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CATHARSIS

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Isabel Carvalho

 

CATHARSIS é um projeto expositivo que mostra trabalhos de coletivos ativistas que abordam preocupações em torno da água, desde o acesso desigual a esse bem comum até à reivindicação da sua despoluição. Com curadoria de Margarida Mendes integra a Porto Design Biennale 2023 intitulada Ser Água: Como fluímos e nos moldamos coletivamente — a proposta do curador Fernando Brízio, para a edição deste ano.

Poder-se-ia considerar irónico, mas na verdade, em consonância com o tema da Bienal e as preocupações que daí decorrem, a abertura desta exposição, bem como de outras agendadas para o mesmo dia, foi adiada por uma semana. Após um longo verão com temperaturas sem precedentes, estávamos agora sob ameaça da tempestade Céline e de graves riscos de inundação que se confirmaram por todo o país. A associação deste fenómeno meteorológico às alterações climáticas foi apontada por especialistas nos canais televisivos. No entanto, por razões amplamente conhecidas e apesar da previsão antecipada do mesmo, num descrédito total pelos apelos da ciência, ignoraram-se os avisos iniciais. Esta gestão política das consequências constitui o modus operandi atual, que se traduz na normalização dos desastres climáticos remetendo-os para o natural. Alimentar a ignorância, do que é convenientemente naturalizável, resulta na irresponsabilidade global, beneficiando quem capitaliza quer com as causas quer com os efeitos.

Aparentemente em esferas separadas, nunca foi tão urgente ver como a ciência, o ativismo e a criação artística podem convergir e como é possível criarem uma frente organizada que reúna e exponha publicamente diferentes formas de conhecimento que têm vindo a ser negligenciadas, mas que já não podem ser ignoradas. É certo que esta articulação ainda é vista com suspeita, particularmente no contexto artístico. Desde logo, porque o que resulta da interseção da arte com o ativismo coletivo é comummente desvalorizada. Quer seja por ser frequentemente efémera (refiro-me a manifestações perfomáticas ou a trabalhos com materiais naturais em estado bruto); quer pela componente fortemente politizada de reivindicação de causas especificas, frequentemente locais; ou ainda, por não se erguer daí um autor individual, limpo das suas circunstâncias. Já para não falar na separação absurda que remete o artivismo para a esfera da arte popular e do pitoresco, como manifestação de um imaginário ingénuo e pueril. Não nos esqueçamos que foi há cerca de um ano que durante a Documenta 15, em Kassel, onde se apresentavam coletivos artísticos a trabalhar precisamente nesta interseção, que muito se questionou o valor artístico do exposto e até a validade da sua ação em termos práticos, sendo apartado o domínio do simbólico do real, como se este não tivesse uma expressão na forma como o real é moldado.

Nesta bienal, e especialmente em CATHARSIS, encontramos assim convergências, colaborações e espírito comunitário, que contrapõem em alternativa não só o individualismo, na sua artificial existência solitária, numa soberania precária, construída pelo sistema vigente onde prevalece o capital, mas também se evidencia a conexão e a relação em cadeia entre todo o existente. Testemunha-se assim uma forte aliança entre coletivos atuantes localmente em geografias distantes entre si, que se aliam por afinidades políticas, por causas que se identificam serem afinal comuns a todos nós, de entre elas, a defesa urgente do acesso aos recursos hídricos, que se querem limpos, reivindicando-se a regeneração dos seus ecossistemas.

A experiência de CATHARSIS, pela abrangência e profundidade do exposto, é exigente, desde logo, ao nível da perceção, requerendo uma revisão percetiva de quem a visite, passando, a meu ver, primeiramente por uma experiência que remete para audição. Entre o expectável ato de ver diante de uma exposição, começar pelo ato de ouvir, pressupõe que se interrompam os hábitos que nos têm tornado surdos ao que tem vindo a ser dito sobre a atual situação planetária, de uma galopante desigualdade nas condições de vida. Sublinhe-se que CATHARSIS, enquanto “purificação”, quando veiculada a manifestações das quais se elege a sonoridade, é, em termos estéticos, precisamente a que melhor permite uma reeducação dos sentidos e no geral da nossa forma de conhecimento, criando um estranhamento potenciador de autorreflexão e de reposicionamento face ao real. Ora, se atendermos à força energética provinda das manifestações sonoras da própria água no seu fluir, a sua “fala”, percebemos que quem melhor a conhece e a defende, ouve-a, e ergue o seu “falar” discursivo em harmonia com ela. Desta forma, será porventura injusto salientar de CATHARSIS, como um todo polifónico, trabalhos, grupos e os seus campos de ação, excluindo os restantes. Pelo que, gostaria de mencionar aqueles que, de alguma forma, nos seus propósitos ativistas, sobressaíram ao expressar um profundo sentido de pertença harmoniosa e até de identificação para com a água.

