíamos encontrar aqui um sentido paradoxal no interior da tua prática, embora eu não o considere como tal. Por um lado, a arquitectura e o desenho como mecanismos construtivos de algo, onde uma ideia de verticalização sobre o mundo (ou de “afirmação” e “permanência”, evocando as tuas próprias palavras) pode surgir. Mas, por outro lado, há a declaração de que tudo é horizontal. Tudo é aquático, líquido, e está em permanente comunicabilidade, quase indistinta, absoluta, planetária, cósmica (para utilizar termos pelos quais passámos anteriormente). Há nisso uma tensão constante, não? Usando um exemplo: tentas suspender os objectos que encontras (muitas vezes degradados, como vimos) num momento em que lhes estancas a sua perecibilidade. Mas, ao mesmo tempo, tens esta peça de que já falaste — da natureza das coisas, tudo acaba — que resume praticamente a totalidade do teu trabalho e a tua forma de encarar a vida. 

CN: É frequente ir buscar títulos dos meus trabalhos e das minhas exposições aos meus próprios textos. nem o tempo passa é outro exemplo. 

A minha ignorância sobre astrofísica, e sobre a idade e a vida do cosmos, é absoluta. Isso não quer dizer que não cultive uma certa esperança, não tanto de que o tempo não passe, mas de que o tempo se possa encontrar numa qualquer “cápsula”. Aquilo de que temos convicção é que o tempo passa e, como o pensamento, é irreversível. Espero, porém, que algum dia se perceba que o tempo, ainda que irreversível, possa ser revisitado. Se possa encontrar. 

DR: E como achas que os teus objectos podem viver nisso — nessa constante irreversibilidade do tempo — ou com isso?

CN: Os meus objectos viverão tão dispersos quanto o vento for capaz de os levar. E se cada um deles cair na cova certa — ou na falésia correcta — estará tudo bem. O mal é quando, para citar um poeta da minha terra, o Reinaldo Ferreira, “feitas as contas, receio que extintas as convenções durma a rainha no meio de malnascidos peões”. Isto não tem que ver com qualquer forma de elitismo. Pura e simplesmente tem que ver com a minha necessidade de que os meus objectos, indo para onde forem, irão para um lugar que lhes seja ajustado.  

DR: Mesmo que possa existir um nada anunciado?

CN: O nada é muito! Coisa nenhuma é que não...

DR: Como relacionas a vida, ou a vida dos objectos, ou a tua vida enquanto pessoa e artista, com esta ideia — tanto conceptual, quanto iminentemente empírica — de morte, finitude, fim? 

CN: Digo-te que todos os dias penso na morte. E todos os dias reflito sobre as coisas que me passam pelas mãos. Tenho lucidez suficiente para desenvolver um trajecto que de algum modo me possa “salvar” dessa morte — anunciada. Por exemplo, quero doar o meu corpo à ciência. 

O meu empenho é também ter tempo de vida suficiente para poder colocar as coisas no sítio certo. A minha biblioteca irá para a Faculdade de Belas Artes do Porto. A minha colecção de barros irá para a Universidade do Porto que tem uma colecção de barros artesanais de grande qualidade. Tenho peças absolutamente maravilhosas da Rosa Ramalho ou do Mistério, peças que vi fazer, que comprei ainda frescas e fui buscar depois de cozidas.

Por outro lado, quando acordo faço votos para ser capaz de estar atento ao longo do dia. E as coisas vão mudando. Isso passa também pela forma de economizar o trabalho, de economizar meios, de encurtar caminhos no sentido de me permitir ir até mais longe.

DR: Queria continuar aí — nesta ideia de enfrentar a morte e a finitude — visando uma relação mais interna com o teu trabalho. Julgo que também a relação com a Beleza, de que falavas há pouco, se poderá enquadrar neste ponto. Pergunto-te se assim é, e se a forma de tentar encontrar a Beleza com o teu próprio trabalho passa por aí. Se a relação com as matérias e esta ligação tão forte aos objectos que cruzam as tuas mãos também passam por aí. Ou mesmo se tudo pode passar por aí. 

CN: Sim, penso que passa por aí, sendo que o meu conceito de Beleza está distante do conceito platónico. Hoje em dia posso dizer quais são as rugas que tenho e que me agradam ou aquelas de que não gosto. A Beleza abrange um espaço tão vasto que pode passar por uma flor de macieira a desabrochar ou por uma simples maçã que de tão madura caiu e ficou diluída ou agregada a um bocado de terra solta. 

O meu conceito de Beleza é muito mais amplo do que possa parecer. Não é de todo dirigido pelo conceito clássico de Beleza subordinada a cânones.

DR: Há tumulto na tua obra? Ela parte daí, ou dirige-se, de alguma forma, a passo com isso?

CN: Usaste uma palavra que eu acho mesmo muito curiosa... Mais do que o tumulto que existe nas coisas, ele existe em quem as vê. Porque um determinado acidente numa pedra, por mais vertiginoso e agressivo que seja, só o é se eu achar que é. As guerras não existem por natureza: são as pessoas que as criam e inventam, ou as não sabem evitar. Mas se o tumulto significar um vento que espalhou as sementes para que a seara cresça melhor, então digo que sim, que ele existe comigo no meu trabalho e na minha vida. 

