João Pimenta Gomes: Últimos sons
Tacet
O silêncio é uma impossibilidade. Nem mesmo quando tudo parece desprovido de som é alcançável a total ausência de ruído no mundo. Podem ser sempre detetadas sonoridades subtis, zumbidos distantes de natureza artificial ou biológica, dos aparelhos eletrónicos, ao vento ou até mesmo ao próprio batimento cardíaco. Por outro lado, também a mente humana, em constante funcionamento, parece preencher qualquer lacuna auditiva com pensamentos, memórias ou emoções. Nesse sentido, a impossibilidade do silêncio absoluto reafirma a ubiquidade do som assim como nos instiga a refletir sobre a natureza da existência humana ou até da própria linguagem.
Últimos sons é o título da primeira exposição individual do músico e artista visual João Pimenta Gomes (Lisboa, 1989), na Galeria Vera Cortês, em Lisboa. No espaço branco da galeria, apresenta quatro instalações sonoras imóveis e aparentemente mudas, opostas a uma parede pintada de preto e a uma fotografia. O negro da parede parece comportar um vazio que se expande e que encerra, paralelamente, uma quase inevitável dimensão sedutora que provoca e atrai o espectador, enquanto as quatro fontes de som se impõem igualmente no espaço. Os mecanismos do seu funcionamento são deixados visíveis, os sintetizadores modulares apoiados no chão e os seus amplificadores, como criaturas em repouso, apresentam-se suspensos a uma altura que concorre diretamente com o corpo do observador. Surpreendentemente os sons que emitem vêm a ser revelados com esta aproximação física e é como a partilha de um segredo que se adensa. Cada composição sonora tem uma vida independente em potência que é desperta por sensores de luz. É a sombra projetada pelo corpo do espectador que ao incidir sobre os objetos revela a sua sonoridade, podendo-se, desta forma, intuir um paralelismo com a própria ideia de sombra como elemento que encerra todas as possibilidades e a integração de todas as partes, reconhecendo que a totalidade, incluindo as partes sombrias, abarcam a complexidade da nossa existência. Por consequência, Pimenta Gomes parece explorar as relações entre presença e ausência, espaço vazio, suspensão e som ao mesmo tempo que reflete sobre o espaço negativo, como compasso e domínio fértil de possibilidades criativas ao projetar uma paisagem simultaneamente íntima e interdita. Nesse sentido, também o espaço negativo do som não é simplesmente a sua ausência, mas sim uma presença em si mesma, uma pausa que permite que os sons se destaquem e que a perceção do ouvinte seja expandida para além dos limites convencionais — a tensão e a dinâmica — o campo entre sons como uma parte ativa e essencial da experiência.
Dos objetos é audível uma voz selvagem e evasiva, que tem tanto de delicada e frágil como de expressiva e gutural. A sonância que espoleta — para o qual a voz humana é a fonte sonora — assim como a sua propagação, envolve-nos na totalidade, emergindo do silêncio do espaço, infundindo-se, para no momento seguinte dissipar-se, extinguir-se e desaparecer, regressando a uma interioridade latente e privada. Uma vez que até o nosso próprio centro de equilíbrio se situa no ouvido, aquilo que é escutado não só transmite um sentido de espacialidade como nos implica e nos transforma física e emocionalmente. Um magnetismo que se pode assemelhar a um murmúrio atemporal ou ao canto de uma sereia (a voz encantadora, capaz de hipnotizar aqueles que a ouvem), entre o melancólico e o que é tendencialmente mediativo. O corpo convocado do espectador é agora uma caixa de ressonância que reverbera conjuntamente com o que o rodeia: não somos apenas nós afetados pela obra, mas também a própria obra é afetada por nós, reciprocamente numa atmosfera vibrante de possíveis lembranças sensíveis em escuta. Atmosfera, conceito introduzido por Gernot Böhme, refere-se à qualidade emocional e sensorial de um ambiente físico. Böhme propõe a significação de que os espaços não são meramente vazios ou neutros, mas carregados com atmosferas que influenciam a nossa perceção e a qualidade das nossas experiências. Essas atmosferas são compostas por uma interação complexa de elementos como luz, cor e som, que evocam sensações específicas e moldam o estado emocional de quem presencia o momento, não localizando a atmosfera “no interior das coisas de que parecem emanar, nem no interior do sujeito que as sente fisicamente, mas “entre” eles e em ambos ao mesmo tempo”[1]. Nesse sentido parece ser aquilo que acontece nesta exposição: sons, cor e imagem que preenchem e saturam o ar atingindo-nos, tendo por isso um forte potencial afetivo. São estímulos que podem despertar eventuais comoções e moldar o envolvente, sendo essa a dimensão do efeito exercido pela atmosfera. Todos estes elementos e potências criam um mistério que se vê igualmente velado na imagem fotográfica exposta. A fotografia, também ela silenciosa, vive da mesma forma, correspondida e ativada pela dimensão subjetiva do espectador. A aparente banalidade que regista, capta o momento, fixando-o. O que parece uma abertura de intimidade apenas vibra em quem está disposto a deixar-se atingir pela flecha lançada. O corte, o corpo, o desejo e a celebração, a narrativa que se prende na continuidade da imaginação, no que acontece para lá do plano fotografado. Dentro deste enigma que se instaura e que vive pulsante, os últimos e derradeiros sons são o desfeche que dão lugar à surpresa e ao inesperado.
Carolina Quintela (1991), curadora. É licenciada e mestre em Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, e pós-graduada em Curadoria e Programação das Artes pela Universidade Católica Portuguesa. Desde 2015 que se dedica ao desenvolvimento de projetos curatoriais, investigação e produção de textos. É Curadora e Investigadora do MACAM: Museu de Arte Contemporânea Armando Martins.
João Pimenta Gomes, Últimos sons. Vistas da exposição na Galeria Vera Cortês, Lisboa, 2024. Fotografias: Bruno Lopes. Cortesia Galeria Vera Cortês.
Nota:
[1] Erika Fischer-Lichte, Estética do Performativo, p.270