20 / 22

Lisbon Roundup #12

Daniel Gustav Cramer- 16_GALERIAVERACORTES.jpg
Isabel Nogueira

 

Roundup #12

Lisboa: vários locais

Albuquerque Mendes:

Na próxima encarnação Beijo-te na boca

 

@Galeria Graça Brandão

 

O título é uma bela porta de entrada. São mais de três dezenas de obras que Albuquerque Mendes (n. 1953) apresenta. A sua faceta de performer, que é também relevante, surge aqui sobretudo na performatividade intrínseca a alguns trabalhos. Por exemplo, e possivelmente os melhores da exposição, o conjunto de desenhos sensivelmente em tamanho natural, nos quais o artista se auto-representa, assumindo ainda diversas personagens femininas (Santa Bárbara, Santa Cacilda, Santa Catarina, Santa Teresa de Ávila, Santa Luzia, Santa Zita, 2006). O conjunto é de uma expressividade notável, capaz de abandonar o quadro. Mas, e antes de continuarmos esta reflexão sobre a exposição em causa, detenhamo-nos brevemente sobre o percurso de Albuquerque Mendes.

Nasceu em Trancoso e ingressou em Engenharia Civil na Universidade de Coimbra, acabando por abandonar o curso. Integrou o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra entre 1970 e 1975. De seguida, e já no Porto, fundaria, com Armando Azevedo, Graça Morais, Jaime Silva, entre outros elementos, o “Grupo Puzzle” (final de 1975-1981), tendo sido um dos membros mais activos. Estes colectivos foram particularmente importantes no contexto de um país que abandonava uma ditadura de 48 anos, a mais longa da Europa, e que, paulatinamente, se afirmava e consolidava no domínio artístico, concretamente, ao nível do experimentalismo que se vivia no âmbito da neovanguarda internacional. Neste período, destacaram-se também os Encontros Internacionais de Arte, promovidos por Egídio Álvaro e pela Galeria Alvarez (Valadares, 1974; Viana do Castelo, 1975; Póvoa de Varzim, 1976; Caldas da Rainha, 1977), nos quais Albuquerque Mendes também interveio activamente. A título de curiosidade, a capa da Revista Artes Plásticas de 1976 tem uma imagem sua num momento performativo, um dos seu Rituais. Mas Albuquerque Mendes participara também na Alternatiza Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea (1977), com curadoria de Ernesto de Sousa, ou, já no fim da década, no I Symposium Internacional d’Art Performnce de Lyon (1979). Foi a década de afirmação de Albuquerque Mendes como artista e de Portugal como um país democrático, que se procurava auto-superar aos mais diversos níveis. Artístico também, claro. Nesta exposição a peça 25 de Abril de 1974 evoca claramente o momento.

A linguagem plástica de Albuquerque Mendes é sobretudo figurativa, mas também objectual, irónica e desafiante. Há uma ideia de jogo a atravessá-la que convida o espectador a nele entrar. O frasco de vidro que contém as cinzas da pintura de Henrique Medina (Mr. M’s anémic portrait, s/d) ou a baixela “Vista Alegre” em miniatura (Jean Cocteau, 2014), cuja placa afirma ter servido o jantar de homenagem a Jean Cocteau com a presença do presidente da República, Francisco Craveiro Lopes, são alguns dos exemplos. A referência a universos historicistas e citadores surge com o cinema (Bruscamente no Verão passado, 2022), ou com a apresentação de fotografias de Marcel Duchamp incorporando Rose Sélavy, ou com a definição/promoção da foto-novela, num romântico e irónico olhar (Um olhar de Outono, 2022). Estes constituem alguns dos exemplos que, na verdade, vão pontuando a exposição, conferindo-lhe várias camadas de leitura e de fruição. A montagem do dispositivo tembém possui a sua singularidade, na sobreposição e diálogo de elementos. Finalmente, a pintura assume ainda um conseguido equilíbrio entre expressividade e estilização. No conjunto, Albuquerque Mendes traz-nos uma espaço com complexidade onde vale a pena passar tempo. Na próxima encarnação, logo se vê.

