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Anagramas Improváveis — Obras da Coleção de Serralves

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Ricardo Nicolau

 

 

Ana Jotta e Ângelo de Sousa:

“Eu cá não tenho ideias!”

 

O embaraço e a frustração dos jornalistas que já perguntaram a Ana Jotta (Lisboa, 1946) — a propósito de um trabalho ou de uma exposição — “De onde veio a ideia?” e receberam como resposta “De lado nenhum, eu não tenho ideias” será apenas proporcional ao entusiasmo com que Ângelo de Sousa (Lourenço Marques, atual Maputo, 1938 — Porto, 2011) também alardeava convicta e orgulhosamente ser um artista-sem-ideias.

Além desta recusa, os dois artistas partilham um uso muito particular da língua portuguesa: as suas frases, ditas e escritas — cascatas de neologismos, onomatopeias[1], corruptelas e traduções literais (ou puramente fonéticas) de idiomas estrangeiros —, parecem querer demorar a ser compreendidas (como se também elas fossem traduções ligeiramente equivocadas para português), apesar de serem absolutamente irrepreensíveis do ponto de vista gramatical; também partilham o gosto por frases que não admitem interpretações ou hesitações hermenêuticas : “não quero”, “não me parece”, “não vou por aí” — e talvez por isso sejam os artistas mais livres que já conheci; têm ainda em comum um sentido de humor muito especial: mordaz, descortês e irreverente.

Tudo isto contribui para fazer de dois artistas aparentemente opostos e dos seus trabalhos, por mais diferentes que pareçam a um primeiro olhar (coerente e sóbrio no caso de Ângelo de Sousa, diverso e vibrante no caso de Ana Jotta) como que duas faces de uma mesma moeda (alguém disse recentemente, e eu tendo a concordar, que Ângelo seria a versão masculina de Ana, e vice-versa). Tudo isto e ainda aquilo que é porventura o mais importante, que é serem dois artistas que não distinguem as experiências mais elementares da vida (Comer e Existir, entediar-se e existir) do seu labor artístico.

Para tentar defender esta ideia, recorremos a duas exposições dos artistas, separadas por 16 anos e que têm em comum o facto de terem sido apresentadas longe dos dois maiores centros artísticos nacionais (Lisboa e Porto): Comer e Existir, a mostra individual de Ana Jotta organizada por ocasião da atribuição à artista do 13.º Grande Prémio Amadeo de Souza-Cardoso e apresentada entre Outubro de 2023 e Março de 2024 no museu de Amarante dedicado à obra do pintor, e Ângelo de Sousa: Treze Esculturas + Um Espaço, organizada pelo Museu de Serralves e apresentada em 2007 no Pavilhão Centro de Portugal, em Coimbra.

Comecemos pela última, que foi a minha oportunidade para trabalhar e conviver regularmente com o artista (de ouvir o seu fraseado particular e as suas invectivas contra as “ideias” e os “projetos”, portanto). Tratava-se de mostrar algumas das suas obras na Colecção de Serralves (tridimensionais, visto que o espaço não se adequava à apresentação de pinturas e desenhos). Quando questionado sobre o título que gostaria de dar à exposição, o artista perguntou quantas obras (e de que tipologias) haviam sido seleccionadas. A resposta foi imediatamente identificada como o nome da mostra. What you see is what you get e isso deve ser anunciado com a mesma literalidade e transparência. 

Na exposição eram apresentadas obras que contavam de forma muito directa a história da sua própria feitura — formas simples, materiais manipulados de maneira a nunca disfarçar ou contrariar as suas propriedades elementares —, entre elas algumas que resultavam da dobragem de tiras de aço (por exemplo a escultura Sem título, de 1970—1972, apresentada em Anagramas Improváveis). Na altura, quando comecei a investigar as motivações e o processo que teriam estado na origem das esculturas (socorrendo-me de leituras e, mais importante, do acesso à voz do artista), surpreenderam-me a simplicidade e o caráter directo das explicações: as obras terão nascido do aborrecimento (entediar-se e existir…). Passo a explicar: à altura professor na Escola de Belas-Artes do Porto, fazia parte das obrigações profissionais de Ângelo de Sousa participar em intermináveis reuniões de professores; fumador inveterado numa altura em que ainda se podia fumar em espaços fechados, matava o tempo à custa de muitos cigarros e através da dobragem das pratas dos maços de tabaco. A verdade é que esta actividade semi-consciente (não andaria muito longe dos doodles com que nos entretemos enquanto falamos ao telefone), que nasce do tédio, estará na origem do trabalho escultórico do artista.[2] O que é exatamente o mesmo que dizer que, para ele, a vida, as suas contingências e o trabalho artístico não se distinguem. Não seria precisamente nisto (reuniões entediantes) que pensava quem defendia, nos anos 1960—70, a indistinção entre a arte e a vida… mas por portas travessas…  

