15 / 24

Quatro Canções para Ângelo

batalha2.jpg
Sara Castelo Branco

A imagem em movimento e o som partilham uma mesma experiência alicerçada no domínio do tempo: os dois possuem uma complexa relação com a temporalidade devido à sua capacidade em inverterem o tempo, levando a que o passado se actualize no presente, passando imediatamente a ser passado pela sua transitoriedade inerente. Se a música e o cinema possuem esta capacidade intrínseca de serem um mecanismo temporal, Quatro Canções para Ângelo redobra o tempo, e ao mesmo tempo constrói uma nova temporalidade. Apresentado no Batalha Centro de Cinema,  este concerto-projecção é constituído por quatro filmes de Ângelo de Sousa datados da década de 1970. Os filmes foram rodados em 8mm e Super 8mm no Porto, sendo aqui acompanhados por composições musicais inéditas e tocadas ao vivo. Tratou-se portanto de uma resignificação das imagens do artista, num movimento aberto, uma vez que estas composições musicais não apenas trouxeram um novo acrescento sonoro às imagens, como se tratou de uma outra forma de actualização firmada numa experiência partilhada entre aqueles que nesta sessão recordaram as imagens do passado, e aqueles que as descobriram e voltaram depois a transformá-las em memória.

Autor de uma obra singular, Ângelo de Sousa (1938, Lourenço Marques – 2011, Porto) é um dos artistas portugueses mais relevantes dos séculos XX e XXI, tendo vivido e trabalhado no Porto desde 1955, onde fez o curso de pintura e foi professor na Escola Superior de Belas Artes. O artista desenvolveu uma prática inscrita em diferentes técnicas e suportes como a pintura, a escultura, o desenho, a fotografia, o filme, o vídeo ou a cenografia. Partindo do potencial imagético do som e do potencial sonoro da imagem, estas quatro obras – duas inéditas, e agora digitalizadas – documentam vários episódios históricos da cidade do Porto no pós-25 de Abril: uma manifestação, o naufrágio de um petroleiro, o atentado bombista na Cooperativa Árvore, e ainda uma cena quotidiana filmada da janela da casa onde vivia o artista. O Batalha Centro de Cinema comissariou uma obra musical para cada um destes filmes, cujas composições foram criadas por Pedro Ricardo, Manuel Linhares e Paulo Barros, Angélica Salvi e Fá Maria. Criando um contraponto entre o olho e o ouvido, este concerto-projecção derivou não apenas no encontro da visão com a escuta, mas conjuntamente do passado com o presente.

À excepção do filme Ambre Solaire (1969-1971, 11’), as restantes obras apresentadas adoptam regularmente um registo quase amador, relacionando-se mais inerentemente com a própria natureza dos acontecimentos filmados que se inscrevem num espaço colectivo de memória. O primeiro filme apresentado, denominado por Cooperativa Árvore (1976, 8’), foi conduzido na sessão pela composição de Pedro Ricardo que, através de uma espécie de travelling sonoro realizado pelo som da guitarra clássica, reproduziu sonoramente um movimento semelhante àquele feito pela câmara guiada à mão do artista. O filme percorre o espaço em ossatura da cooperativa de artistas Árvore, deixado assim pela detonação de uma bomba no dia 7 de Janeiro de 1976. Ângelo de Sousa filma os destroços e escombros até confluir num enquadramento final onde se lê numa parede exterior: “uma bomba explodiu na Árvore, por isso explodiu em todo o país”. Esta mesma índole política (também ela local e nacional) assoma no filme 29 de Setembro de 1974 (1974, 15’), que acolhe sonoridade através da arpa manipulada por pedais de Angélica Salvi, e cuja denominação remete à data (e ao tempo, no sentido lato da época), em que a multidão se reuniu após uma tentativa de golpe reaccionário com vista à intercisão do processo revolucionário, que havia ocorrido no dia anterior. Mostrando de forma quase indistinta os punhos e as bandeiras partidárias de esquerda, bem como a relação revezadamente rígida ou indulgente entre os soldados e a multidão, o filme é rematado pela filmagem, tal como escreve Saguenail na folha-de-sala da sessão, de “crianças a correr e brincar no jardim, imagem feliz que traduz o alívio e a esperança de uma população que deseja o efectivo fim de toda a ditadura”. Já, o sintetizador electrónico de Fá Maria orienta o filme Petroleiro a Arder (1975, 12’) que mostra exactamente aquilo que a própria designação determina: a 29 de Janeiro de 1975, uma embarcação dinamarquesa esbarrou num rochedo à chegada ao porto e naufragou. O filme principia com a imagem de uma densa coluna de fumo negro, para dar depois lugar a uma imagem vulcânica do mar nocturno, e revelar finalmente a proa derrubada no dia seguinte, juntamente com as pessoas que a observam nas bordas da praia.

