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Portugal, o Inferno, a Via Láctea

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João Sousa Cardoso

1.      O Inferno

 A afluência de uma vasta comunidade de artistas e agentes culturais do país na inauguração da double bill Encontro Inesperado/Uma Cerveja no Inferno na Galeria Graça Brandão, a 26 de janeiro, confirmou o reconhecimento de Manuel Santos Maia, curador das duas exposições, como um aliado extraordinário na atenção dedicada ao trabalho de tantos criadores. Além de um promotor constante de oportunidades nomeadamente no Espaço Mira que programa desde 2013, na exposição SUB-40 na Galeria Municipal do Porto (curadoria da antológica de uma geração, a convite de Paulo Cunha e Silva) em 2014 ou nas três recentes edições da Bienal da Maia.

Por outro lado, Encontro Inesperado/Uma Cerveja no Inferno que congrega as artes visuais, a performance (com António Lago), o cinema (com a estreia do filme É um outro país [2017] de Manuel Santos Maia no Cinema Fernando Lopes) e uma mostra de publicações de artista (organizada com a livraria STET) contribui efetivamente para a atualização das ligações internas da comunidade artística do país, reanimando o espírito de abertura, a plasticidade do esclarecimento e a resiliência, capazes de reagirem construtivamente à condição periférica da arte portuguesa, tantas vezes insuficientemente articulada, no contexto competitivo da Europa e da economia global.

Manuel Santos Maia, nasceu em Nampula (Moçambique) e desembarcou em Portugal em 1976, com 6 anos de idade, sendo que a poética da viagem, o trauma do exílio e a celebração do encontro informaram uma conceção das artes enquanto potência conciliadora. A família fixou-se, então, na Figueira da Foz. Educado entre o festival de cinema da cidade, a música dos Smith e a leitura de Maria Gabriela Llansol, formado nas Belas Artes do Porto (onde teve Eduardo Batarda como mestre e assinou no fim dos anos 90 o inter+disciplinar+idades, o programa mais marcante das últimas décadas naquela escola), artista visual, professor universitário e curador-autor, sabe que as fronteiras são fantasmas. E que o trabalho real impõe modéstia intelectual, compromisso na investigação de terreno, o acompanhamento das exposições e a visita aos estúdios, o conhecimento pessoal dos artistas e a proximidade dos processos criativos, investindo no diálogo intergeracional, desmontando as hierarquias e suspendendo a inércia dos pequenos meios.

A exposição individual Encontro Inesperado de Diogo Nogueira é mostrada a par de Uma Cerveja no Inferno,  coletiva de oito artistas do Porto com uma exceção que amplia o território: João Paulo Balsini, artista do Rio de Janeiro, cuja presença sinaliza o vínculo da Galeria Graça Brandão ao Brasil e à obra de Lygia Pape, em particular, a artista mítica que José Mário Brandão mostrou na primeira exposição individual na Europa, no Porto, em 2000.

O projeto curatorial de Encontro Inesperado/Uma Cerveja no Inferno parte das questões antropológicas relacionadas com o corpo, as sexualidades, as filosofias de género e as políticas do desejo pela mão de Diogo Nogueira e uma nova geração de artistas, acompanhados por nomes experientes como Susana Chiocca e Carla Castiajo. 

Mas o duplo projeto é, afinal, múltiplo na estratégia inclusiva e na transversalidade disciplinar (pintura, desenho, cerâmica, vídeo, performance) características da visão curatorial desembaraçada de Manuel Santos Maia, tantas vezes inversamente proporcional aos recursos limitados dos espaços onde vem depositando, ao longo de 25 anos de atividade, uma rara capacidade de mobilização e um seguro conhecimento.

A hiperprodutividade (não era a indesculpável qualidade de Jorge de Sena, incitado ao exílio americano?) e a relativa independência a partir de uma geografia marginal num país centralizado confirmam a irredutibilidade do artista-curador. Sendo uma referência na mediação cultural no Museu de Serralves entre 1999 e 2020 e havendo curado exposições de nomes decisivos como Álvaro Lapa, Silvestre Pestana, Paulo Mendes, Carla Filipe, Mauro Cerqueira e André Sousa, entre tantas exposições, Manuel Santos Maia é um ator dividido entre territórios – o africano e o europeu, o passado colonial (desenvolve o projeto Alheava desde 1999) e o presente decolonial, a literatura, o cinema e as artes visuais – e repartido em papéis – a criação, a docência e a curadoria – confirmando-se um protagonista da cena da arte contemporânea portuguesa, com os seus ciclos benignos, contraciclos e crises sistémicas.

