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Terra Estreita

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Andreia C. Faria

O mapa e o território

A terra como realidade física, geografia habitada, viva, oprimida, carnal. Ou a terra como fantasmagoria, evanescência, distopia onde a vida humana se vai tornando insubsistente. É entre dois pólos de uma única realidade, a da Palestina, que se desenvolve a proposta expositiva de Terra Estreita, com curadoria da plataforma (un)common ground, colectivo português que acompanha a inscrição artística e cultural do conflito naquele território.

Terra Estreita, que integra obras provenientes dos artistas e da colecção Teixeira de Freitas, começou a ser programada antes de 7 de Outubro de 2023, marco mais recente numa história de violência que para o ‘espectador’ distante se torna cada vez mais inapreensível, mas é impossível visitar a exposição sem nos darmos conta de como as ruínas e os rostos de ontem regressam.

No átrio, os versos do poeta palestiniano Mahmoud Darwish (1941-2008), de cujo poema «A terra é estreita para nós» se extrai o título, abrem-nos ao questionamento: para onde ir quando a terra onde nascemos se torna inacessível? Como habitar o exílio e a memória? Como negociar identidades e fronteiras? Como regressar a lugares que já não existem? São estas as inquirições comuns às instalações, vídeos, fotografias, esculturas e obras sonoras de Benji Boyadjian, Bisan Abu Eisheh, Emily Jacir, Jean Luc Moulène, Larissa Sansour, Taysir Batniji, Ryuichi Hirokawa e Yazan Khalili, artistas palestianos e de outras nacionalidades.

A abrir o percurso expositivo, uma cronologia do conflito israelo-palestiniano, acompanhada por mapas, peças jornalísticas ilustrativas da posição diplomática de Portugal (favorável à Palestina e aos dois Estados), livros e outros materiais de pesquisa do (un)common ground, situam-nos em terreno firme e objectivo. As datas, o registo das mutações geopolíticas, os mapas e as reportagens dão-nos, de forma circunspecta, os dados que permitem navegar a história do conflito. Um pouco adiante, no entanto, a série de mapas desenhados por Benji Boyadgian — reais ou inventados —, da Palestina, de Israel e dos territórios circundantes, assumem-se como efabulações de um «cartógrafo desorientado». Em Variations on a Map, o mapa funciona como a projecção fantasmática e obsessiva da ambição humana e torna incertos ou puramente simbólicos, reduzidos ao seu valor gráfico, os países, as fronteiras e as ideologias projectadas no território. Reforçando a suspeita de um desfasamento ou mesmo da total descoincidência entre o mapa e o território, Boyadgian assume, no desenho Phantasmagoria of Drones, o ponto de vista de um drone olho neutro por excelência, esvaziado de subjectividade e de desejo — para dar a ver a área altamente disputada e segregada de Jerusalém. Aqui a monocromia traça um panorama desolado e desprovido de esperança, revelando a verdade psico-geográfica de um território a que, segundo a sinopse da peça, nem os carros do Google têm acesso.

Fantasmagoria, nostalgia e luta simbólica pelo território é também o que está em causa nas duas obras de Yazan Khalili: nas telas de cor que formam Apartheid Monochromes, comentário lacónico ao sistema convencionado de identificação por cores imposto por Israel aos palestinianos, e sobretudo em Cracks Remind me of Roadkills, fotografias de fendas no pavimento nas quais o artista não consegue deixar de ver as formas do mapa da Palestina. Obsessão privada ou sinal cósmico? Inscrição ou ilusão?

A representação da realidade, como já vimos, pode muito bem não coincidir com a realidade, e o que à superfície parece normal esconde assombrações, vestígios ominosos que interrompem a narrativa hegemónica. É este o princípio evocado por Taysir Batniji. Se o vídeo Gaza Journal Intime mostra cenas da vida quotidiana intercaladas com o som brutal e o close up breve, a fazer lembrar as técnicas de propaganda subliminar, de facas a cortar carne — sugerindo uma cisão esquizofrénica da realidade, necessária à sobrevivência diária —, o mosaico de sabão de Man Does Not Live on Bread Alone, exposto no chão, sugere de forma mais subtil, mas não menos inquietante, essa coexistência entre a vida de todos os dias e a barbárie. No mosaico está inscrito o artigo 13.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma o direito à liberdade de movimentos e de pertença a um país. As barras de sabão, no entanto, não deixam de evocar sinistramente o mito, talvez verdadeiro, de que os nazis fabricavam sabão com a gordura das suas vítimas. A violência, parece sugerir esta obra de Taysir Batniji, não é monopólio de um povo ou de um tempo histórico, e os que agora perseguem foram também eles perseguidos, exilados, desenraizados.