Já, o filme Ambre Solaire tem origem no olhar elevado da janela da casa do artista. Num longo período de tempo, Ângelo de Sousa filmou o tapume coberto de cartazes que ocultava o estaleiro de um prédio em construção. Sendo acompanhada pela composição para piano de Manuel Linhares e a performance de Paulo Barros, a obra centra-se na filmagem de uma série de cartazes publicitários da marca Ambre Solaire onde se vê uma mulher bronzeada e vestida com um fato-de-banho, detendo-se porém particularmente nas movimentações dos transeuntes ao redor destas imagens. Uma das dimensões mais preponderantes do filme é a sua evidência pelo contraste: as mulheres que passam à frente dos cartazes contrapõe-se à mulher do anúncio – muitas delas carregando cargas ou filhos. Esta desarmonia é enfatizada numa das partes finais do filme, quando no mesmo plano publicitário vemos duas imagens-ícones diferentes: a câmara move-se da imagem que publicita o protector solar para uma outra que anuncia a exposição de uma colecção de arte com uma imagem sacra. O símbolo feminino religioso, maternal e sacro associa-se no mesmo plano visual ao símbolo capitalista da beleza idealizada, sexualizada, do ócio e do corpo publicitário.

Partindo assim desta perspectiva plural sobre a realidade que, embora revestida de um olhar aparentemente simples, revela diferentes aspectos político-sociais da sociedade portuense e portuguesa da década de 1970, Quatro Canções para Ângelo manifesta-se como um lugar onde as imagens não existem apenas em si mesmas, mas também acontecem; ou seja, expressam-se numa dimensão aberta à concepção de outras conexões, sejam sonoras, sensoriais ou mnemónicas. Neste sentido, este concerto-projecção evoca, como o próprio título enuncia, um movimento de entrega – um tributo à memória, e, especialmente, ao olhar de Ângelo.

 

Ângelo de Sousa

 

Batalha Centro de Cinema

 

 

Sara Castelo Branco [1989, Porto] é doutorada em Arts et Sciences d’Art e Ciências da Comunicação pela Université Paris 1 — Panthéon Sorbonne [Paris] e Universidade Nova de Lisboa [Lisboa], enquanto bolseira da FCT. Investigadora do ICNOVA — Cultura, Mediação e Artes [FCSH-UNL]. Em 

2022, criou o Solarity Prospects — um projecto reflexivo e participativo, composto por uma série de eventos que envolvem plataformas para discussões descentralizadas sobre políticas e dinâmicas ligadas ao sol. Tem vindo a fazer a curadoria de exposições e ciclos de cinema experimental como Back of My Hand [Carpintarias São Lázaro, Lisboa, 2022], Blinding Light [CRIPTA 474, Turim, 2021], To Film With One Hand My Other Hand [Galeria Zé dos Bois, Lisboa, 2021], Under the Ground [Galerias Municipais de Lisboa, Lisboa, 2020] ou Out Off Nature [Arsenal — Institut für Film und Videokunst, Berlim, 2019]. Tem um mestrado em Estudos Artísticos — Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e uma licenciatura em Ciências da Comunicação e da Cultura pela Universidade Lusófona do Porto [ULP]. Na área da investigação e da crítica sobre arte contemporânea portuguesa contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas e catálogos.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

batalha4
batalha1
batalha3
batalha5
batalha7
batalha6

Quatro Canções para Ângelo. Batalha Centro de Cinema, 2024. Fotos: Renato Cruz Santos. Cortesia Batalha Centro de Cinema.

Voltar ao topo