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Carta a um amigo

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Eduarda Neves

 

Há sempre qualquer coisa que eu devia perceber. Porquê, não sei. Porquê, não sei ainda.

 

Querido amigo, há vários meses que não te escrevo. Estamos cada vez mais próximos dos movimentos contínuos e sem aparente intenção das figuras beckettianas em Quad. Como elas, entramos e saímos do quadrado, repetidamente e pela mesma ordem. Marcações definidas, no limite do vértice. Todos esgotados — escreveu o dramaturgo. O infinito do movimento perpetua-se no infinito da repetição. Sem vestígios de qualquer singularidade, apenas ouvimos o barulho dos passos que se assemelham ao som de ratos a atravessar o espaço. Como na leitura deleuziana, aqueles corpos evitam-se e afastam-se, asseguram o acontecimento. Esgotam o espaço para tornar impossível o encontro.

Gostaria, em breve, de estar contigo. Conversar sobre os últimos esforços do mundo ou, tarefa mais imprevisível, passarmos juntos um dia, em silêncio, a olhar o mar — creio que rapidamente descobriremos o prazer secreto de perder tempo e de como este se deixa abandonar à natureza irregular da água. Talvez seja uma oportunidade de confronto com a grandiosa amplitude de uma outra paisagem e nela encontremos a força para nos reconhecermos.

Quero dar-te nota de que as relações entre arte, terapia e saúde se têm vindo a aprofundar neste país que não é o teu. Todos aspiram contribuir para o bem-estar geral. Promovem debates, redes, políticas, alianças, parcerias e estratégias. Alinham-se os chakras no museu. Em última instância, nada disto interessa, pois, nada esperamos. Apenas mais hesitação e a previsibilidade de tudo. De forma alguma estamos perante o diagnóstico enunciado por Deleuze, para quem o escritor não é o doente, mas o médico de si próprio e do mundo. Seria um equívoco hermenêutico tal aproximação. Não se trata de um caso de delírio pois o museu nunca quis, e não quer, inventar um povo que falta; não estamos perante uma questão de saúde, de combate, mas de operações grotescas análogas aos serviços de venda das empresas publicitárias que cruzam a universitas com o enunciado funesto da psicologia de massas e a alastrada directiva da interioridade. Subjacente às preocupações gloriosas desta espécie de “intelectuais” — talvez os mesmos que Michel Foucault diz nunca ter encontrado em lado algum — assistimos à tentativa de imitar um certo ascetismo, mas que, todavia, não passa de um esquema kitsch construído para alimentar as designadas sociedades de conhecimento e a popularidade terapêutica do autoconhecimento, agora vertido para a esfera do consumo. Caminhamos para o Ocidente de Cioran, uma podridão que cheira bem, um cadáver perfumado.

Como habitualmente, as condições propagandísticas de dominação e do conformismo crítico exprimem-se de inúmeras maneiras, glorificando uma certa naturalização do altruísmo e do virtuosismo interior. A arte e as suas instituições contribuem, agora, para evitar a queda no mal, convertem-nos ao misticismo biológico da generosidade e potencializam experiências constitutivas do bem. O poder pastoral sempre apresentou múltiplas formas, incluindo a transfiguração clínica. É ela que, incorporando-se na prática artística, a converte em mais uma tecnologia normalizadora de controle. Querido amigo, é a sombra daquele poder que funde médico e artista na retórica da salvação. Há todo um patronato corporativo que formaliza, organiza, disciplina, fixa corpos e comportamentos. Michel Foucault, sempre oportuno, mostrou-nos que, a partir do século XVIII, a criança, o doente, o louco e o condenado se tornaram objecto de meticulosas descrições individuais e biográficas. Dado que cada um se tornou um caso, as crónicas escritas sobre a existência funcionam como processo de sujeição que transformam o indivíduo, simultaneamente, num efeito e objecto do poder e do saber. Insistimos em descrever tipos psicológicos e a desenhar a sua história no interior do sistema de poder que a mantém, produz e reproduz. A narrativa do sujeito, do eu e das suas mitologias continua a modelar o nosso inconsciente histórico.

