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João Onofre: Untitled (in awe of)

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Sérgio Fazenda Rodrigues

 

A exposição Untitled (in awe of), de João Onofre, na Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, em Lisboa, apresenta três obras que se relacionam pelo modo como exploram a ligação entre o som e a imagem. Essa ligação, expressa como presença, como ausência, e como des(sincronia) de um possível encontro, é algo que o artista trabalha há já vários anos. Nesse sentido, do seu corpo de trabalho importa referir, entre outras, a obra Box sized DIE (2007- ), em que uma banda de Death Metal actua no interior de um cubo negro; a intervenção Untitled (2016), em que se coreografa a respiração de Carlos Paredes; a instalação Untitled (orchestral) (2016-2017), em que a luz determina as características do som; ou a obra Untitled (It’s About That Time crystal version) (2023), em que um objecto cristalino materializa o tempo e a intensidade de uma canção de Miles Davis.

A primeira obra que surge na exposição — Barbary Falcon (in awe of) (2023) é composta por uma instalação de vídeo com 10 ecrãs LED, em que se coreografa a apresentação de um falcão-peregrino (falco peregrinus) e o voo que ele enceta. Entre o foco no pormenor e a leitura de uma deslocação encantatória, a figura seduz o observador pedindo a sua atenção e o seu olhar, que se deseja em movimento. A ligação entre a nossa visão e a do animal relaciona o que surge nos ecrãs com o modo como, na penumbra, nos acercamos da obra. Numa aproximação circular que funciona por camadas, como o voo da ave, perscrutamos o centro da instalação e a sua periferia. Nessa deambulação, oscilamos entre a leitura vertical e horizontal de uma hipotética investida, ou de um chamamento de cortejo, que parece pendente e subitamente se agita.

No hiato da circundação, na expectativa do que pode acontecer, somos então assaltados por um som agudo que quebra o silêncio e revela o instinto do animal.

O que vemos alude a uma ideia de vigilância que é inerente à natureza predadora do falcão e que surge invocada pela disposição dos ecrãs, dirigidos para fora, em direcção ao espectador. De igual modo, a edição de imagem a que o artista recorreu, focada no bico, na vista, na penugem e no voo, cria enquadramentos que diferem de vídeo para vídeo, colocando a ave num voo circundante, enquanto nos olha, aventando uma possível cumplicidade com o observador.

A segunda obra que João Onofre apresenta — Untitled (It’s About That Time Corner Piece) (2022-2023), reclama um canto da galeria e ordena um conjunto de objectos de vidro, selados com lacre de diferentes cores. Estes elementos, que antecedem uma outra obra já apresentada — Untitled (It’s About That Time crystal version), dão corpo, também, à respiração que dita a música de Miles Davis. Na verdade, estando na origem dessa outra obra, anteriormente apresentada como um elemento único (numa sequência linear de várias intensidades), o que agora se expõe na galeria surge como um agrupamento de momentos individualizados, com diferentes vazios, formas e posições.

Aqui, se Onofre aponta uma releitura do tempo, encapsulando o ar de cada sopro, trazendo-nos à memória L’air de Paris, de Marcel Duchamp, ele aponta também uma releitura do espaço, operando, no canto, uma pauta tridimensional que espacializa a cadência do conjunto. Intercalando diferentes posições que começam a 35cm de altura, a leitura do todo foi ditada por uma escala de notas que o artista, com o apoio de um maestro, ensaiou.

Cada peça alcança a sua forma pela natureza do sopro, pelo tempo máximo a que a vitrificação acontece (o vidro solidifica ao fim de vinte segundos) e pelas cores do lacre que adopta a referência das imagens digitais (ou dos filmes da obra anterior) —vermelho, verde e azul/RGB. Note-se, ainda, que a natureza do conjunto surge reforçada pelo desenho dos suportes que, ao garantirem o afastamento, acolhem individualmente cada elemento e induzem uma tensão cuidada na suspensão que operam.

Dir-se-ia que, se a primeira obra exorta uma leitura circular, ampla, que nos capta, aproxima e subitamente nos inquieta — trazendo à memória o movimento rotativo de Untitled (Zoetrope) (2018-19), a segunda suspende o som e a imagem, criando uma composição espectral que nos acerca ao canto e inquieta a percepção.

A terceira obra que João Onofre apresenta — Untitled (trio of voices for (João) tenor, falsetto and ASMR – Buckley and Beckett’s Song to the Siren full on rotating platform 4:3 loading shimmer version) (2023), explora um acréscimo de vozes em diferentes formatos, entoadas sempre pelo mesmo cantor.

A canção que escutamos, Song to the Siren (1967), de Tim Buckley, discorre sobre a solidão, a ilusão e os desencantos afectivos dos marinheiros. Buckley fala-nos sobre a fantasia das sereias que, de modo sedutor e ardiloso, esbatem o discernimento e conduzem as embarcações às rochas, ou à morte.

Numa analogia poética à orgânica das relações amorosas, factos e ficções, realidades e desejos, confundem-se numa amálgama de contradições entre a cabeça e o coração. De igual modo, João Onofre edita o som que captou, agregando canto, playback, voz grossa (tenor), voz fina (falsetto), e registo ASMR na mesma pessoa que, num espaço abstracto, sem fundo ou referência, aglutina diferentes modos e identidades, rodando ao lado de um microfone suspenso. Deste modo, a câmara e o observador permanecem estáticos, e o que surge projectado é a acção de alguém que gira ao som das variações de si mesmo. Em verdade e fantasia, a figura fita-nos e entoa uma canção de mágoa que oscila entre a cabeça e o torso, o masculino e o feminino, a vocalização e a sincronização dos lábios.

A ampla circularidade que a primeira obra induz, transforma-se aqui em coisa íntima. Fixamo-nos perante uma projecção que se move para lá da imagem, pois o que se agita e nos alcança reside já no interior. Dir-se-ia que, agora, a exortação do âmago não surge pela ave que a traz, mas provém daquilo que, no fundo, reside em nós.

João Onofre apresenta, assim, uma exposição ímpar, desprovida de agenda, em que a dramatização do som e da imagem, do grito inesperado à coisa segredada, da imagem em fuga, à cumplicidade do olhar cruzado, traduz a dimensão humana que toma a condução de todos os seus trabalhos. De forma única, Onofre explora um lugar de desassossego entre as camadas do que acontece, revelando-se humanamente visceral e sensível — ou como o curador Andrew Renton afirma na folha de sala: “Há sempre uma tensão entre a superfície das coisas e o que se passa por baixo”.

 

João Onofre

Cristina Guerra Contemporary Art

 

Sérgio Fazenda Rodrigues é Arquitecto e Mestre em Arquitectura (Construção), foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolveu, com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da colecção de arte contemporânea do Arquipélago: C.A.C. É fundador, director e curador de Kindred Spirit Projects.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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João Onofre: Untitled (in awe of). Vistas gerais da exposição na Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa 2023. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Cristina Guerra Contemporary Art. 

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João Onofre: Untitled (in awe of). Stills de Untitled (trio of voices for (João) tenor, falsetto and ASMR – Buckley and Beckett’s Song to the Siren full on rotating platform 4:3 loading shimmer version) (2023). Fotos, cortesia: João Onofre Studio. 

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