A ausência premeditada de poesia, alusões ou metáforas que caracteriza o trabalho de Ângelo de Sousa tem uma justa tradução nos títulos que o artista deu a esculturas, pinturas, fotografias (e mesmo, como vimos, a exposições). Além do descomprometido Sem título, o artista nomeou pinturas de Pintura e esculturas de Escultura. A relação das suas obras com aquilo que ele vivia e via também tem nos títulos — simples, directos, propositadamente redundantes, tautológicos —, especialmente dos seus filmes (alguns deles igualmente apresentados em Anagramas Improváveis), um espelho exemplar. Chamam-se eles A Mão (1976) Água no Chão (1976) Chão (1972), Flores Vermelhas (1974), Marmeleiro (1973), Muro (1973) e Ribeiro (1973).

Os títulos de Ana Jotta obedecem, aparentemente, a uma lógica completamente diferente. Longe de serem tautológicos — ou simplesmente nomearem aquilo que está à vista — apontam para referências exteriores, que a artista encontra… bom, em todo o lado: obras de outros artistas, boas e más, literatura, boa e má, cinema, bom e mau, cartazes, montras, letreiros, pichagens, sinais e avisos urbanos (a lista seria interminável), ao ritmo dos seus movimentos, da sua existência. Há quem defenda ser Jotta um (ou mesmo O) exemplo de artista apropriacionista. Diz isto quem, confrontado com a extrema diversidade do seu trabalho (folhear um catálogo com um número considerável de obras suas — da sua retrospetiva em Serralves, Rua Ana Jotta, por exemplo — será como consultar uma publicação associada a uma exposição colectiva), pensa poder catalogar (conter) uma torrente imparável através do recurso a categorias artísticas. Equivocam-se, digo eu. Os artistas apropriacionistas contam com o significado das suas escolhas — outros artistas, normalmente (e quem decidem copiar tem desde logo uma importância capital para a interpretação da sua obra). Ora no caso de Ana Jotta não há estratégia, não há projeto, não há ideias — as coisas caem-lhe em cima da cabeça, PUM!, lembremo-nos.

Na última vez que esteve em Serralves — para participar na conversa que se seguiu à leitura por Ana Deus de cartas, algumas endereçadas à artista[3], no âmbito da exposição coletiva A Quem Possa Interessar: Uma Coleção, Uma Carta[4] —, Ana Jotta ofereceu à audiência um momento único, bastante esclarecedor para todos quantos se interessem pelo seu (anti)método: a meio da conversa, a artista agarrou num pequeno caderno e começou a ler pequenas frases apontadas por si durante o dia passado no Porto (e na viagem entre Lisboa e esta cidade). Quem esteve atento percebeu duas coisas: que estes caderninhos acompanham permanentemente a artista (escrever, copiar e existir…); que as ditas frases, expressões, palavras, têm origens muito diversas, algumas bastante distantes de qualquer ideia de cultura, alta ou rasteira (Ana Jotta apropria-se, é verdade, mas não comunga com os artistas ditos apropriacionistas de uma predilecção por outros artistas). É certo que na exposição Comer e Existir a artista escreveu nas paredes da galeria de exposições um conjunto de frases, entre citações de escritores (Jean Genet), pensadores (Giorgio Agamben) e artistas (Damien Hirst, Guy de Cointet) e frases e expressões de autor desconhecido, certamente saídas de um daqueles pequenos cadernos da linhagem do caderno parcialmente lido em Serralves, mas desengane-se quem pensar que com o recurso àqueles fragmentos Jotta pretendeu integrar-se numa família cultural mais ou menos prestigiosa e legitimada; mesmo ao lado estavam dezenas de quilhões de S. Gonçalo — bolos de trigo com uma forma fálica, típicos de Amarante — e uns ecrãs pintados onde formigas (animal recorrente no trabalho da artista, talvez pela sua relação com a ideia de trabalho ininterrupto — todos conhecemos a expressão “trabalhar como uma formiguinha”) devoram um pudim. Na ilustração em que a artista se inspirou, e que publicou na brochura que acompanha a exposição, pode ler-se a legenda “Sobretudo quando nos vai ao açúcar…”. Tudo demasiado prosaico para ser exatamente cultural, convenhamos.

Voltando à conversa em Serralves: quem esteve verdadeiramente atento pode ter percebido que o título da exposição retrospectiva de Ana Jotta apresentada em 2005 na Casa de Serralves — Rua Ana Jotta, que na altura deve ter sido percebido exclusivamente como um comentário bem-humorado e auto-derrisório às ideias de posteridade e de prestígio supostamente conferidos por grandes instituições artísticas —, talvez não ande assim tão longe dos secos e tautológicos A Mão, Ribeiro ou Flores Vermelhas de Ângelo de Sousa. É que nos dois casos os artistas limitam-se a apresentar aquilo com que se confrontam nos seus percursos quotidianos — campestre no caso de Ângelo de Sousa, urbano no caso de Ana Jotta. A “rua” desta artista (o que vi[5] na rua e em casa e no cinema…) equivale ao “caminho” (aqui no sentido de verbo e de substantivo) daquele.  

