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Perfil: Mirna Bamieh 

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Luísa Santos

Do azedo e amargo ao doce, por caminhos de sal

A prática artística de Mirna Bamieh explora as políticas do desaparecimento e da produção de memória a partir das limitações vividas pelas comunidades palestinianas face aos conflitos e dilemas políticos. Formada em artes culinárias, Mirna Bamieh junta os universos da comida e das histórias que conta visualmente em projetos co-criativos. Na verdade, mais do que cocriação, a prática de Mirna Bamieh é assente em políticas de partilha.

Conheci a Mirna Bamieh no HANGAR, em Lisboa, em Janeiro deste ano, durante a sua residência artística, através da Ana de Almeida (codiretora do HANGAR), que disse qualquer coisa como “tens que conhecer a Mirna, tem um trabalho incrível e tão necessário.” Alguns meses depois, durante uma apresentação que entendi como talk-performance no HANGAR, as palavras da Ana de Almeida não poderiam ter ressoado mais. A Mirna Bamieh corrigiu-me rapidamente quando chamei a conversa de ‘talk-performance’: “as minhas apresentações são sempre assim”, dizia-me. A razão pela qual considero que esta conversa foi performativa prende-se, essencialmente, com o facto de a maneira como a artista falou da sua prática ter um carácter de partilha e de reciprocidade que não associo a conversas tradicionais. Primeiro, porque a Mirna Bamieh não esteve, em nenhum momento, parada a falar a partir de um ponto fixo. Pelo contrário, moveu-se por toda a sala, o seu corpo esteve sempre totalmente ligado à sua fala. Depois, porque demonstrou estar genuinamente tão disponível para escutar como para falar. E, finalmente, porque a conversa terminou na grande mesa da sala e, através deste momento de convivialidade e de partilha de bebidas, pão e doce de laranja, todos começámos a levantarmo-nos das cadeiras, dos nossos pontos fixos, mexemo-nos, comemos, e falámos como se nos conhecêssemos há muito tempo num momento emotivo e com a mesma doçura dos alimentos que partilhámos.

O doce de laranja que todos pudemos comer no final da conversa é parte integrante da investigação da artista para o projeto Bitter Things: in the name of an Orange (2024), que será mostrado no final de Abril em Espanha. O projeto começou com as laranjeiras em frente ao Centro de Creación Contemporánea de Andalucía (C3A) e foi comissariado pelo Thyssen Bornemisza TBA21 em duas partes: a primeira, na Primavera, sobre as laranjas amargas e a segunda, no Outono, será sobre azeitonas. Em conjunto com o coletivo La Fresnedilla, em Córdoba, a artista processou 300 kilos das laranjas amargas do museu para preservá-las em sumo concentrado e doce a partir de três receitas da Andalusia e de Bilad A-Sham. Estas receitas tradicionais são muito pouco usadas atualmente e, aos poucos, estão a desaparecer.

O desaparecimento de património natural e cultural — no qual as tradições e as matérias culinárias se inserem — ocupa um lugar central em toda a prática da Mirna Bamieh, em particular no Palestine Hosting Society (2018 — em curso), um projeto de live art no qual organiza jantares performativos e intervenções que vão das práticas culinárias à passagem de receitas entre gerações para revitalizar culturas culinárias da Palestina que estão a desaparecer.  Este desaparecimento de património cultural pode ser observado em muitas partes do mundo, de diversos modos, seja por atividade humana, como a guerra, o colonialismo e os genocídios ou por desastres naturais, que, na verdade, têm muitas vezes atividades humanas na sua origem. Em Bitter Oranges, as dimensões naturais, culturais e humanas aparecem interligadas entre si e, por sua vez, com (pós)memórias individuais e coletivas.

Uma das razões pelas quais as laranjas amargas aparecem no trabalho da Mirna Bamieh é por serem o seu fruto preferido, uma preferência que tem uma história simultaneamente pessoal e coletiva associada. Muitas cidades têm vindo a integrar as laranjeiras no seu planeamento urbano há centenas de anos. Este é o caso de várias cidades portuguesas, desde o século XI, quando as laranjas amargas foram introduzidas na Europa do Sul a partir de Itália. Nesta altura, estávamos na Era do Ouro do Islamismo, ou seja, um momento de trocas culturais, científicas e económicas intensas.  Ao longo dos tempos, estas árvores têm vindo a cair em desuso, deixaram de ser plantadas, e foram gradualmente trocadas por árvores com frutos mais fáceis de comer e de processar do que as laranjas amargas. O pai da Mirna Bamieh é de Yaffa[1], a cidade doce de onde vieram estas laranjas amargas. Yaffa, hoje, contudo, não é uma cidade doce. Uma cidade maioritariamente árabe durante a era Otomana, Jaffa tornou-se conhecida no século XIX pelas suas frutas, incluindo as laranjas Jaffa.  Depois da Nabka[2], na Palestina, em 1948, a maioria da população árabe fugiu e foi expulsa e a cidade tornou-se então parte do que viria a ser estabelecido como estado de Israel, tendo sido unificada com Tel Aviv em 1950.