O texto de apresentação da exposição, assinado por Maria Brás Ferreira, inicia-se justamente por uma meditação sobre a experiência das passagens e as crises: “Para os antigos a crise correspondia a um momento de observação, tratando-se do período de tempo em que, após o médico aplicar o bálsamo no paciente, o corpo deste reagia ao curativo, curando-se ou, por outro lado, agravando o estado da doença. A crise é, por definição, um fenómeno localizado, significado e potencializado pelo olhar inteligente”. Os momentos de crise e o estabelecimento de novos equilíbrios na recomposição das formas e das forças pela cura comportam (além do bálsamo e da observação) o encontro impensado, a imprevisibilidade das figuras e a festa no abismo que a provocação do duplo título – o segundo deles, emprestado a Arthur Rimbaud, génio adolescente e o mais africano dos poetas modernos – nos lança, sem contemplação.

Encontro Inesperado/Uma Cerveja no Inferno  é um ensaio desassombrado sobre a energia dos corpos e a libido onde o artista-curador toma pulso, auscultando a obra dos artistas escolhidos e no exercício da introspeção que estabelece balanços, ao devir político da sua própria condição voluntarista e agregadora no labirinto infernal de espelhos de um país-menino.

 

2.      En Plein Air

O piso térreo da galeria apresenta Diogo Nogueira, artista de 25 anos, a frequentar atualmente o mestrado em Artes Plásticas na Escola Superior de Artes e Design, nas Caldas da Rainha. Uma série de pinturas a óleo sobre contraplacado lembram os divertimentos de Fragonard, mas este recreio en plein air (e Diogo Nogueira não pintará, certamente, ao ar livre) descreve agora episódios de um universo homoafetivo onde rapazes púberes se reúnem numa paisagem (um rio, um lago, um prado, uma floresta), expondo os corpos nus em comunhão com a natura e brincando entre si, em insistentes jogos eróticos (o jato de água lançado da boca de uma personagem sobre outra), longe das portas da cidade (de Deus ou dos homens na convenção da pintura europeia, desde o Renascimento), num lugar que antecede as tábuas da lei e a civilização, o controlo social, o escrutínio e a moralidade, onde os santos operam milagres e os jograis convivem com as musas como no concerto campestre de Giorgione.

O encontro amoroso clandestino nas margens do Sena em Dejeuner sur l’Herbe de Édouard Manet – precisamente revisitando Giorgione –, que solevou a tempestade no Salon de Paris por mostrar o inominável, assombra o conjunto destes trabalhos reveladores que celebram os instantes de gozo, a licenciosidade e a conspiração sem amanhã da juventude.

Além de Manet, desfilam diante de nós a influência das banhistas orientais de Ingres, as mulheres nativas da Polinésia na pintura fauve de Gauguin, a dança cromática de Matisse e a lassidão sensual na pintura recortada pelo desenho de David Hockney. Como se pressente a vinculação a Rafael Bordalo Pinheiro na fina ironia dos pratos de cerâmica colorida (alguns fraturados em dois) que Diogo Nogueira expõe no acervo da galeria.

A estratégia pictórica da ambiguização entre a figura e o fundo, o espaço negativo e o positivo, a figura anatomicamente dominada e as formas inacabadas (por vezes, o traço do carvão permanece visível) resultam numa reflexão exata sobre o exercício da pintura na tensão mantida entre a matéria concreta, a superfície da imagem e a sugestão narrativa. Algumas barcaças ou a presença de animais (um touro, um leão, cães numa matilha) intensificam as possibilidades da ficção, sugerindo a alegoria ou a fábula. Outros sinais transportam a figura dos rapazes para categorias mitológicas como sátiros de riso mordaz ou sereios com a sua cauda de peixe em Aparentemente as pessoas já não gostam de cavalos (2024).