De acordo com o filósofo britânico Jonathan Glover, «a intensidade do conflito [israelo-palestiniano] está, em parte, ligada ao facto de ambos os povos terem a experiência da diáspora e, consequentemente, terem um conhecimento amargo do que é ser desenraizado e das emoções associadas a essa experiência (...) E depois, no caso dos palestinianos, quero alargar a ideia de desenraizamento ao desenraizamento parcial que resulta do facto de se viver num país que é geograficamente nosso, mas que está sob ocupação. Há um verdadeiro corte de raízes frequentemente envolvido nisso.»[i] Um velho slogan do movimento sionista, «A Palestina é uma terra sem povo para um povo sem terra», sugere a permutabilidade cega entre os desenraizados de antes e os de agora, como se a longa cadeia de sofrimento e humilhação fosse imparável, inegociável, contagiosa. «Quem é desenraizado desenraíza», escreveu Simone Weil, para quem as raízes físicas e espirituais de indivíduos e comunidades se desenvolvem em redor do seu lugar de origem. Weil diagnostica o desenraizamento como um mal, uma doença, precisamente, contagiosa. «Todo o ser humano precisa de ter múltiplas raízes, precisa de receber a quase totalidade da sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos ambientes a que naturalmente pertence.»[ii] 

A destruição da relação orgânica de um povo com o tempo e o espaço a que naturalmente pertence é, de facto, o que está em jogo na ocupação da Palestina, como nos revela a curta-metragem distópica de Larissa Sansour. Nation Estate especula sobre um futuro próximo em que toda a população palestiniana (mas também as oliveiras, e talvez mesmo toda a vida vegetal e animal do país) acaba confinada num arranha-céus construído sobre as ruínas do mundo anterior. Cada piso do arranha-céus corresponde a uma antiga cidade palestiniana, mas aqui a vida decorre de forma tranquila, ordenada, asséptica. A complexa realidade histórica e material de um país e dos seus habitantes acaba transplantada para um gueto confortável onde se vive uma paz cínica e onde um povo é domado até à sua completa negação.

A negação da existência do povo e da cultura palestinianas é também denunciada em Playing House / Bayt Byoot, de Bisan Abu Eisheh, e na série de fotografias de Jean-Luc Moulène Palestinian Products. Destroços de objectos quotidianos e domésticos oriundos de casas palestinianas demolidas pelas autoridades de Jerusalém aparecem, em Playing House / Bayt Byoot, com o estatuto de peças de um puzzle sinistro. Brinquedos partidos, canalizações destruídas, utensílios de cozinha desirmanados são acompanhados por um mapa que traça a origem dos objectos, os nomes dos lugares dando um vislumbre das vidas comuns que acabaram esmagadas por operações burocráticas e militares.

A série de fotografias de Jean-Luc Moulène de produtos de origem e marca palestiniana como sal, azeite, arroz, cerveja, lã, se por um lado afirmam um quotidiano que, apesar de tudo, insiste em sê-lo, por outro recordam-nos que estes produtos não circulam, não se encontram disponíveis fora do território palestiniano. O glamour publicitário com que são fotografados e transformados em objectos de desejo contrasta ironicamente com o facto de nem as práticas habituais do capitalismo, mínimo denominador comum das liberdades dos povos, poderem ser dadas por garantidas na Palestina.

A rarefacção de histórias de vida e de rostos palestinianos nas representações do conflito é combatida pela série documental Villages and Families, de Ryuichi Hirokawa. Foto-jornalista, Hirokawa viveu um período em Israel, questionando-se sempre sobre as ruínas que ia encontrando e fotografando. Quando descobriu que as ruínas pertenciam a aldeias palestinianas demolidas, foi atrás dessas famílias deslocadas para fotografá-las também. Nesta série de fotografias, vemos ruínas e rostos em simultâneo, estes últimos lembrando a dureza triste das pedras, mas olhando frontalmente a câmara que deixará registada, indestrutível, a verdade da sua existência e o seu regresso, ainda que simbólico, ao lugar de origem.

Do regresso às origens trata também Where We Come From, de Emily Jacir. Através da sobreposição de fotografia, texto e vídeo, a artista documenta o resultado do seu trabalho como ‘mensageira’ entre a diáspora palestiniana e o país natal. Detentora de um passaporte americano que lhe garantiu a livre circulação, e (não sem humor) entendendo o trabalho do artista como o de alguém que está ao serviço dos outros, Jacir propôs-se viajar até Israel e Palestina para cumprir os desejos mais simples dos seus compatriotas exilados, desde pagar contas de telefone, até abraçar os familiares que ficaram ou acender uma vela na praia. É a imagem dessa vela a arder em frente ao mar, dançando com o vento, apagando-se para logo se reacender, um dos ícones possíveis desta exposição, o emblema que dela podemos escolher guardar. O outro é a mala de viagem de Taysir Batniji, aberta no chão ao fundo da sala, carregada de terra e de silêncio («Sem comentário», informa a sinopse), tornando-nos os passos mais pesados.

 

UnCommon Ground

Centro Internacional Artes José Guimarães 

Coleção Teixeira de Freitas

 

Andreia C. Faria nasceu no Porto, em 1984. Publicou Flúor (Textura Edições, 2013), Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração (Edições Artefacto, 2015) e Tão bela como qualquer rapaz (Língua Morta, 2017, Prémio SPA Poesia 2018). Em 2019 publicou Alegria para o fim do mundo (Porto Editora, Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2019), volume que reúne todos os livros anteriores. Em 2020 publicou o conjunto de prosas Clavicórdio (Língua Morta), em 2022 Canina (Tinta da China, Prémio PEN Clube) e em 2024 Canto do Aumento (Sr. Teste).


 

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Terra Estreita. Vistas da exposição no CIAJG (Guimarães). Direitos reservados. Fotos: Vasco Célio / Stills. Cortesia dos artistas, da Coleção Teixeira de Freitas e de CIAJG. 

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