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Atelier-Museu Júlio Pomar: 10 anos

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Catarina Rosendo

 

O futuro no Atelier-Museu Júlio Pomar

Entrevista a Sara Antónia Matos

O ano que agora finda assinala o décimo aniversário da abertura das portas do Atelier-Museu Júlio Pomar, uma estrutura que pertence à rede de equipamentos culturais da Egeac, localizada no centro histórico de Lisboa. O edifício começou por ser recuperado pelo arquiteto Siza Vieira para servir de atelier para o seu amigo Júlio Pomar, mas este nunca chegou a usá-lo como tal. Após a sua conversão em instituição museológica, a matriz de atelier enquanto lugar de experimentação foi tomada como fundamento substancial da programação delineada pela diretora Sara Antónia Matos. As atividades desde então desenvolvidas têm-se dirigido para o estudo e divulgação do espólio de Júlio Pomar, para o acompanhamento das ações de preservação do legado do artista, para a delineação de uma estratégia de comunicação que tem em particular atenção as escolas e as comunidades científica e envolvente, e para o diálogo crítico da sua obra com artistas de diferentes latitudes plásticas, conceptuais e geracionais. O propósito, esse, é o de questionar e atualizar a herança deixada por um dos artistas mais relevantes da contemporaneidade portuguesa e tomá-lo como pretexto para reflectir sobre as práticas artísticas de hoje e os novos desafios que cabem ao meio artístico como um todo. A Contemporânea falou com Sara Antónia Matos sobre estes assuntos e também sobre o modo como perspetiva a próxima década de vida da instituição que dirige. 

 

Catarina Rosendo (CR): Dez anos passam depressa, não é? 

Sara Antónia Matos (SAM): Passam. Por um lado, fez-se tanta coisa que parece não caber em dez anos. Por outro, olho para trás e não dei pelo tempo passar. Dentro das limitações, que existem em qualquer projecto, acho que se conseguiu realizar muito e inscrever o museu na rota da arte contemporânea.

CR: Como foi definido o projecto do Atelier-Museu?

SAM: Tive a extraordinária oportunidade de programar do zero e propor aquilo que queria e que pensava ser útil ao museu. Houve também a feliz coincidência de o Júlio Pomar acreditar na orientação que escolhemos para o museu e dar-nos carta branca. Pensámos em não restringir o equipamento à obra do Júlio Pomar, mas trazê-la para a contemporaneidade e relacioná-la, não com os artistas da sua geração, ou da geração anterior, mas com artistas das gerações seguintes. Tratou-se de fazer um caminho prospectivo: olhar para o que ficou depois do Pomar, isto é, perceber como é que ele tinha deixado raízes ou lançado sementes que os artistas contemporâneos continuavam a trabalhar, que conceitos continuavam a ser trabalhados hoje, como é que se podiam estabelecer relações com as gerações seguintes. Nesse trajecto, fomos percebendo que havia uma clivagem acentuada de gerações.

CR: Em que sentido? 

SAM: Lembro-me, por exemplo, de o Julião Sarmento dizer, depois de o termos convidado a expor no Atelier-Museu, que isso para ele era uma surpresa, porque para a sua geração o Júlio Pomar era um artista a abater. Tinha tido um determinado sucesso, estava em várias coleções institucionais, e as novas gerações queriam demarcar-se das gerações precedentes, afirmando novas formas de se posicionar. Inicialmente houve alguma dificuldade em fazer estas relações com a contemporaneidade e com as gerações seguintes, mas hoje acho que essa espécie de clivagem está diluída. Actualmente, sentimos por parte das gerações muito mais novas de artistas não a afirmação da necessidade de corte, mas a curiosidade para se relacionarem com a obra do Pomar, que no fundo é já um artista histórico. Primeiro trabalhámos com o Rui Chafes, depois com o Julião Sarmento, o Cabrita Reis, a Luisa Cunha, o Hugo Canoilas, a Sónia Almeida. Pelo meio houve um projeto com a Salomé Lamas, que partiu do conjunto de desenhos que o Pomar tinha feito para o Corpo Verde, de Maria Velho da Costa e fez uma instalação com uma projecção. Pelas exposições com gerações mais novas passaram também a Sara Bichão, a Rita Ferreira, entre outros e outras artistas. Fomos descendo as gerações até perceber que essa clivagem já não existe. E fomos compreendendo as sementes conceptuais e formais que o Pomar foi largando nas gerações seguintes. Júlio Pomar era um artista muito curioso e como tinha o seu atelier em frente ao museu, pudemos trabalhar lado a lado. Quero dizer que íamos batendo à porta dele, conversando e explicando o que estávamos a fazer. “Estamos a pensar fazer assim”, e ele dizia, “Eu não quero saber, a minha obra acontece aqui neste rectângulo; fora dele, é com vocês.” 