E, com tudo isto, Diogo Nogueira é um pintor culto, tecnicamente exímio e com coragem política, trazendo para o interior da investigação pictórica a condição gay que se apõe às representações heteronormativas – alinhado por uma recente geração de artistas onde se contam João Gabriel e Juliana Julieta – alargando o espectro das discursividades sobre o eros na pintura portuguesa. Como, décadas antes, André Gomes trouxera à modorra dos costumes sexuais na Lisboa do pós-revolução, a presença de Lydia Barloff, drag queen avant la lettre, à inauguração da Alternativa Zero, organizada por José Ernesto de Sousa em 1977. O artista-fotógrafo-ator fez compreender que defender os movimentos de vanguarda e a invenção de um dia claro pressupunha corpos instruídos na insubmissão, treinados na juissance, soberanos. E a contrario, não valerá a pena rever hoje à luz dos cultural studies e dos queer studies o conjunto da obra do bailarino crioulo, dandy, futurista e tudo Almada Negreiros ou de António Palolo, alentejano e outro pintor da cor, à luz dos constrangimentos da pulsão sexual e do não dito num país onde as revoluções políticas tardaram em alcançar a carne e a intimidade?

A pintura de Diogo Nogueira ensina a alegria dos aventurados e a melancolia dos corpos à procura de si e na relação ardente com os outros no minuto que passa. O mesmo doce pesar atravessa os trabalhos homoeróticos de Andy Warhol ou os retratos impassíveis dos companheiros na fotografia crua, perturbadora e mortuária de Peter Hujar.

Na última sala, três lonas publicitárias de grande formato pintadas a acrílico proclamam um desejo de teatralidade. Apresentando grupos de personagens sobredimensionadas, recordam o telão pintado na tradição do teatro europeu até à modernidade (e, mesmo na modernidade, prolongada por Picasso, Matisse e Chagall, artistas que assinaram memoráveis telões para espetáculos de vanguarda em palcos à italiana). E, novamente, a descontinuidade do contorno das figuras rima com modos de suspensão: um funambulista numa corda bamba, canoas a deslizarem na superfície de águas tranquilas, a figura a tracejado de um cavaleiro em trânsito evocativo da pintura histórica. O cavaleiro, semitransparente, translúcido, parece abstraído da ocorrência (ou cerca-a, em ameaça?) de um bando de rapazes endiabrados e felizes a banhos num lago, protegidos pelo frescor da vegetação.

Diogo Nogueira constrói desafios à perceção através da manipulação de sombras, reflexos, espelhamentos. Encontramo-nos invariavelmente num lugar onírico (e o ritmo marcado pelo tronco das árvores multiplicadas no plano de várias telas recorda o repetido compasso de Le Chemin de fer, também de Manet, que versa sobre o escapismo de uma ama na atmosfera oxidada de uma estação ferroviária) onde o equívoco realismo da paisagem desvela o espaço mitificado da fantasia erótica alimentada pelo sonho do toque na conferência sensual em contraste com o regime dominante das ligações virtuais, do rastreio tecnológico e da industrialização da pornografia. A experiência da pintura rompe, num golpe de teatro, com o simulacro das imagens.

 

3.      A Via Láctea

No piso inferior da galeria, a exposição Uma Cerveja no Inferno prolonga o ensaio sobre o corpo, o desejo e as sexualidades, convocando oito artistas visuais com práticas diferenciadas (pintura a óleo, aguarela, desenho, cerâmica e vídeo) num confronto, por vezes desconcertante, feito de afinidades e desacertos.

As aguarelas de Dylan Silva conciliam a calidez da pincelada liquefeita e o brutalismo das figuras antropomórficas volvidas em quadrúpedes e quimeras bestiais (ou vice-versa) como a peça de cerâmica vidrada Glossy Ochre (2022) figura um homem-ogre-urso ou Mask (2022) faz coincidir a máscara indígena com as práticas sexuais do bondage; ou registam, ainda, o prazer da masturbação na aguarela Sitting and Waiting (2019). A qualidade leitosa das aguarelas de Dylan Silva contrasta com o empastelamento da pintura matérica de João Paulo Balsini. Na tela O Livro (2023), o pintor carioca descreve no calor de um quarto, dois homens despidos numa cama como no instante que se segue ao sexo, em que um dos parceiros parece ter caído no sono profundo enquanto o outro lê.

Mas a ambígua brandura de Dylan Silva contrasta, não menos, com o bold and sharp dos objetos de Inês Coelho. Em Hang in There (2023) e Hang in There B (2024), a artista transforma um friso de pénis em ereção, modelados em cerâmica e com anatomia individualizada em sólidos cabides de parede onde dispõe, pendurados, panos da limpeza, rolos de papel higiénico, luvas de borracha, cruzetas, sacos de plástico transparente com tomates frescos e outros artigos domésticos de uso comum, numa paródia do falocentrismo e dos atributos tradicionalmente impostos aos géneros, num empoderamento da mulher e do seu olhar sobre a genitalia masculina. Inês Coelho brinca ainda com os valores do patriarcado em Sem título (vaso) (2011) ou Água corrente não faz mal à gente (2024), convocando artefactos icónicos de sociedades arcaicas como vasos e ânforas (expostos nos museus de antropologia e etnografia) associando-lhes vocábulos do cartoon, longas pernas, pés agigantados e um pénis, numa sexualização satírica do objeto de culto e do enraizamento etimológico em pater da noção moderna de património.