DR: Há sempre uma relação apaziguada — não resignada — com isso? 

CN: Sim, esse apaziguamento é uma constante que persigo. 

DR: Tudo isto de que temos vindo a falar, pode ligar-se à questão de Deus, pela qual levemente passámos há pouco. No texto da Adília Lopes que mencionei, ela fala igualmente da casa como uma fortaleza, como o são conventos e catedrais, referindo-se depois à tua casa de uma forma muito específica e bonita: “A casa do Carlos Nogueira, para mim, é um espaço para rezar. Para pedir paciência e lágrimas.”. 

Feita esta introdução, parece-me que a relação com Deus, no teu trabalho, pode também ser vista através de uma forte ligação ou aproximação ao chão, ou de uma ideia de menoridade potente, de horizontalidade e diluição sobre a Terra.

Esta proximidade ao chão, não só conceptual, como também plástica e material, pode ser evidentemente percebida na tua relação com os objectos, mas também na forma como escreves todos os teus títulos (sempre em caixa baixa) ou, ainda, por exemplo, na forma como especificamente esta exposição está montada, sempre muito próxima do chão (salvo raras excepções). 

Para terminarmos, perguntava-te, por isso, acerca dessas relações, vindas da relação com o chão. E se isso passa também pela relação com Deus. 

CN: Venho de uma família católica praticante. E até aos meus 20/21 anos vivi inserido numa prática católica constante, com idas à missa inclusivamente. Depois, zanguei-me com tudo isso. Zanguei-me com a igreja. Fiquei absolutamente zangado com a igreja. E decidi afastar-me. Passei por momentos pouco fáceis, como o foram os quatro anos que passei numa guerra horrível que, apesar de tudo, fui capaz de superar sem grandes traumas. 

Sempre que pude, convivi. Em pleno mato, procurava saber como vivam as pessoas com quem lidava, mais do que me interessavam outras coisas que talvez fossem mais óbvias para um jovem que estava a cumprir o serviço militar. E aprendi coisas maravilhosas, de uma sabedoria da qual o ocidente poderia beneficiar imensamente caso fosse capaz de olhar atentamente para todas essas situações. 

Acredito na transcendência. Estou absolutamente convicto, e para mim até seria mesmo injusto que fosse de outra maneira. Há uma “continuação” qualquer, nem que seja sob uma qualquer forma de energia que, em doses mesmo diminutas, se liberta quando “arrefecemos”. Acredito nessa transcendência. E, não rezando eu, nem sabendo orações, dou-me com pessoas de prática religiosa que respeito e estimo. Acredito em qualquer coisa que seja mais do que isto. Isto é tudo muito pouco. Isto é tudo muito pequeno. Às vezes, tão pequeno que é mesquinho. Acreditando na transcendência, dou comigo a dizer “deus me ajude” — e não é frase feita. 

O chão é a cama original. É o lugar de contacto com a vibração da Natureza e todas as suas forças telúricas. Citando uma homilia que ouvi a um amigo, “provavelmente Jesus encontra-se por aí numa qualquer esquina. E até tem piolhos.”.

 

 

Carlos Nogueira

 

Palácio dos Anjos

 

 

David Revés [1992, PT] é curador independente, escritor e investigador. Vive e trabalha entre Portugal e a Suécia. Mestre em Estudos Artísticos (FBAUP) e pós-graduado em Ciências da Comunicação — Culturas Contemporâneas e Novas Tecnologias (FCSH — UNL). Fundador do Metanoia, um projecto nómada que desenvolve um programa de exposições, seminários, screenings e publicações em torno de narrativas da extinção e finitude. Enquanto curador, desenvolveu projetos expositivos para diversas instituições, tais como: Cité des Arts, Paris; Culturgest, Porto; Alfaia, Loulé; Fundação DIDAC e Igrexa da Universidade, Santiago de Compostela; Museu Municipal de Faro; ou Fidelidade Arte, Galeria Uma Lulik__, Appleton, Fundação Leal Rios, Fundação Arpad Szenes — Vieira da Silva, Carpintarias de São Lázaro, Lisboa. Foi programador da Galeria Painel, Porto, fellow curator na Fundação DIDAC, Espanha, e integrou a equipa curatorial do CINENOVA — Interuniversity Film Festival. Colaborou com instituições portuguesas tais como o Museu Nacional Soares dos Reis, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, BoCA: Biennial of Contemporary Arts, Centro de Arte Oliva, e, em França, com o Centre d'art contemporain (CAC) - Meymac. Os seus textos foram já publicados na DARDOmagazine [Espanha], Floating Projects [China], ExibartMagazine [Itália], SUMAC Space [Médio Oriente] e BoCA blog [Portugal]. É colaborador da Contemporânea desde 2015.

 

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Carlos Nogueira: água. e a casa é o mundo. Vistas gerais da exposição no Palácio dos Anjos. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia do artista e Palácio dos Anjos. 

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