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Tempo de tirar todas as máscaras 

Vítor Belanciano

 

Mudança. Quase todos a evocam. Mas quantos a desejam verdadeiramente? E quantos são capazes de a abraçar quando ela vai irrompendo?

Porque ela já está a acontecer. Não é um qualquer acontecimento súbito. É um processo denso e sinuoso. Preferencialmente deveria ser aspiração. Mas é cada vez mais apenas reacção. Por causa de um planeta delapidado, das desigualdades, do capitalismo, do patriarcado e do colonialismo, principais modos de dominação há bastante tempo.

Apesar de serem omnipresentes na vida social, esses modos de criar hierarquias, são tantas vezes invisíveis na maneira como acabam por se articular. O capitalismo metamorfoseia-se, até na China comunista. O colonialismo poderia ter desaparecido com as independências das colónias, mas ele aí está estilhaçado em formas imperiais, em dependência, em racismo. E o patriarcado pode aparentar enfraquecimento em determinados intervalos, em parte por causa dos avanços feministas, mas a discriminação sexista ainda não foi cessada. O contexto de pandemia apenas veio reforçar estas realidades principais.

Por um lado, o pior do mundo, a pulsão da morte, as exclusões, as discriminações, as desigualdades e a avareza a fazer com a pandemia o que tem sido feito da vida humana e da natureza: um negócio. 

Mas também o humanismo exaltante, na forma de solidariedades, do cuidar, da resistência e da criatividade de em colectivo se ampararem vidas. Nunca foi tão transparente que, para encetar uma verdadeira transformação, é necessário cortar as três pesadas âncoras que nos seguram à concepção moderna de natureza: a vida como mercadoria. O racismo. E o sexismo.

Há quarenta anos que o mundo vive dominado pela ideia de que não há alternativa à sociedade actual, na maneira como está organizada e como são administradas as nossas existências. Sempre em rodopio. O trabalho ou a falta dele. O consumo ou o seu desejo. O tempo ou a sua ausência. As redes de sociabilidades ou a solidão que nos dissipa. A insegurança do emprego e do desemprego. A renúncia à luta por uma vida melhor ante o medo de que tudo piore. Vive-se num presente eterno. Dizem-nos que o passado não pode ser reavaliado. E que o futuro não vale a pena procurá-lo, por causa das surpresas amargas. Ou este presente ou a barbárie. No entanto, olhando à volta, o que se vislumbra é, precisamente, crueldade.

Imaginámos a democracia como o governo das maiorias para benefício das minorias. Hoje o que temos é um governo de minorias, ou de algumas elites, para seu próprio benefício. O conceito de desenvolvimento prometeu melhores condições de vida para a maioria da população, mas o que temos é a crescente desigualdade entre pessoas, grupos, países, e a iminência de uma catástrofe ecológica. Vivemos com a sensação de que aquilo que fazemos já é entre ruínas — políticas, ideológicas, ambientais.

Em Comunidade enquanto Imunidade, com outras nuances, dinâmicas múltiplas e camadas de entendimento, o retrato largo, o diagnóstico, foi este. Sente-se que há muita gente a escrever sobre este mundo, mas não com o mundo. Um mundo que é, em grande medida, conhecido entre muitos artistas, pensadores, agentes criativos díspares e algumas comunidades (dos índios da Amazónia à população racializada do bairro da Jamaica, das comunidades LGBTi+ do Rio de Janeiro às mulheres feministas do Chile e tantas outras realidades polissémicas). O que sabem eles? Viver entre ruínas e a resistir e a inovar a partir delas. Aprenderam a criar comunidade, a lutar por lugares de fala e a criar novos modos de participação e de auto-organização. Essa experiência é hoje mais valiosa do que nunca. Mais do que desenvolvimento, a chave do futuro é envolvimento. A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto, e em que vivemos, vai caindo por terra. Só não há alternativas porque o sistema político democrático deixou de as discutir. 

Mas há muitos outros lugares, como os enunciados, onde elas têm vindo a ser nutridas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas têm entrado cada vez mais na vida dos cidadãos pela porta do fundo, chamem-se elas crises pandémicas, desastres ambientais ou colapsos financeiros. As alternativas mostram-se da pior maneira possível. Daí que, às vezes, possa surgir como mera reactividade na forma de fascismo, hipercapitalismo ou excepções securitárias. É preciso fazê-las entrar pela porta principal, de maneira emancipada, como enunciação de novas ideias, onde caibam múltiplos saberes, temporalidades, diferenças e reconhecimentos, e formatos distintos de produtividade. Em Comunidade enquanto Imunidade lutou-se pelo tempo, pelo espaço e pelo prazer de as fazer (co)existir. Disse-se que não basta tirar as máscaras por causa da pandemia. É preciso tirar todas as máscaras. As do passado, para perspectivarmos o presente e futuro. As do presente, para habitarmos melhor o agora. As do futuro, para não recearmos ousar. 

 

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