As peças cerâmicas de Pedro Moreira, Tlön’s Scopophobia (2023)  e Macrobioma III (2022) reproduzem objetos de uso corrente (uma máscara suspensa, um candeeiro de chão) para logo se revelarem tomados por uma febre surrealizante que os confunde com a visceralidade de uma planta carnívora, a pulsão escatológica ou o pesadelo de mil olhos que nos observam. Ecoando, mesmo, alguns aspetos do retrofuturismo atraído por monstros, iluminações e fundos oceânicos insondáveis na ficção científica de Jules Vernes ou a visceralidade afetada pelos dispositivos hightech no cinema de David Cronenberg. Em qualquer dos casos, Pedro Moreira discorre, em objetos mutantes que conjugam os efeitos da ocultação e dos atravessamentos, sobre as interdependências primitivas: o barro cozido no fogo, o frémito molecular e a biotecnologia.

Objetos híbridos são também os propostos por Carla Castiajo (memorável exposição na Casa Molder, em 2022), a meia distância entre a joalharia contemporânea e a experimentação artística, partindo do cabelo humano e dos pelos públicos como materiais inusitados para a elaboração da trama que tece objetos de aparato como colares, pendentes, brincos e broches. O arquétipo do privilégio social e a ostentação simbólica encontram-se aqui problematizados pela introdução do elemento biológico dos fios de cabelo, antropologicamente conotados (como as unhas e a saliva) a uma excrescência vã, a um excedente da vida orgânica, um enigma reconvertido entre várias sociedades em elemento alquímico de utilidade ritual nas cerimónias de magia. A tensão física entre a maestria da modelagem e a resistência informal da matéria capilar faz de Bloom II (2015), Animus Alatus (2018) ou Guarda-Jóias I e II (2019), exemplos laboriosos do irresolúvel conflito entre a natura e a cultura, o poder e a precariedade, o público e a privado, a ostentação e o obsceno, em enunciados que baralham a polarização esquemática dos quadros ideológicos.  

Do mesmo modo, o filme Being Fond (2023) de Raul Macedo faz desfilar na imagem de um plano fixo vertical sobre um colchão, jovens (amigos e também artistas) em roupa interior estilizada (figurinos concebidos por Gerda Kriger) que se abraçam e acariciam num envolvimento erótico em agrupamentos que, num crescendo, evoluem em contínua recomposição (pares, trios, grupos), apontando os valores do não-binarismo, a fluidez sexual e o poliamor.

Em conjunto com Raul Macedo, o vídeo BITCHO búzios (2024) de Susana Chiocca convoca o alter-ego chamado Bitcho que, desde 2012, a artista vem apresentando em performances e espetáculos em palco (solo no Centro Cultural de Belém em 2023) num vídeo em loop com texto a partir de Génese de António Aragão. Um grande plano mostra a boca da artista, com lábios pintados de batom de vermelho, enquanto devora, mastiga, morde, saliva, verte leite, sementes e bagos de romã, alude ao sexo feminino, à idade anterior à linguagem, à voracidade dos sentidos na satisfação oral. A imagem abrupta (e o texto na voz da artista) acumula sobreposições, texturas e termina pixelizada na degradação da mancha digital. Ao instalar em dois monitores no chão, lado a lado, o filme de Raul Macedo e o vídeo de Susana Chiocca, o curador explicita o confronto entre gerações e duas filiações distintas – o cinema e a videoarte – na abordagem fílmica do corpo e das suas pulsões, cada tradição remontando a temáticas e reportórios formais específicos relativamente ao tratamento das rudezas da vida orgânica.

Outro trabalho de Susana Chiocca, Cartografia (2023), composição sobre papel kraft que desenha uma forma fálica, fragmentada em oito folhas dispostas no chão, rima com a iconoclastia de Inês Coelho na deposição do falo-totem e na destituição da falocracia no seio das sociedades contemporâneas orientadas pelo ideal do progresso e no combate pela equidade social.