CR: O rectângulo era o atelier dele, em frente ao Atelier-Museu?

SAM: Não, o retângulo era a tela. É interessante reflectir sobre o que essa expressão significa, porque hoje os artistas sabem como e onde querem expor, sabem como querem documentar, que discursos querem associar à sua obra, etc. Para o Pomar, e os artistas da sua geração, era outra coisa. “Fora do retângulo da minha tela é com vocês, vocês é que sabem como é que hão de enquadrar”, dizia-nos ele. 

CR: Isso é sugestivo acerca do modo como os artistas se veem enquanto profissionais a trabalhar no meio, ao longo de diferentes gerações. 

SAM: As gerações mais novas estão num caminho de profissionalização evidente e muito importante. Até mesmo na documentação, nos seus arquivos, na forma como os constroem, a diferença é notória. Na altura de Júlio Pomar, fazia-se a obra e depois ela dispersava-se, ia para exposições ou para coleções. Não havia a mesma preocupação que há hoje com a documentação, os arquivos, as estratégias para a comunicação da obra ou da própria figura do artista. Esses são aspetos que hoje os artistas controlam e muito bem, em alguns casos. Sabem onde, como e quando querem expor. Por vezes, o Pomar entrava no Atelier-Museu e referia: “Eu entro aqui e vejo a minha obra como se não tivesse sido eu a fazê-la.” Isso para ele era de um gozo tremendo! 

CR: Quais são os desafios em trabalhar a obra de um artista a nível institucional? 

SAM: O primeiro grande desafio é conseguir ter uma larga compreensão da obra do artista. Ao longo destes dez anos, fomos verificando que mesmo os profissionais das artes, nomeadamente os curadores, não têm um conhecimento alargado sobre a obra de Júlio Pomar, que morreu com 92 anos e tem sete décadas contínuas de produção. Mesmo para nós, que dirigimos o equipamento e que conhecemos mais em pormenor a coleção depositada, há sempre muita coisa para desbravar e investigar. Estamos sempre a atualizar a informação, a localizar obras, a sistematizar documentação. Continuamos a trabalhar no terceiro catálogo raisonné, que implica localizar obras, fazer a sua documentação fotográfica e os currículos das obras. Não é um trabalho infinito, mas é contínuo e de fôlego. 

A estratégia que delineámos no Atelier-Museu passa por investigar determinadas componentes da obra e do depósito, à medida que se fazem exposições monográficas, temáticas ou por períodos do artista. Nunca conseguimos abranger a totalidade da produção, porque muitas coisas permanecem em cadernos que ainda não conseguimos abrir, ou porque não estão fotografadas, ou porque estão dispersas por vários locais ou colecionadores. É uma pesquisa em várias frentes, nos vários domínios e meios artísticos, na pintura, no desenho, na serigrafia, na gravura, na cerâmica, etc. Optámos por fazer isto tendo em conta que o Atelier-Museu não permite abordar tudo de uma vez. 

CR: Em que sentido?

SAM: É um espaço físico limitado. Não podemos ter tudo em exposição de uma só vez. Portanto, vamos trabalhando determinados âmbitos da obra, com a colaboração dos curadores e de outras pessoas que vamos convidando e envolvendo. E a partir daí vamos colhendo dados, preenchendo as lacunas. 

