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Ruben Santiago: Um Fogo

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Maria Kruglyak

Patente no Sismógrafo, Um Fogo, de Ruben Santiago, aborda o passado, o presente e o futuro da habitação através da justaposição não só do direito por via da propriedade ao direito por via da necessidade mas também da noção histórica de casa ao presente enfraquecimento desta conceção. Conquistando um equilíbrio subtil entre a precariedade e a resistência pela atenção prestada ao detalhe e à escala, esta poderosa exposição mostra-se profundamente consciente do seu contexto portuense e do âmbito discursivo no qual se insere. Naquela que é a segunda apresentação a ocupar o novo espaço do Sismógrafo, Um Fogo estabelece um contraponto com a gentrificação da cidade do Porto, oferecendo uma voz crítica no contexto da cena artística contemporânea relativamente às questões da habitação e do direito à ocupação e tomando parte ativa na defesa do Stop, situado a meros quarteirões do espaço de programação independente.[1]

Do ponto de vista conceptual, o projeto é simples, assim como tendencialmente o são os projetos mais impactantes. Este, em particular, envolve a reconstrução dos tacos de madeira que constituíam os soalhos de duas divisões de uma casa burguesa desabitada que, desde o seu abandono, tem sido refúgio, como nos indicam no chão as marcas de um incêndio; e que se prevê que venha a ser demolida para muito provavelmente dar lugar a mais um hotel ou edifício moderno desenhado para as classes altas. Com isto em vista, Santiago precisou de muitas noites para construir um estúdio temporário no edifício — noites nas quais o artista teve de arranjar forma de entrar na casa abandonada sem que alguém se apercebesse, como nos conta a ferrugem das fechaduras derretidas, representadas sob a sua anterior forma na documentação fotográfica que se apresenta no espaço. Para reconstruir aquele belíssimo chão, Santiago numerou cada um dos tacos de madeira: no total, são 5227. Agora na sua nova localização, instalados num espaço de arte contemporânea gerido por um colectivo, os números brancos sobre os tacos sugerem um sentido de perfecionismo de detalhe, de obsessão e de precisão que é presença habitual nos espaços de arte dos dias de hoje.

Ao perfecionismo da numeração opõem-se outros vestígios que cada um dos tacos de madeira carrega: histórias que não sabemos ler, escritas numa língua que se baseia no peso das pessoas e das coisas e que só pode ser entendida emocionalmente, a menos que tenhamos um laboratório ao nosso dispor. Agachada a par dos tacos, vêm-me à cabeça as formas de pensar da minha infância: os momentos em que, entrando em edifícios abandonados, criava fantasias e histórias sobre as pessoas que antes lá tivessem vivido — por outras palavras, os momentos em que historizava, mas da forma como o faz uma criança, sustentada tão-somente no sentimento e na imaginação. Ao numerar os tacos, Santiago transporta estas histórias, fundadas numa noção de toque, para uma narrativa científica conscientemente ocidental, um mundo restrito de informação estritamente organizada, classificada e alfabetizada. Até certo ponto, o artista fá-lo por necessidade logística: como poderia ele reconstruir os tacos exatamente da mesma forma? No entanto, por outro lado, esta opção também acaba por realçar as outras histórias inclassificáveis que resistem à numeração e que apenas podem ser lidas pela imaginação — a fantasia a sobrepor-se ao padrão científico.

O próprio título da exposição revela o vestígio de chamas que interrompem o cuidadoso arranjo dos tacos de madeira, que virá do tempo dos primeiros habitantes do edifício. Presume-se que aquelas marcas remontem a um período mais recente em que a casa abandonada esteve ocupada por alguém que procurava refúgio e também, como é aparente, uma fonte de calor. Santiago diz-me que, a princípio, foram estes os vestígios que lhe chamaram a atenção quando deu início à sua intervenção, em fevereiro de 2023, com o propósito de expor o chão num espaço expositivo.

Ao jogar com as múltiplas camadas destas histórias e das suas classificações e assumir o fogo como o protagonista deste cenário, Um Fogo permite que o espectador construa interpretações e imaginações sobre o plano horizontal destes tacos. A esse propósito, evidencia-se uma tensão específica que se paraleliza àquela que encontramos entre o numérico-científico e o histórico-fantástico: uma tensão entre aquilo que é "legítimo" por lei e aquilo que é "legítimo" por necessidade no contexto da atual crise de habitação. Observando as fechaduras queimadas, podemos imaginar que o artista ocupou esta casa vazia enquanto objeto artístico — a arte a funcionar como um manto protetor relativamente à questão da legalidade da invasão do artista —, tal como outras pessoas o haviam feito por pura necessidade, como o fogo sugere. Ainda assim, o artista, assumindo o cuidado que é regra para uma parte substancial dos movimentos de ocupação,[2] acabou inclusivamente por deixar a casa em melhores condições do que aquelas em que a encontrou. Assim como a fantasia se sobrepõe à ciência, também o ato de cuidar se sobrepõe à jurisdição: para se estar num determinado espaço, é mais forte o direito que se baseie numa noção de cuidado (e de necessidade) do que aquele que, não obstante a sua legalidade, conduza ao seu abandono e à sua ruína. Tal como se lê num dos slogans dos atuais movimentos pelo direito à habitação: "Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa."[3] Aqui, também é importante o facto de o artista não ter sido o primeiro a entrar no espaço: a casa já fora ocupada por necessidade (daí o fogo) antes de ser ocupada para a arte, que agora explora os vestígios daquela necessidade, daquilo que a precedeu e daquilo que a sucederá.