   

DSC05288
DSC05257
DSC05256 - cópia
DSC05295
DSC05226
DSC05269
DSC05248

Albuquerque Mendes, Na próxima encarnação Beijo-te na boca. Vistas gerais da exposição na Galeria Graça Brandão. Fotos: Manuel Marcelo. Cortesia do artista e Galeria Graça Brandão. 

 

Ana Rebordão:

Dentro

@ Galeria No-No

 

A exposição incorpora uma série de imagens em que Ana Rebordão (n. 1986) se faz representar com as filhas pequenas, em fotografia e vídeo. O mote da maternidade fica dado. Iconograficamente, e no que às duas imagens fotográficas diz respeito, verifica-se a evocação de um retrato classicista, rigoroso e habitado por mãe e filha, naturalmente remetendo-nos para uma representação classicista da Virgem com o Menino, inclusivamente, pela coloração das vestes das figuras — branco, vermelho e azul — , que se destacam sob um fundo escuro, conectadas também, portanto, a um tenebrismo caravaggiano e barroco. Mãe e criança emanam do escuro em dois retratos fotográficos, cuja escala e orientação remetem o espectador para um retrato na pintura. A este rigor formalista segue-se a interrogação e a ironia: numa das imagens, a artista dá o leite à filha por meio de uma pistola de água carnavalesca; na outra, tapa-lhe o rosto, podendo, se o desejar, asfixiá-la. Uma imagem dá vida, a outra pode trazer a morte. E, neste ponto, entramos no aspecto que mais nos interessa nesta exposição: não exactamente a maternidade, mas a reflexão sobre a vida e o quotidiano a que ela conduz. E descemos ao andar de baixo.

O mesmo rigor formalista é visível agora em quatro écrãs de vídeo, com diversas durações. Ana Rebordão volta a estar entre acções aparentemente incompatíveis: preparar o leite e, de algum modo, usar uma resma de folhas de impressão ao lado, ou fazer uma massa e pegar na criança que parece largada numa bancada. Numa outra situação, a artista enverga uma blusa transparente, vermelha como a romã que descasca, numa erotização da mulher que percebemos estar grávida. A própria romã é um clássico atributo inconográfico ligado à fertilidade e à paixão, outrora dedicada a Afrodite. Enfim, as propostas são diversas, todas conduzindo a um qualquer equilíbrio entre a exaustão e a aceitação, tal como tantos e banais aspectos da vida de todos os dias. A determinada altura, surge no ecrã uma dupla da própria artista, talvez evidenciado a necessidade de se duplicar nas diversas tarefas. Há uma qualquer forma de lidar com a finitude, assumindo a realidade, por vezes dura, eventualmente desinteressante, em que muitas vezes vivemos. A vida é o que é, aqui espelhada num lugar de perplexidade, ironia e aparente desapego.

Não sendo exactamente uma temática com particular originalidade, é interessante o modo como é abordada e reinventada, numa conseguida referência a clássicos da história da arte ocidental, além de consistentes e curiosos jogos estabelecidos entre realidade-ficção, banalidade-ironia, tragédia-comédia, por exemplo. É neste espaço que se vão abrindo pequenas janelas sobre a História — e sobre a vida, acrescentamos nós —, como afirmava Leon-Battista Alberti, no seu tratado De pictura (1435). O quadro, na sua óptica, definia o limite da imagem e abria para um mundo imaginário. Certamente. A vida aqui constitui-se como quadro, visualidade e memória.

 

Ana Rebordão-4
Ana Rebordão-7
Ana Rebordão-8
Ana Rebordão-9
Ana Rebordão-6
Ana Rebordão-5
Ana Rebordão-3
Ana Rebordão-1
Ana Rebordão-2

Ana Rebordão, Dentro. Vistas gerais da exposição na Galeria No-No. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Galeria No-No. 