CR: Qual o papel atual da Fundação Júlio Pomar? No início, ela doou um conjunto de obras ao Atelier-Museu, mas agora está em processo de extinção.

SAM: A Fundação foi criada pelo artista, e este doou à fundação um conjunto de obras da sua autoria, às quais os herdeiros acrescentaram outras obras. Esse conjunto de obras está hoje em depósito no Atelier-Museu. 

CR: E o que acontece a esse depósito com a extinção da Fundação? 

SAM: Os estatutos preveem que, em caso de extinção da Fundação, a coleção fique propriedade da Câmara Municipal de Lisboa com vista a ser guardada, trabalhada e divulgada pelo Atelier-Museu Júlio Pomar. Foi isso que aconteceu: a Fundação, considerando que já não podia acrescentar muito mais ao trabalho que o Atelier-Museu estava a desenvolver, decidiu extinguir-se. Com essa extinção dá-se a transferência deste depósito para o museu, que passa a ser ou constituir uma doação. 

CR: Para além das obras de arte, o que acontecerá ao espólio documental? 

SAM: Faz parte do depósito e está também a ser integrado no espólio do museu, o que nos permite realizar estudos com mais profundidade, estabelecendo complementaridades entre obra e parte documental. Para nós, esta decisão de extinção é uma mais-valia e é também uma prova de confiança da parte da Fundação, com quem temos trabalhado em grande articulação. A boa articulação é indispensável, designadamente pela informação que a Fundação detém sobre o percurso e o paradeiro de muitas obras. Posso dizer que, mesmo quando a Fundação concluir o seu processo de extinção, desejamos continuar a recorrer aos herdeiros e a articular-nos com eles da melhor forma. Por estranho que pareça, tendo tido a oportunidade de trabalhar com o Pomar durante cinco anos, não lhe perguntámos tudo. 

CR: Claro. Até porque só quando se começa a fazer uma pesquisa concreta é que se percebe as perguntas que é preciso fazer. 

SAM: Vou dar-te um exemplo disso. Sabíamos, ainda em vida do Pomar, que os murais do Cinema Batalha estavam cobertos e parte da escassa documentação que existia estava no espólio do Atelier-Museu: as fotografias do Ernesto de Sousa e outras sem autoria identificada, uns recortes, uma carta da direção do Batalha a informar o artista que os painéis iam ser destruídos, uns esboços em desenho de quadrícula, entre outras coisas. A Câmara Municipal do Porto chegou a contactar o Júlio Pomar para saber se era possível reconstituir os murais, uma vez que estavam no processo de reabilitação do cinema. Reconstituí-los, ou seja, repintá-los, não era propriamente possível, até porque o Pomar fê-lo com vinte e poucos anos. Ele considerava sobretudo que, mais do que fazer a reconstituição exata da pintura, era importante assinalar e dar a perceber a marca da censura de que os murais foram alvo. Isto para dizer que, tendo nós acompanhado tudo isto, conversámos inúmeras vezes sobre os painéis, mas nunca perguntámos ao Pomar, em vida, se os murais tinham cor. Como é possível? Já depois de ele morrer, houve vários artistas, por exemplo a Sónia Almeida, que nos perguntaram sobre a cor dos painéis e nós não sabíamos responder. Antes da recente descoberta dos painéis ou frescos, aquilo que conhecíamos eram as fotografias, a preto e branco, com um tom sépia, os desenhos a carvão, etc.

CR: Durante tantas décadas, habituámo-nos de tal maneira a olhar para as fotografias a preto e branco dos murais, que essa questão não ocorreu. 

SAM: Exato. Eu própria me espanto porque nunca perguntámos isso ao Pomar. Quando os murais finalmente foram descobertos, foi um esplendor ver as cores daqueles cem metros quadrados!

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CR: Uma das ações que levaram a cabo logo no início das atividades do Atelier-Museu foi editar os textos de Júlio Pomar, que estavam dispersos. Como foi fazer esse trabalho e que resultados é que isso teve? 