Entre a reflexão dos estoicos (sobre a instabilidade da alma, a ira e a serenidade, o desejo e o medo ou as dificuldades do exercício do poder­) e o proclamado coaching que já invadiu a prática de alguns artistas-treinadores sem capacidades atléticas, é a eficácia das indústrias culturais e a mercantilização do entretenimento espectacular que persiste. A experiência actual da finitude deixou de se constituir na relação com o tempo; antes se aliena na exibição da procura de um qualquer equilíbrio interior, de um secretismo aparentemente inquietante que procura o bem-estar. Continua o excesso de confissão pública, a partilha de segredos sem que nada exista em comum. Querido amigo, lembro Derrida e a reivindicação de um espaço público que assegure o direito ao segredo. Trata-se da saúde mental e de restabelecer a confiança, dizem. O museu, um dos maiores espaços simbólicos de exclusão, promete contribuir para afrontar estigmas. A este propósito leio que, após visita guiada à exposição feita por uma artista, seguir-se-á um “cocktail de networking com participantes e oradores.” Sabemos que é através do máximo afastamento destes itinerários que a saúde mental deve criar as suas linhas de fuga e convocar o voo de Zaratustra. A ecologia da escuta e dos afectos, como agora se diz, querido amigo, tem vindo a fazer escola. A guerra, também. Esta sofística armada, nas palavras de Peter Sloterdijk — o prolongamento da arte de ter razão por outros meios — tem-se vindo a afundar em monumentais sacos de lixo da chamada sociedade de informação. Entre a morte incorporada na tecnologia e a artilharia das indicações terapêuticas que o mundo da arte nos fornece sob orientação de sábios especialistas, é a astúcia da razão que se faz anunciar. A vocação profética do conceito hegeliano da morte da arte não se reduz à impossibilidade de esta se constituir como uma das manifestações da verdade — a crescente ontologia da decadência a que assistimos expande-se à trivialização deste campo, à equivalência generalizada entre valor de uso e valor de troca e ao acentuado privilégio que a banalização do sentido ocupa. Perante a inacessível ressurreição ou a dificuldade em conseguir resgatar o mínimo optimismo possível, comités, directores e curadores demitem-se e são demitidos. Micro-poderes circulam ao serviço das guerras de subjectivação e políticas incorporadas nos seus mecanismos institucionais. O esquecimento da origem e da interrogação genealógica perpetua aqueles dóceis súbditos sociais que, quando são transformados em utensílios, rememoram a história e aí só encontram aparentes razões imediatas.

O que constato, querido amigo, é que cada vez mais o território da arte ocupa um lugar central no palco da teatralização dos governos, das lutas e estratégias geopolíticas nacionais e internacionais — intensifica-se o funcionamento da arte ao serviço dos aparelhos ideológicos do Estado. Desde que o excitado discurso em torno do fim da ideologia se propagou, nunca mais ela parou de circular a enorme velocidade. Integrando a autocrítica no próprio sistema, a reivindicação converte-se em artigo de luxo. A boa ordem está segura. E não avisou Althusser que a sociedade segue a ideologia, como carros movidos a gás? A inexistência de autonomia das condições sociais de produção das obras e da prática artística revela o olhar cínico do monopólio em relação à arte. Releio uma obra de Theodor Adorno, autor fora de moda. Sei que também aprecias e não resisto a transcrever-te este breve excerto:

“Com o liquidar da sua oposição à realidade empírica, a arte torna-se parasitária. Ao assumir-se ela própria como realidade que deverá substituir a do exterior, tende a referir-se à cultura como se do seu próprio conteúdo se tratasse.”[1]

 

Contaram-me que uma artista abandonou a prática à qual tantos anos se dedicou. Nas palavras dela, “já não sou artista.” Deixar de ser. Recordo-me de ter visto um documentário sobre a obra e percurso de Joseph Beuys no qual o artista afirma que para Picasso a arte seria uma arma contra os nossos inimigos. Todavia, pergunta Beuys, quem são os nossos inimigos? Como na canção do saudoso José Mário Branco, querido amigo, há sempre qualquer coisa que eu devia perceber. Porquê, não sei. Porquê, não sei ainda.

 

 

 

Eduarda Neves é professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.

 

A autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico.

 

Imagem: Simone Forti, Bottom (still), 1973. 

 

 

 


Nota:

[1] Theodor Adorno — Sobre a indústria da cultura. Lisboa: Editora Angelus Novus, 2003, pp. 60-61.

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