 

 

A história de ocupação e a história das laranjas Jaffa são uma só. Como questiona Mirna Bamieh, pode uma laranja Jaffa ser ainda uma laranja Jaffa se as pessoas que nasceram e viviam na cidade que lhe deu nome foram violentamente expulsas e mortas? As laranjas Jaffa, conhecidas no seu nome árabe como laranjas Shamouti, nasceram enquanto mutação numa árvore Baladi (uma espécie de oliveira) perto de Jaffa, e desenvolvidas por agricultores palestinianos no século XIX. Por serem laranjas com poucas sementes e casca grossa, eram particularmente aptas para exportação. Com o desenvolvimento dos navios a vapor na primeira metade do século XIX, estas laranjas eram particularmente queridas nos mercados por várias partes do mundo. Assim, a expansão da indústria de exportação das laranjas Jaffa cresceu de 200.000 laranjas em 1845 para 38 milhões em 1870, um crescimento exponencial em menos de três décadas. Depois de 1948, contudo, a origem das laranjas Jaffa foi falsamente apresentada sob uma narrativa de movimento pioneiro de Israel, ignorando qualquer presença árabe na história. As laranjas Jaffa, um dos símbolos da Palestina, foi apropriado e tornado símbolo do Zionismo, enquanto aqueles que plantaram as primeiras árvores e foram responsáveis pelo seu sucesso, ficaram à margem, como personagens secundárias da história da qual são, originalmente, protagonistas.

Em Bitter Things: in the name of an orange, a identidade palestiniana das laranjas Jaffa ocupa, pelo contrário, o lugar central. Uma instalação multimédia de uma estrutura de uma cozinha é o lugar a partir da qual Mirna Bamieh escreve histórias destas laranjas: desde aquelas que crescem hoje junto ao museu e ficam caídas no chão, daquelas que vêm da única árvore da casa do pai da Mirna, cuidadosamente preservada, e daquelas laranjas Jaffa que foram plantadas há muitos séculos atrás na Palestina. As histórias cruzam assim temporalidades tão distantes como a Era do Ouro do Islamismo, as histórias de colonização, a ocupação e a expulsão ao longo dos tempos até chegarem aos tempos dos corpos coletivos e dos individuais de hoje, como o da Mirna Bamieh.

A estrutura da cozinha de Bitter Things: in the name of an orange é habitada por paisagens compostas por 22 esculturas de cerâmica das laranjas Jaffa, umas em cima das outras, num jogo de força e equilíbrio prestes a colapsar; outras estão esmagadas, pressionadas; umas estão a apodrecer, outras estão a sangrar e torna-se inevitável estabelecer analogias com corpos humanos. Também há laranjas com autocolantes originais, de arquivo, da marca das laranjas Jaffa antes da Nabka que acrescentam mais camadas de história. O vídeo Interrupted Biographies (2014) está integrado na instalação e oferece mais uma camada. O vídeo foi produzido como uma tentativa de mostrar (mais) um período quase esquecido da história, no qual as fronteiras entre a Palestina e o Líbano eram permitidas. E é só por terem sido permitidas que a Mirna Bamieh existe: a mãe e o pai são, respetivamente, da Palestina e do Líbano. O som do vídeo é o que dá o som à cozinha, preenchendo o espaço com a celebração do aniversário do irmão da artista, com as vozes da família materna da artista na casa da sua avó no Verão de 1996 quando cada membro da família vivia em diferentes partes do mundo, e com uma cena da música pop de Ragheb Alama, na qual podemos ver o irmão da Mirna Bamieh a dançar. O vídeo foi produzido a partir de um texto, escrito pela artista, que é um conjunto de memórias pessoais, sobre as cicatrizes da guerra em quem as viveu na primeira pessoa e daquelas que ficam impressas em quem as vive a partir dos traumas dos pais e dos avós. Num espaço adjacente à instalação, estão duas impressões fotográficas de documentos de arquivo sobre as perdas dos agricultores da Palestina, e outra impressão com duas páginas do diário de Najat Bamieh, de 1987, sobre a sua vida em Jaffa e o momento no qual perdeu a sua casa. E, assim, a partir das histórias das laranjas, desenha-se uma linguagem visual na qual as memórias e as pós-memórias individuais e coletivas são misturadas e tornadas uma só.