SAM: Foi um trabalho de persistência, pois foi preciso recolher e reunir esses documentos, que muitas vezes ainda estavam em papéis de jornal, ou fazer alguma investigação nos arquivos, na Hemeroteca, por exemplo, para deixar o mínimo possível de fora. Foi tudo transcrito à mão para computador, pela equipa do museu. O objetivo era trazer a público esses textos que Júlio Pomar tinha publicado e dar a noção de que ele tinha escrito desde cedo, passando por críticas de arte a textos mais ensaísticos, dando conta que foi uma atividade sempre sistemática da parte dele, com a exceção de um intervalo na década de 60. Na verdade, viemos agora a descobrir textos correspondentes a esses anos, que não foram publicados e estão nos relatórios de bolseiro que o Pomar enviou à Gulbenkian, quando estava em Paris. 

CR: Inéditos, portanto.

SAM: Inéditos. Isso poderá explicar que nesse intervalo de tempo, não tenham existido textos publicados. Mas o nosso objectivo em editar os textos foi torná-los acessíveis e mostrar que tinha sido uma atividade continuada. Convidámos a Maria Filomena Molder para fazer uma abordagem aos três volumes, a que demos o subtítulo Parte Escrita I, II e III, por considerar que a produção escrita do Pomar tem uma dimensão complementar da sua obra plástica. Temos percebido que esse trabalho deu e continua a dar frutos, fazendo-nos chegar a outras ideias sobre a obra do próprio artista. Agora estamos a fazer uma recolha das entrevistas realizadas ao Pomar e futuramente gostaríamos de as publicar. Vai ser um empreendimento demorado, porque também vamos ter de transcrever tudo do papel ou de registos sonoros. 

A missão do Atelier-Museu é dar conta das várias vertentes da obra de Júlio Pomar, seja na parte escrita, seja na parte visual, ou até na dimensão sociológica e política. A exposição de Júlio Pomar em torno do retrato, mostrava muito bem as relações dele com personalidades da política, do espetáculo, do teatro, das artes. É um artista, cujo legado, nos permite refletir sobre as várias dimensões da realidade e da vida. 

CR: A vossa linha editorial inclui os catálogos das exposições e ainda uma coleção dedicada a entrevistas feitas a artistas.

SAM: Geralmente não fazemos exposições sem catálogo, porque as publicações constituem ferramentas e documentos insubstituíveis, para os autores, para os públicos e para as instituições. Envolvem uma produção importante de conteúdos assinalável, que permite compreender a obra de Júlio Pomar, as dos artistas convidados, as relações entre as diversas gerações, as diferentes temporalidades e contextos. Enfim, são ferramentas para o agora e para o depois, para a história da arte. Como referiste, editamos também as entrevistas de fundo, com os artistas que convidamos a trabalhar connosco. A ideia surgiu com uma entrevista que fizemos ao Júlio Pomar e que se estendeu por cerca de um ano e meio. Achámos que isso revelava a voz do artista, sem o crivo do mediador, ou apenas com um crivo mínimo, criando uma cumplicidade singular com o leitor. Sabemos que as vozes dos artistas são diferentes, no tom, na gravidade e na leveza, na proximidade e na distância que criam face ao leitor, daquelas que podem trazer os especialistas ou teóricos que escrevem sobre arte. Entrevistámos o Rui Chafes, o Julião Sarmento, o Cabrita Reis, a Luisa Cunha, o Hugo Canoilas, a Salomé Lamas. Também entrevistámos o [crítico de arte] Alexandre Melo, que organizou uma exposição no Atelier-Museu e que conhece um período da obra do Júlio Pomar muito relevante, correspondente à relação do artista com o Brasil nos anos 1980. A partir daqui, e o Alexandre Melo já faz parte dessa leva, estamos a alargar essas entrevistas para outros profissionais das artes. 

CR: Curadores, críticos? 

