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Bienal de Gotemburgo 2023: Forms of the Surrounding Futures

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Bernardo José de Souza

Look into the darkness as one looks into the future

Concebida como uma sorte de mise-en-scène em quatro atos, a Bienal de Gotemburgo 2023 — Forms of the Surrounding Futures — convida o público a deambular por topografias acidentadas e percorrer espaços expositivos como quem atravessa portais e alcança dimensões paralelas ao tempo presente. As paisagens divisadas por esta mostra não apenas contrastam experiências estéticas heterogêneas, como descortinam problemáticas latentes na arena contemporânea, quais sejam, a centralidade do corpo nas lutas políticas identitárias; os ecossistemas que se precipitam em meio ao vórtex capitalista; as cisões ontológicas a contrapor cultura e natureza/humanidade e animalidade na cultura ocidental; ou mesmo a conflituada relação com narrativas históricas, bem como com as utópicas ou distópicas projeções de futuro. 

Ao propor novos arranjos estéticos e políticos, nos quais uma pletora de obras escultóricas tornam os sentidos ferramentas soberanas à navegação nessa Bienal, o curador João Laia enseja o público a encontrar familiaridade naquilo que parece estranho e estranhamento no que parece familiar. Em meio a este cenário tão elusivo quanto misterioso, o caráter fenomenológico da exposição se impõe ao teor eminentemente discursivo das práticas curatoriais contemporâneas. E uma vez que o léxico visual da mostra desconhece noções binárias de normatividade e desvio, normalidade e aberração — sobretudo informado pelo comportamento queer, quer nos chamados âmbitos da cultura ou mesmo da natureza —, as obras em exposição se relacionam de forma simbiótica, a interagir num campo semântico em permanente estado de transformação.

No centro da cidade, as obras em exposição na Göteborgs Konsthall funcionam como uma espécie de abre-alas ao projeto — ali estão dados os fundamentos curatoriais da Bienal, que não raro parte de universos de ficção (científica) para então especular sobre as muitas realidades do tempo presente. Ao cruzar o portal de acesso ao interior do edifício, o olfato é aguçado pelas notas metálicas a emanar da obra etérea de Iris Touliatou, estabelecendo de pronto uma relação sensorial com a mostra. Logo na sequência, ao imergir num cenário de luz e sombras que se impõe verticalmente no grande hall, o corpo do visitante torna-se um elemento visceral em contato com as demais obras:  o vídeo de Ana Vaz, que trata do desastre nuclear de Fukushima em meio a um jardim florido e fogos de artifício; a escultura/criatura de Guadalupe Maravilla, que se impõe como santuário feito de entes híbridos, bióticos e abióticos; e as esculturas em tecido de Outi Pieskique, pendendo do teto e conformando um pano de fundo cenográfico repleto de espaços vazios, à espera da chegada dos visitantes e seus corpos igualmente estranhos.

Em uma das salas ao fundo, a escuridão a envolver a obra de Osías Yanov tão-somente nos deixa ver os contornos de tecnologias de controle e prazer projetadas pelas sociedades contemporâneas — catracas high tech, aparatos S&M, aspiradores-robôs e penas de pavão coexistem em aparente harmonia, como sobras ou restos da aventura humana sobre o planeta. Já na sala contígua, uma imensa imagem em raio-x do artista Tarik Kiswanson retrata indumentárias vestidas por indivíduos cujas vidas foram invisibilizadas através da história; e, por fim, justo à sua frente, um vídeo de P-Staff revela a brutalidade humana na face da Terra vis-à-vis à superfície inóspita do planeta Vênus — tintas ficcionais ganham materialidade histórica na obra destes dois artistas cujos repertórios estético e político se avolumam em planos quase escultóricos, embora essencialmente bidimensionais.

 

Ana Vaz, Atomic Garden, 2018
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Rasmus Myrup Performance Gibca 2023_Photo_Ellika-Henrikson_111

 

Durante o final de semana de abertura da mostra, duas performances tiveram lugar no exterior da Konsthall, em espaços públicos ao ar livre: Ania Novak, posicionada no alto da escadaria de um prédio de feições fascistas, proferia um poético manifesto sobre o desmantelamento das noções de gênero a partir da linguagem, enquanto na extremidade oposta do terreno, na praça central, Adam Christensen usava sua voz e seu corpo como veículo narrativo, a um só tempo biográfico e ficcional.  