Bitter Things: in the name of an orange surge, como todos os projetos da Mirna Bamieh, interligado a projetos anteriores e posteriores, ainda em construção, todos de longa duração. Neste caso, está intrinsecamente ligado ao Sour Things, que começou em 2023. Na última conversa que tive com a Mirna Bamieh, partilhou que, em determinada altura, uma série de Sweet Things irá suceder a Sour Things e a Bitter Things.  A primeira forma de Sour Things foi Sour Things: The Souq, uma instalação site-specific numa banca no mercado de frutas e vegetais (souq, em árabe) em Sharjah para a Sharjah Biennial 15. Enquanto em Sharjah, a Sour Things estava num espaço exterior, na segunda apresentação, Sour Things: The Kitchen, apresentou-se no espaço interior do Nika project space na Feira de Arte de Dubai. Na primeira aparição, as ideias de decadência que podemos ver nas laranjas de Bitter Things: in the name of an orange, começavam a ser delineadas enquanto as características mais corpóreas e humanas surgiram em Sour Things: The Kitchen.  

Já em Sour Things: The Pantry, apresentado no início deste ano no Noordbrabants Museum, na Holanda, corpos de tartarugas com expressões de dor, carregam sal que, segundo a artista, representa o futuro. As criaturas em forma de tartarugas, representam os sobreviventes, os que foram forçados a sair das suas casas, aqueles que viram atrocidades impossíveis de imaginar. Ainda assim, apesar das dores, caminham para um qualquer futuro. As carapaças das tartarugas (simultaneamente as suas casas e os seus corpos) aparecem esvaziadas, amputadas, os membros arranhados e deformados. A tensão entre dor / presente e esperança / futuro também aparece no papel de parede da instalação. À primeira vista, parece ser apenas um padrão abstrato e colorido. Se nos aproximarmos, contudo, poderemos ver limões a apodrecer e rostos em sofrimento. Os desenhos da parede, pelo contrário, não têm qualquer contraste entre dor e abstração, todos revelam, exclusivamente, uma dor profunda. Esta apresentação de Sour Things foi, como a Bitter Things, criada depois do início do escalar do genocídio em Gaza. Assim, o processo criativo foi, inevitavelmente, uma resposta emotiva e física. Em meados de Outubro, ficou decidido que a Sour Things no museu holandês seria uma despensa para os que são desenraizados dos seus lugares. Poucas semanas depois, a artista deixou a sua cozinha, a sua despensa, e viu-se ela própria desenraizada. Os desenhos foram feitos a partir de uma pergunta que uma menina de 13 anos de Gaza partilhou nas redes sociais: “será que eu seria livre se fosse um objeto?” A liberdade, para esta menina, só parecia possível se abdicasse da sua humanidade e se tornasse um objeto. Esta é a violência impressa nos corpos das tartarugas. Já as jarras que carregam o sal, nos corpos das tartarugas são esses objetos de esperança num futuro em liberdade. Os percursos que estão a fazer, com o sal, talvez os levem a um lugar livre, como Yaffa, a cidade das laranjas onde o pai da Mirna Bamieh cresceu. Afinal, é com estas laranjas amargas que é possível fazer o doce, a partir de receitas de lugares tão distantes como Espanha e Palestina, que a Mirna Bamieh partilhou em Lisboa.

 

Mirna Bamieh

 

 

Luísa Santos [1980, Lisboa]. Curadora Independente, doutorada em Culture Studies pela Humboldt & Viadrina School of Governance, em Berlim, e mestre em Curating Contemporary Art pela Royal College of Art, em Londres, é, desde 2019, Investigadora Auxiliar em Estudos de Cultura vertente de Estudos Artísticos na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Entre 2016 e 2019 foi Professora Auxiliar, com uma Gulbenkian Professorship, na FCH-UCP. É research fellow da The European School of Governance [EUSG], em Berlim, desde 2019. Em 2013 foi investigadora em Práticas Curatoriais na Konstfack e na Tensta Konsthall, em Estocolmo. Investigadora do CECC, co-fundou e é directora artística do projeto 4Cs: from Conflict to Conviviality through Creativity and Culture, um projecto de cooperação Europeu cofinanciado pela Europa Criativa. É membro do conselho editorial das revistas Estúdio, Gama, Croma, do Yearbook of Moving Image Studies [YoMIS - Research Group Moving Image Kiel], Büchner-Verlag, do Garage Journal do Garage Museum de Moscovo e editora da série [im]material culture[s] and politics, da Routledge. Em 2018, co-fundou a nanogaleria com Ana Fabíola Maurício. 

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 





Imagens: Sour Things: The Kitchen, multimedia installation, Nika project space, 2024; Bitter Jaffa, ceramic sculpture, 2024. Part of Bitter Things: in the name of an orange, multimedia installation; The Tongue tracing the hand tracing the earth, dinner performance, The Invisible Dod, New York City, 2021; Sour Things: The Pantry, multimedia installation, Noordbrabants museum, 2024. 


Notas:

[1] Yaffa é versão árabe do nome da cidade enquanto Jaffa é a versão hebraica, pela qual é reconhecida.

 

[2] A Nakba, que significa “catástrofe” em árabe, refere-se ao deslocamento forçado, em massa, e à expropriação de palestinianos durante a guerra árabe-israelense de 1948. Antes da Nakba, a Palestina era uma sociedade multiétnica e multicultural.

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