SAM: Curadore(a)s, Historiadore(a)s, críticos de arte... Queremos alargar a outros domínios de acção no campo das artes, porque consideramos que isso pode proporcionar um conhecimento do meio também diferente. O ponto comum entre os entrevistados é terem trabalhado com o Atelier-Museu, e portanto, relacionarem-se ou terem estado envolvidos com Júlio Pomar e a sua obra, em algum momento. 

CR: O Atelier-Museu promovia um prémio de curadoria que, entretanto, acabou, não foi?

SAM: O Prémio tinha uma periodicidade bienal e foi lançado num momento em que ainda não havia prémios de curadoria. Partindo de uma obra ou referência a Júlio Pomar, o Atelier-Museu propunha que os curadores se candidatassem com um projeto curatorial, que era depois selecionado por um júri independente. O Prémio compreendia orçamento, apoio técnico e operacional para a concretização da exposição e para a realização de um catálogo. No fundo, o Atelier-Museu assegurava os meios para se fazer um primeiro trabalho em contexto real, com todo o apoio técnico e científico. Passados seis anos e tendo surgido posteriormente um prémio semelhante nas Galerias Municipais (concretamente para a Galeria da Boavista), considerámos que as oportunidades para os curadores mais jovens começavam já a difundir-se e não fazia sentido ocupar os vários espaços da Egeac com o mesmo propósito.  

CR: O prémio de curadoria também tinha uma linha editorial própria.

SAM: Sim, fizemos três catálogos, relativos aos três prémios de Curadoria do Atelier-Museu, coordenados pelos curadores que ganharam os respetivos prémios. Existem ainda os livros de atas, que são produzidos a partir das conferências que se organizam no Atelier-Museu, anualmente ou de dois em dois anos. Os primeiros ciclos de conferências foram dedicados à arquitectura, lato senso, visto ser um tema de base para o Atelier-Museu, que é desenhado pelo arquitecto Álvaro Siza Vieira. Outros versaram a temática da curadoria, a ideia de “Fim de uma verdade objectiva”, os arquivos artísticos/espólios documentais. Temos procurado que os ciclos tenham uma publicação correspondente e temos a expectativa de que as atas referentes ao ciclo dos arquivos/espólios documentais seja publicado em breve. Queremos que esses livros testemunhem as abordagens e as discussões ocorridas nos encontros e debates, procurando que instiguem e estimulem mais investigação.

CR: Nestes dez anos, em que é que o tecido institucional mudou, na tua perspectiva? Em 2013, quando o Atelier-Museu surgiu, o panorama artístico era diferente do que é hoje. 

SAM: As coisas mudaram muito. O mundo da arte está a mudar em diversos aspectos e isso só é positivo porque os artistas, os diferentes profissionais e as instituições estão todas muito cientes da importância da sua atuação - estética, política, sociológica, financeira, etc. - e da necessidade de colaboração entre elas próprias. Dito de uma forma geral, penso que há uma consciência alargada de que a produção e a divulgação artística são relevantes na construção de uma sociedade mais ampla, justa e diversa. Mas o universo da arte está a mudar também em aspectos mais concretos, nas tipologias de exposições que se concebem, no envolvimento de recursos (cada vez com maior preocupação de sustentabilidade), nos suportes artísticos, etc. Há toda uma dimensão performativa de investigação, produção, programas públicos, entre outras acções, associada às exposições. As temáticas também mudaram, as preocupações dos artistas também mudaram e em certo sentido muito positivamente, porque são mais abrangentes das novas narrativas e das novas questões que são também as da sociedade. O mundo da arte está a mudar significativamente, no sentido positivo. Essas mudanças também têm colocado desafios importantes ao Atelier-Museu. Estamos a convidar, já pela segunda vez, um colectivo de artistas para trabalhar connosco, algo que já aconteceu na última exposição, “Guardar os olhos no bolso”, em torno do Inland Journal, uma publicação editada pelo André Cepeda e o Eduardo Matos. Estes coletivos e as suas formas específicas de trabalho fazem repensar a ideia de autoria, de produção a várias mãos, a partir de diferentes campos disciplinares. Em 2024, como parte do programa de celebração dos cinquenta anos do 25 de Abril, convidámos o coletivo Osso, que vai também trabalhar a ideia do coletivo artístico, da participação e da mediação da produção cultural, a partir de registos sonoros que Ricardo Jacinto, que integra o coletivo, captou no atelier de Júlio Pomar enquanto o artista estava a pintar. As configurações de exposição que nos estão a ser propostas ou os programas associados, performances, concertos e intervenientes de diversas áreas de ação obriga-nos a rever modelos de produção, de receção das obras, de comunicação. Estas transformações são um desafio para o Atelier-Museu e interessa-nos. Estes processos artísticos que agora nos chegam miscigenam-se e transitam entre a performatividade, a escrita, o pensamento, a investigação, os arquivos, a curadoria, o som, e tudo isso implica novos modelos de produção de arte, de exposições e de contato com as obras. Por sua vez, estes desafios obrigam-nos a pensar como conseguimos responder a essas propostas, tendo em conta que o Atelier-Museu é um equipamento limitado em termos físicos.