É muito conhecida a frase atribuída a Pablo Picasso, tão utilizada, para tudo e para nada, que dela se encontram na Internet várias derivações: “Eu não procuro, eu acho” ou “Eu não procuro, encontro” ou ainda “Eu não procuro. Descubro”. Ana Jotta e Ângelo de Sousa não procuram, definitivamente. Têm “o consciente ocupado e o subconsciente à solta”…

 

Museu de Arte Contemporânea de Serralves

 


 

Anagramas Improváveis, a primeira exposição da Colecção de Serralves apresentada na recém-inaugurada extensão do museu (a Ala Álvaro Siza) articula-se em torno de diversos pas de deux, em que são reunidos no mesmo espaço trabalhos de artistas de diferentes gerações e origens geográficas. Ricardo Nicolau, um dos curadores da mostra, escreve sobre um dos duetos mais improváveis: Ana Jotta e Ângelo de Sousa.

 

Ricardo Nicolau é licenciado em Pintura pela FBAUL. É curador e adjunto da direcção do Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

 




 


Notas:

 

[1] As onomatopeias são palavras que procuram imitar de forma aproximativa sons produzidos por alguma acção ou emitidos por objetos, animais e fenómenos da natureza. Para reforçar a ausência de quaisquer ideias na génese do seu trabalho, Ana Jotta já disse em entrevista televisiva, para surpresa e atrapalhação da entrevistadora, que “as obras lhe caem em cima da cabeça, PUM!”, apenas isso.   

[2] Em entrevista a Bernardo Pinto de Almeida, Ângelo de Sousa afirmou: “[…] eu fumava cigarros e tinha reuniões, portanto não há como ter o consciente ocupado e o subconsciente à solta… Não sei, talvez tenha feito uma coisa com uma folhinha de prata de cigarros e pensei: Olha, uma boa ideia seria fazer isto em chapa.” Ver Bernardo Pinto de Almeida, “A Imaginação da Matéria”, Ângelo de Sousa. Esculturas 66/67, Porto: Galeria Quadrado Azul, p. 4.  ‘[…] I smoked cigarettes and attended meetings, and there’s nothing better than to keep one’s consciousness busy and let the unconscious run free… I don’t know, maybe I’ve done something with a piece of silver paper from a pack of cigarettes, and then I thought: Look, it would be a good idea to make the same thing with a metal plate.’ 

[3] No filme Jotta: A Minha Maladresse É Uma Forma de Délicatesse de Salomé Lamas e Francisco Moreira (2009), vários amigos de Ana Jotta foram convidados a escrever uma “carta à Ana” — entre eles Manuel Castro Caldas, Isabel Carlos, Ricardo Nicolau e Miguel Nabinho. 

[4] “Ana Deus lê cartas a quem possa interessar” aconteceu no dia 31 de Outubro de 2023. Anunciou-se no sítio na Internet de Serralves da seguinte forma: “Um dos princípios fundamentais para a conceção da exposição A quem possa interessar: uma coleção, uma carta foi, como o título indica, a convicção de que exposições e trocas epistolares se podem equivaler. A seleção e leitura de cartas que agora propomos pretende dar voz a alguns dos artistas na mostra — voz exemplarmente plasmada na correspondência trocada com outros artistas, curadores ou simplesmente com amigos e familiares. Guiou esta seleção a vontade de mostrar a variedade de abordagens ao formato epistolar e dos assuntos tratados, que vão desde reflexões sobre a arte em geral e sobre as suas práticas em particular até às complexas relações entre a arte e as instituições, passando por questões quotidianas que relevam exemplarmente a ligação tão discutida e reivindicada entre a arte e a vida. A partir de cartas escritas por Sol LeWitt, Lawrence Weiner, Helena Almeida e Marlene Dumas, ou enviadas a Lourdes Castro e Ana Jotta, ampliaremos as formas de ‘ler’ e interpretar os seus trabalhos. E — muito importante em tempos em que o discurso sobre a arte parece partir exclusivamente de curadores, ou de ensaístas — através das suas palavras, na primeira pessoa!”

[5] Entre as últimas leituras que entusiasmaram Ana Jotta destaca-se um livro de fragmentos e textos muito breves do filósofo italiano Giorgio Agamben: Coisas que vi, ouvi, aprendi…, na edição da Âyiné de 2023.


 

Imagens: 

Anagramas Improváveis, vistas de exposição da sala com obras de Ana Jotta e Ângelo de Sousa, Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, 2024. Fotos: Filipe Braga. Cortesia do Museu de Arte Contemporânea de Serralves/Fundação de Serralves.

 

 

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