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Gil Delindro: Para Lá da Escuta

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Isabel Nogueira

 

Para Lá da Escuta é um título indicativo, desde logo, da possibilidade de materialização de algo absolutamente não visível e imaterial, como é o som. De facto, a transformação de som em escultura, através da produção de peças elegantes, visualmente fortes, audíveis e com pendor sensorial, mediante a reverberação ou o movimento que incorporam, faz desta exposição uma das experiências mais originais e, também por isso, mais interessantes do momento. As obras são da autoria de Gil Delindro (n. 1989) e a curadoria de Raquel Castro, que concebeu um programa mais vasto denominado O Som Liberta. Certamente que sim.

Das primeiras vezes que nos deparámos com peças de Delindro foi em 2020, no âmbito do festival Lisboa Soa, também com curadoria de Raquel Castro, quando era apresentada uma bela Fictional Forest, no Palácio Sinel de Cordes, na qual o espectador era convidado a percepcionar molhos de centeio dispostos na vertical, que rodavam como numa dança, provocando uma contemplação hipnótica e intimista e um efeito sonoro que se originava pela subtileza do toque do centeio em microfones, produzindo uma sonoridade aveludada e poética. A iluminação tornava o conjunto esteticamente ainda mais eficaz e circunscrito.  

Quatro anos depois, voltamos a encontrar trabalhos nesta linha singular de conexão entre som, instalação, tridimensionalidade escultórica e mistura de materiais industriais com outros vindos da Natureza, numa proposta que podemos afiliar na experimentação, claro, mas ainda mais longinquamente na Land art e nas suas problemáticas de chamada de atenção para o esgotamento dos ecossistemas, proclamando uma consiência capaz de nos fazer regressar à Natureza e à comunhão com ela. O som parte do silêncio, ou seja, da consciência entre um e o outro, tal como a posição neutra de preparação na dança clássica antecede o salto, por exemplo. Esta relação com a Natureza é completamente oportuna em tempos de infindável ruído e de receio do vazio sonoro, que possivelmente espelha um receio mais profundo: o da solidão. Neste caso, o som oprime e ludribria, precisamente o oposto da consciência e conexão que esta exposição — e bem — propõe.

Gil Delindro procura na sua prática precisamente esta compreensão e reflexão sobre a espacialidade temporal e matérica do som, ancorada numa actividade recorrente de preparação que passa, nomeadamente, pela permanência em comunidades isoladas ou em locais desafiadores para o ser humano, como o deserto do Saara ou a floresta amazónica. E trata-se de espacialidades em que o som certamente possui uma dimensão notável e única, inclusivamente pela excepção que maioritariamente representa.

Debrucemo-nos sobre as peças que compõem esta exposição. As Carpintarias de São Lázaro são um espaço industrial e nu que potencializa este tipo de propostas, uma vez que enaltece a sua dimensão, espacialidade e visualidade. O espectador pode percorrer o espaço com a respiração e cadência que entender, numa iluminação bem conseguida que promove, ao mesmo tempo, a intimidade com cada peça. Trata-se, como já referimos, de obras de grande escala, sobretudo visível nos trabalhos colocadas na vertical, nos quais a chapa metálica endurece a visão ao mesmo tempo que a desmaterializa, num reflexo expandido e na reverberação que emana. Esta desmaterialização é acentuada pela peça que se encontra no solo e cuja água se movimenta de modo delicado. Todas as peças funcionam, na verdade, como organismos vivos e produzem algum tipo de sonoridade associada ao movimento. Possivelmente, as melhores obras do conjunto são os trabalhos concretizados por uma imensidão de finos e delicados paus em madeira, que se movimentam subtilmente, de algum modo numa conceptualização que evoca a peça Fictional Forest.

Para Lá da Escuta é uma exposição mas é também a criação de ambiente e de universo, convidando o espectador a neles participar. É uma exposição que, como começámos por referir, surpreende pelo conceito e pelos conteúdos que apresenta. Esta singularidade, ancorada nas características destas peças, simultaneamente sonoras e visuais; orgânicas e industriais, faz deste lugar um lance de vista que de certo modo representa metaforicamente uma paisagem visual e sonora (soundscape), ao mesmo tempo. E esta transitividade de suportes e linguagens é relevante e atractiva.

Finalmente, e do ponto de vista da arqueologia destas questões e interesses, podemos convocar as acções da vanguarda futurista e a sua tentativa de misturar suportes e problematizar abordagens de modo inédito, visível nos trabalhos seminais de Luigi Russolo, artista visual criador do “intonarumori” (máquina de fazer ruídos) e autor de textos importantes, de que se destaca A arte dos ruídos (1913). Na verdade, podemos encontrar pela primeira vez na história da arte uma vontade de conectar o domínio sonoro ao plástico, que seria muitos anos depois, já na década de 60, completamente desenvolvido e superado de diversas maneiras, nomeadamente através da construção de ambientes e de instalações. Na verdade, Gil Delindro convoca no seu trabalho todas estas realidades e possibilidades operatórias, procurando transcender a visão, a audição e o tempo, fundindo-os, problematizando-os e devolvendo-os ao espectador. O dia vai caindo e a luz dourada é a melhor hora para aí entrar e deixar-se levar para além da escuta e da visão.

 

Gil Delindro

Sonora

Carpintarias de São Lázaro

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

       



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Gil Delindro: Para Lá da Escuta. Vistas gerais da exposição nas Carpintarias de São Lázaro, Lisboa, 2024. © Fotos: Vera Marmelo. Cortesia de Sonora.

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