CR: Mas é um sítio muito plástico também, não é? Tem uma identidade muito própria, oposta ao white cube. Qualquer coisa que aconteça no Atelier-Museu terá de levar em linha de conta que é um sítio muito investido arquitectónica e simbolicamente. 

SAM: Absolutamente. Por um lado, a sua singularidade arquitectónica traz limitações incríveis, que nos testam enquanto equipa e enquanto estrutura. Não conseguimos, por exemplo, diminuir a luz a ponto de criar escuridão, por isso o museu não é o sítio indicado para fazer projeções. Também poderá não ser o sítio mais adequado para realizar uma performance. Não temos auditório para os programas públicos, tudo acontece nos espaços de exposição. São formatos que vão sendo testados e que com o apoio da Egeac vamos melhorando e procurando tornar cada vez mais operacionais. Este museu é de facto um lugar muito singular, com uma arquitetura muito singular. Chamo-lhe “atelier” no sentido da experimentação e do ensaio, que para mim é também o cerne do exercício curatorial. A curadoria também envolve um espaço de ensaio das ideias, das formas de exposição, das formas de apresentação e de receção pública. Foi por ter em mente esta vertente de ensaio ligada à produção da arte e da curadoria que decidimos manter no nome do Atelier-Museu a palavra “atelier”. 

CR: Que nunca chegou a ser, certo?

SAM: Nunca chegou a ser um atelier. A dada altura, o Pomar decidiu que, com a idade com que estava, preferia continuar a pintar no seu próprio espaço e, portanto, o Atelier-Museu seria um espaço museológico. Tivemos a oportunidade de discutir isso em conjunto e continuo a achar que a ideia de atelier como lugar de investigação, ensaios, teste e experimentações tem sido fundadora para a programação deste equipamento. Em certo sentido, a ideia de atelier envolve a possibilidade de falhar, testar, derivar, errar, desviar, etc., muito mais profícua no domínio das artes e da cultura, do que os resultados fechados. Cria outra forma de estar dentro do museu e que me parece vital na próxima década, para os artistas, para os públicos e para as sociedades vindouras. 

CR: Como é que o Atelier-Museu trabalha os públicos? Como definem as estratégias de comunicação e de captação de públicos, tendo em conta que trabalham para públicos muito diferenciados, desde as pessoas mais conhecedoras da arte contemporânea àquelas que vivem nas redondezas?

SAM: A intenção das instituições trabalharem para todos os públicos é, em parte, uma ambição difícil de concretizar. É importante ter essa ambição, ser uma instituição inclusiva e trabalhar nesse sentido, mas há sempre públicos mais específicos aos quais as instituições se dirigem com mais premência. No caso do Atelier-Museu são, por exemplo, os públicos universitários, que recebemos muitas vezes em aulas de pós-graduações ou seminários (Colégio das Artes de Coimbra, Faculdade de Belas-Artes da Universidade Lisboa, FCSH-NOVA, entre outras). Há também uma relação estreita com as escolas secundárias e todos os anos desenvolvemos projetos de continuidade com algumas dessas escolas a partir das exposições que estão patentes no museu. A continuidade implica que os alunos trabalhem os conteúdos de determinada exposição em diversas sessões e, ao fim de três meses, apresentam os resultados no Atelier-Museu, no centro da exposição em causa, com as obras de Júlio Pomar. Essa experiência de «Ida e volta ao museu» é uma experiência enriquecedora para eles e já decorre há dez anos, tirando os da pandemia. 