A peça, River Breathing (Metabolic Money) de Carlos Monléon, comissariada pela bienal, sendo uma das primeiras, à entrada da mostra e pela sua forma alusiva a uma orelha, serve aqui de metonímia da experiência que proponho em CATHARSIS. Na continuação do seu trabalho mais recente, o artista evidencia também aqui a dimensão material do real, convocando o jogo dos sentidos e preocupando-se em promover a recuperação das sensações na receção artística. River Breathing é uma escultura sonora, em cerâmica com esmaltes de terras raras, que capta a variabilidade do metabolismo de um rio, centrando o sujeito falante nesse rio e no seu ecossistema, que traduz na programação de economias alternativas sob a perspetiva do bem-estar fluvial. Já Serpent River Book, um livro colagem de Carolina Caycedo, de disposição espacial mutante no espaço de exposição, resulta de um longo processo de trabalho onde se encontram reunidos materiais visuais e escritos compilados pelo artista como resultado do trabalho que desenvolveu junto das comunidades colombianas, brasileiras e mexicanas afetadas pela industrialização e pela privatização dos sistemas fluviais. Este livro-instalação, em formato de “acordeão”, como o instrumento, apresenta-se como uma partitura com potencial performativo, onde as vozes plurais, humanas e além humanas, são ativadas. Leonel Vasquez com entre—ríos em Canto de una Abuela del Río Bogotá, evoca o canto das avós, numa ligação dos antepassados humanos com os antepassados geológicos, a partir do som de uma pedra, que gira sobre o seu próprio eixo. Este som/canto é trazido da ancestralidade, para purificar as águas. Num convite à meditação, submergimos no trauma das águas que é também nosso. Maja Escher, perante a escassez de recursos hídricos, e o cultivo intensivo numa zona do país já de si seca, promove e facilita a comunicação simbólica construindo esculturas-engenhos, muito semelhantes a instrumentos musicais, que são ativadas pelos elementos naturais assim como também por humanos. Blanc Sceol (Stephen Shiell & Hannah White) promovem, por sua vez, a escuta de ambientes fluviais, propondo um momento de audição imersiva através de “Orbit”, um instrumento que encoraja a dissolução do eu num encontro quiçá cósmico. A instalação sonora de Othmane Ouallal, integrada no QANAT Collective, apresenta um conjunto de garrafas revestidas com malha têxtil, onde se ouvem testemunhos das estruturas sociais do Oásis do Sul de Marrocos e as lutas contra a seca, num burburinho, quase lamento, que atrai e nos convoca à aproximação das garrafas-transporte.

Neste sentido, CATHARSIS é um encontro de material sonoro e falante, que passa pelo som articulado e pelo inarticulado, pelo formal e pelo informal, miméticos ou facilitadores de sons de origens hídricas, expandindo-se a diferentes códigos linguísticos, também eles visuais, que requerem de nós visitantes aprendizagens diversas e competências que nos permitam reconhecer as suas mensagens polissémicas.

O que resulta na expansão da receção sensorial que nos inspira ao toque, que nos transporta para outras dimensões existenciais (até agora bloqueadas), que nos emociona, para, assim, juntos e em sintonia, nos mobilizar-nos, fortalecendo-se a nossa união planetária.

 

Catharsis

Porto Design Biennale

 

Isabel Carvalho é artista e editora da revista Leonorana.


 

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Porto Design Biennale. Fotos: Bruno Mesquita. Cortesia Porto Design Biennale.

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Porto Design Biennale. Fotos: Bruno Mesquita. Cortesia Porto Design Biennale.

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