Esta exploração de vestígios está na base da prática do artista, fundada na deriva e investigação do urbano. Como diz Santiago, esta é a sua forma de se "relacionar com a cidade" em que vive e com a sua urbanidade. Não se trata, porém, da sua primeira intervenção da Rua do Heroísmo, no Bonfim, no Porto. Em 2018, Santiago limpou o Palácio Ford, um espaço industrial com área de 800 metros quadrados localizado nas traseiras do Stop, para receber PARA INGLÊS VER_. Esta exposição coletiva inaugurou na semana em que o antigo concessionário automóvel mudou de gerência, o que esteve na base do concurso de arquitetura para o edifício e para o empreendimento imobiliário multimilionário que pode muito bem ser a razão pela qual agora o espaço Stop tem de lutar pela sua sobrevivência.[4]

Poderosa na sua simplicidade, Um Fogo reformula alguns dos mais graves problemas que, no contexto local e não só, se verificam na nossa relação com o passado, o presente e o futuro no quadro atual de uma veloz urbanização, gentrificação e turistificação. Através da metodologia da justaposição, a exposição evidencia que as histórias, a imaginação, o ato de cuidar e a necessidade retêm um poder maior do que o da jurisdição e da classificação científico-obsessiva, particularmente quando esta não cumpre os desejos da imaginação e da consideração — uma reflexão essencial nesta época de crises culturais, sociais e financeiras.

 

Ruben Santiago

Sismógrafo

 

Maria Kruglyak é investigadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022. Atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução EN—PT: Diogo Montenegro.

 

 





 

Notas:

 

[1] A mais evidente manifestação deste posicionamento verifica-se no workshop que Ruben Santiago realizará no dia 21 de outubro de 2023 no contexto da exposição Ornamentation and (is a) crime, com o intuito de produzir um arquivo coletivo de autocolantes e outros elementos gráficos que se encontram na fachada do Stop.

O Stop era um parque de estacionamento que, na década de 1990, se transformou num centro comercial que, entretanto, se converteu num dos centros da cena underground portuense — um hub cultural com 126 lojas que se tornaram estúdios, ateliers e outros espaços artísticos. Após a emissão de uma ordem de encerramento, supostamente devido às condições de higiene e segurança do espaço, os artistas que ali trabalham juntaram-se em protesto pelo direito a permanecer no Stop, urgindo a câmara municipal a assistir na realização das alterações necessárias para cumprir aquelas diretrizes. A notícia do despejo redundou na mobilização da cena artística e musical do Porto, numa luta que já vem de há pelo menos quatro anos. As ordens de despejo foram emitidas no início do verão, mas o Stop conseguiu entretanto persuadir o Ministro da Cultura e a Câmara Municipal do Porto a anunciar a suspensão do encerramento por tempo indefinido.

[2] Historicamente, os movimentos de ocupação surgem nos contextos em que os requisitos capitalistas para se conseguir "competir" no mercado da habitação se tornam inatingíveis ou inviáveis, anexando-se a esta realidade uma recusa perentória de participar num sistema que se considera opressivo. Ruben Santiago aborda o conceito de cuidado não no âmbito das okupas mas sim nos termos da sua filosofia pessoal: "O que eu quero é melhorar, mesmo que temporariamente, as condições destes espaços para os seus atuais ou potenciais e futuros ocupantes, independentemente de serem pessoas que procuram refúgio ou que querem criar colónias de gatos. Neste caso, não foi só questão de remover o chão — também limpei a casa toda." Citado de uma conversa de WhatsApp com o artista (21 de setembro de 2023).

[3] A crise da habitação em Portugal, exacerbada por uma turisficação desenfreada e pela pobreza de soluções sustentáveis da parte do governo, intensificou-se no ano transato, com a subida dos preços de arrendamento em 65 % desde 2015 e em 37 % só em 2022. A idade a que, em média, os jovens portugueses saem da casa dos pais fixa-se hoje nos 33,6 anos, naquele que é o valor máximo no quadro da União Europeia. Ver Catarina Demony, Patricia Vicente Rua and Sergio Goncalves, “Young Portuguese defer dreams as housing crisis bites”, Reuters (26 de março de 2023).

No entanto, de facto, a infraestrutura habitacional já existe — estima-se que, em todo o território português, haja cerca de 750 mil casas desabitadas. Ver Sam Jones, “Portugal’s bid to attract foreign money backfires as rental market goes ‘crazy’”, The Guardian (29 de julho 2023): theguardian.com/world/2023/jul/29/portugals-bid-to-attract-foreign-money-backfires-as-rental-market-goes-crazy.

Para protestar contra esta realidade, vários movimentos, incluindo, entre muitos outros, Stop Despejos, Casa Para Viver, Casa é um Direito e Habitação Hoje, organizaram no dia 1 de abril a maior manifestação pela habitação de que há registo. Meses depois, a 30 de setembro, os protestantes saíram novamente à rua, num novo conjunto de manifestações à escala nacional.

[4] Parafraseado de uma conversa de WhatsApp com o artista (22 de setembro de 2023), na qual se anunciou que o Stop, por enquanto, continuará a funcionar. Ver André Borges Vieira, “Encerramento do Stop está suspenso por tempo indeterminado,” Público (22 de setembro de 2023): publico.pt/2023/09/22/local/noticia/encerramento-stop-suspenso-tempo-indeterminado-2064273. Para mais informações sobre a exposição PARA INGLÊS VER_, ver postfordpalace.wordpress.com.

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