Com a mesma longevidade, permanece também uma relação com os vizinhos. Apercebemo-nos que são pessoas com alguma idade, que tinham ouvido falar do Júlio Pomar, mas não percebiam exatamente o que o museu fazia, nem qual tinha sido a importância do pintor. Criámos propositadamente para esse público, um programa de visitas que acontece regularmente, a que chamámos “Porta-a-Porta com o Vizinho”. Percebemos que, para este público, não adianta comunicar por email ou pelas redes sociais. Por essa razão, designámos uma pessoa no museu que tem o cuidado de fazer cartas e convites impressos, vai levá-los à porta de cada pessoa, fala com cada uma e explica o que vai acontecer. E as visitas acontecem! São gestos pequenos, mas que fazem diferença no contexto do bairro. 

Também temos outros públicos que vêm por via dos programas que fazemos em relação à arquitetura. Digamos que cada ocasião exige que se encontrem formas próprias de comunicação e envolvimento das pessoas.

CR: E como vão ser os próximos 10 anos do Atelier-Museu Júlio Pomar?

SAM: Assim como o mundo da arte contemporânea está a mudar, os desafios vão-se colocando à nossa frente. Uma das mudanças que antevejo é a emergência de novas formas artísticas, novos modos de trabalho e novas propostas de exposição (que já estão a acontecer, por via dos próprios artistas e dos coletivos). Essa é uma diferença e um desafio que estamos a abraçar, e que exigem das instituições outros tipos de dinâmica. À medida que os anos forem passando, outras modalidades e outros desafios irão colocar-se. Trabalhamos com a convicção de que queremos envolver um número de pessoas maior e mais diversificado. Penso que o trabalho do Atelier-Museu tem sido marcado por isso, convites a diferentes curadores, artistas, conferencistas, ensaístas, performers, pensadores, e que envolvem diferentes gerações, géneros, assuntos, preocupações e áreas disciplinares. O caminho vai sempre passar por este tipo de colaborações com diversos profissionais. As novas modalidades artísticas e expositivas estão a aparecer. Não diria que as exposições com pinturas na parede estão a acabar, mas os novos desafios na produção das obras e das exposições implicam complementos como os programas públicos, as performances, as ativações, etc. Vamos continuar a fazer uma exposição anual e monográfica de Júlio Pomar, desbravando o seu espólio, mas com essa preocupação de também manter a atualidade na abordagem. Estamos atentos, portanto! 

Júlio Pomar gostava de olhar para o futuro, mais do que para trás, e confesso que sempre achei que ele tinha a capacidade a ver, não o que está na tela, mas através dela, o que está por vir. Espero que na próxima década ele nos empreste o seu olhar penetrante, para continuarmos a perscrutar o futuro no Atelier-Museu Júlio Pomar.

 

 

Sara Antónia Matos

 

Atelier-Museu Júlio Pomar

 

Catarina Rosendo [Lisboa, 1972] Historiadora da arte. Investigadora Integrada do Instituto de História da Arte [FCSH-UNL]. Desenvolveu, entre 2014 e 2017, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea [Almada]. Co-autora do filme sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar [2008]. Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio [ex aequo] da Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 [2007]. Actualmente, lecciona no Mestrado em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes — Universidade de Coimbra.

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico. 

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(2018 Luisa Cunha) AJS-AMJP1807-K (9782)
(2017 Pedro Cabrita Reis) AJS-AMJP41-A65 (0476)

Vistas gerais das exposições no Atelier-Museu Júlio Pomar. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC.

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