É impossível circularmos nesta exposição sem nos assaltar toda a reflexão sobre o recalcado na civilização moderna, a dissipação de energia, a pura perda e a imundície, la part maudite, nos escritos de Georges Bataille. Justamente, as duas performances apresentadas por António Lago, em que o performer travestido encarna Gisberta Salce Júnior, a mulher trans, de origem brasileira e prostituta brutalmente assassinada em 2006 por um bando de adolescentes (nos antípodas dos rapazes vivazes de Diogo Nogueira) que se desembaraçaram do corpo, lançando-o a um poço, nos escombros de um prédio em construção embargado há anos no Porto, resumem com absoluta violência o estádio pré-racional e os terrores da carne.

Apresentada na noite de inauguração, a primeira performance de António Lago encarnando Gisberta, Em Sequência (2020), repetia vezes sem conta o ato sumário do suicídio com o disparo de um revolver apontado à própria cabeça em que cada morte corresponde ao nome de um governante autocrata escrito numa venda colocada sobre os olhos (Putin, Trump, Xi Jinping, Erdoğan, Netanyahu, Kim Jong-un ...), enquanto citações do texto Grito de Socorro de Peter Handke surgiam projetadas em fundo, ao som da magoada melodia de The End Of The World por Julie London.

Na segunda performance de António Lago, Introspeção (2024), Gisberta (mais que personagem, a assombração – pessoal e coletiva – reclamada por Lago) parte uma pilha de pratos, depois de exibir a frase escrita em cada um deles (excertos da obra homónima de Peter Handke) lançando-os, um a um, contra o chão de cimento. É um grito mudo de protesto, é o teatro e o seu duplo de Antonin Artaud, com o corpo trespassado pelas energias primitivas do cosmos ou o corpo sem órgãos de Gilles Deleuze e Félix Guattari atravessado por forças incontroladas e tensões políticas entre mil planos de estratificação. Que energias sábias transpõem os corpos? parece perguntar-nos a dupla exposição. É o corpo da hospitalidade nas entranhas da dúvida, o corpo desinstitucionalizado. O corpo descolonizado.

Sobre esta interrogação fundadora radica, ainda, o autorretrato de João Paulo Balsini, Sem Título (2023), feito de um rosto tornado (no empastelamento da tinta) pura carne, no lastro do que subsiste de insondável no chiaroscuro dos retratos de Rembrandt – a pele, os poros,  os pelos, banhados numa luz seminal – vindo a eclodir nas figuras esventradas de Francis Bacon na resposta intempestiva (e anacrónica) ao choque da violação em massa e da carnificina planificada pelas nações civilizadoras e coloniais na Segunda Guerra Mundial.

Encontro Inesperado/Uma Cerveja no Inferno é um alerta sobre a condição crítica da Europa, o rumo exaltante dos corpos sagazes e as forças vitais que abrasam as ligações e nos edificam junto de fontes intensas, qualificadas e inesgotáveis de deleite. Ou de como, ao inferno de toda a sorte de moralismos, preferimos a materialidade da via láctea.

 

 

Galeria Graça Brandão

 

 

 

João Sousa Cardoso é Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Paris Descartes [Sorbonne]. Defendeu a tese L’imaginaire de la communauté portugaise en France, à travers les images en mouvement [1967–2007], orientada pelo sociólogo Michel Maffesoli. Integrou o Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien da Universidade Paris Descartes. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 2005 e 2009. Encenou Sequências Narrativas Completas, a partir de Álvaro Lapa, com estreia no Teatro Nacional D. Maria II, em 2019. Dirigiu o TEATRO EXPANDIDO!, no ano de reabertura do Teatro Municipal do Porto, de janeiro a dezembro de 2015, projeto que atravessou a dramaturgia do século XX, levando à cena 11 peças em 12 meses. Publicou os livros Sequências Narrativas Completas [prefácio de António Guerreiro] e A Espanha das Espanhas [prefácio de Jacques Lemière] pela Book Cover, em 2020. Professor na Universidade Lusófona. Escreve regularmente ensaio para o jornal PÚBLICO.

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Uma Cerveja no Inferno. Vistas da exposição na Galeria Graça Brandão, Lisboa, 2024. Cortesia Galeria Graça Brandão.

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Diogo Nogueira, Encontro Inesperado. Vistas da exposição na Galeria Graça Brandão, Lisboa, 2024. Fotos: Manuel Marcelo. Cortesia Galeria Graça Brandão. 

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