Distante dali, numa antiga usina de energia às margens do rio, convertida na Röda Sten Konsthall, diversas capas narrativas se acumulam e sobrepõe ao longo dos quatro andares da planta industrial. No rés do chão, um conflagrado tabuleiro de peças escultóricas, em vídeo e sonoras criam uma atmosfera de excitação, curiosidade ou mesmo apreensão. Corpos humanos, animais e quiméricos desempenham suas coreografias em aparente isolamento, embora imantados pela respiração da criatura amorfa que jaz latente em meio ao grande hall: a obra de María de Jerez dá o diapasão para que as demais entidades coexistam no mesmo espaço, orquestradas como atores de um movimento operístico no qual o humano se vê obrigado a reagir a uma pletora de estímulos visuais, olfativos e auditivos, como se embalado por um feitiço pós-humano.

Neste mesmo espaço, personagens do underground desempenham uma coreografia inspirada na linguagem de libras, interpretada por Luiz Roque em seu filme S; corpos futuristas de Sandra Mujinga movimentam-se insidiosamente num obscuro tríptico logo à entrada; e as figuras monstruosas de Rasmus Myrup, ameaçadoras ou ironicamente estáticas na fila de um nightclub, embalam a narrativa ostensivamente queer a envolver a Bienal. Entre a exasperação, o compasso de espera e a sensação de que algo iminente vá ocorrer, os visitantes se deslocam como se estivessem a caminhar em meio a um espetáculo ou festa que jamais chegou a ser encerrada, ou mesmo foi devidamente iniciada.

Como espinha dorsal desta arquitetura industrial, dotada de rasgos orgânicos pelo curador, a obra sonora de Prem Sahib ecoa pelas escadarias como uma ladainha de ódio cujas vozes extraídas de gay chat rooms, ou mesmo de statements anti-imigração articulados pelas autoridades da Inglaterra, entram em sinergia virtual e acabam por ganhar nefasta materialidade — um portal sonoro que se fecha ao mundo do visível, embora seja fatalmente experimentado pelas vítimas do fascismo em suas formas contemporâneas.

Nos demais andares, nos deparamos com abstrações, com jovens erráticos e engrenagens que precisam ser azeitadas para que o capitalismo siga em marcha, ou mesmo, quem sabe, com novas configurações sociais nas quais a alteridade e a diferença possam prosperar — em que pesem os discursos hegemônicos forjados tanto pelo Ocidente quanto pelo Oriente em seus vieses totalitários.

No último patamar, uma cama coletiva convoca os visitantes a lá se deitar, entregando-se à alucinação pictórica de Joana da Conceição — um teto de figuras que brotam das telas e se apagam ao sabor dos espasmos da retina no compasso de um arranjo eletrônico. Delírio e clarividência sob o signo de uma sociedade a um só tempo brutal e lisérgica. Alucinação como antídoto à aceleração do mundo ou meramente seu efeito colateral?

Na periferia de Gotemburgo, a estação de metrô Angered opera como uma espécie de membro fantasma do corpo da Bienal, ativado por Prem Sahib. Já nas escadas rolantes de acesso, identificamos a sinalização tubular de luzes amarelas que nos conduzem ao underground. E uma vez debaixo da terra, nos encontramos em face a uma vitrine vazia, embora igualmente imantada pela luz amarela. Existe uma porta, ainda que cerrada, e em seu interior não há nada senão luz, ou a possibilidade frustrada de atravessar este novo portal —há algo ali de desconhecido, alheio ao nosso conhecimento. E assim se mantém, enquanto possibilidade, latente, inacessível e impermeável à possibilidade de fuga, de escape à nossa obtusa realidade ou às formas circundantes dos muitos futuros à espreita.

 

GIBCA • Gothenburg International Biennial for Contemporary Art

 

 

 

Bernardo José de Souza é curador, escritor e pesquisador de arte contemporânea. Atualmente trabalha como curador independente desde Madrid. Foi Diretor Artístico da Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre, Brasil, 2017/2019), Integrou as equipes curatoriais do 19o Bienal de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil (São Paulo, 2015) e da 9a Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2013) e foi Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria de Cultura de Porto Alegre entre os anos de 2005 e 2013. 

 

O texto foi escrito em português do Brasil.

 

 

Luiz Roque, S (still), 2017
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Vistas da exposição da 12ª Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Gotemburgo, Suécia, 2023. Fotos: Hendrik Zeitler. Cortesia: GIBCA.

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