 

Daniel Gustav Cramer:

Objects

@ Galeria Vera Cortês

 

Num primeiro olhar, temos a sensação de estar a entrar num espaço geometrizante, envolvente e totalmente abstracto, considerando o rigor e depuramento das formas, materializadas sobretudo em esferas ou metade de esferas, quadrados e rectângulos. Contudo, vamo-nos apercebendo da maior complexidade do dispositivo. Efectivamente, Daniel Gustav Cramer (n. 1975) localiza-nos esteticamente na esteira de um minimalismo que interroga a escultura, conferindo-lhe um enfoque geometrizante, como já se referiu, colocando-a em relação à verticalidade (parede) e à horizontalidade (chão), assim como numa certa evocação rítmica de elementos. Neste ponto, efectivamente, a arte minimal seria a referência na procura de uma simplificação das formas, às quais era propositadamente retirado o conteúdo expressivo, no sentido de se atingir uma total abstracção, concretizada na redução formal e na produção de objectos em série. De facto, os artistas ligados à arte minimal procuravam estudar as possibilidades estéticas da composição a partir de estruturas neutras, que designavam por  “objectos“, precisamente o título desta exposição. Outro aspecto a reter é a denominação das obras com numeração romana, mais uma referência à arte minimal, uma vez que as peças, na sequência da não expressividade, maioritariamente não possuíam título.

Num segundo momento, e à medida que vamos fruindo e apreendendo a proposta que esta instalação representa, o domínio complexifica-se. Os objectos que vemos possuem uma proveniência diversa: uns são efectivamente elaborados por Cramer; outros são produzidos por artesãos de determinadas geografias; outros ainda encontrados e apropriados, ao modo de objet trouvé, na sua conhecida ligação ao automatismo e acaso do movimento surrealista. Mas, claro, do objet trouvé ao readymade é um passo. Não são exactamente sinónimos, mas estão próximos. O objecto duchampiano implica, como se sabe, a introdução de um pormenor pelo artista ao objecto banal, o qual, e quando colocado num contexto diferenciado, modifica a sua essência. E voltamos a Daniel Cramer. As suas instalações vão sendo trabalhadas, acrescentadas, modificadas, num fluxo contínuo que recorda neste sentido, por exemplo e precisamente, a grande e não terminada peça de Marcel Duchamp Le grand verre: La Mariée mise à nu par ses célibataires, même (1915-1923), que seria acompanhada por 93 documentos explicativos dos elementos que a compõem, editados em 1934 com o título Boîte verte. A documentação escrita é também um outro elemento relativo às obras de Cramer que, neste domínio, as colocam em contacto com Duchamp.

Em suma, por um lado, o minimalismo e o seu depuramento e sofisticação; por outro, o domínio da memória, da vivência, dos afectos, da temporalidade sobre a espacialidade. Estas peças, na verdade, incorporam uma história, como, por exemplo, a esfera de madeira que foi transportada por dois amigos do artista, através do mar, durante um longo percurso (LXV, 2021), regressando posteriormente à posse de Cramer. Finalmente, olhando estes objectos, há alguns francamente belos, como as esferas de vidro verde-azulado (XC, 2022), que são originalmente bóias usadas pelos pescadores, conhecidas como “ukidamas japonesas”, encontradas nas praias do Alasca e adquiridas pelo artista em 2014. Mas, na verdade, toda esta exposição flutua no branco da sala, fazendo convergir tempo e epaço, numa cristalização poética e estética encantatória.

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

Daniel Gustav Cramer- 6_GALERIAVERACORTES
Daniel Gustav Cramer- 1_GALERIAVERACORTES
Daniel Gustav Cramer- 7_GALERIAVERACORTES
Daniel Gustav Cramer- 2_GALERIAVERACORTES
Daniel Gustav Cramer- 15_GALERIAVERACORTES
Daniel Gustav Cramer- 5_GALERIAVERACORTES
Daniel Gustav Cramer- 12_GALERIAVERACORTES
Daniel Gustav Cramer- 13_GALERIAVERACORTES

Daniel Gustav Cramer, Objects. Vistas da exposição na Galeria Vera Cortês. Lisboa, 2023. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Vera Cortês. 

Voltar ao topo