40 / 52

Lettera d'amore

12.jpg
Valerie Rath

 

Posso sempre crescer outra vez.

Este pensamento foi-se solidificando na minha cabeça depois de visitar a exposição coletiva Lettera d'amore, com curadoria de Alberta Romano. Patente na Kunsthalle Lissabon, esta mostra integra peças de Alice dos Reis, Tamara MacArthur, La Chola Poblete, Laure Prouvost, Giulio Scalisi e Inês Zenha, todes artistas que foram anteriormente convidades para realizar exposições individuais naquela instituição. Lettera d'amore é a primeira de três coletivas organizadas ao longo de 2024 por três curadoras — Alberta Romano, Yina Jiménez Suriel e Filipa Ramos —, num período durante o qual a Kunsthalle Lissabon interrompe a programação habitual de exposições individuais para celebrar o seu 15.º aniversário.

Posso sempre crescer outra vez.

Quão reconfortante é chegar esta conclusão; quão entusiasmante, quão libertadora e desafiante é, reforçada pela observação de que não precisamos de passar por este processo sozinhas. A Alberta e a Kunsthalle Lissabon cresceram juntas, com e através uma da outra, tal como Lettera d'amore revela. Trata-se, precisamente, de uma carta de amor entre a curadora e a instituição, naquilo que marca não apenas o 15.º aniversário da KL mas também o adeus da Alberta a esta casa, manifestando-se em forma escrita e também através da exposição.

Descendo pelas escadas que levam ao espaço expositivo, podemos ler na parede, em letras azuis, "Cara Kunsthalle Lissabon", o início da carta de amor da Alberta, deixando entender que esta carta não se dirige a mim, enquanto visitante, mas sim ao próprio lugar onde me encontro a lê-la. Com isto, ainda assim, a Alberta não me está a deixar de parte; antes, está a partilhar comigo, e com toda a gente que disponha o seu tempo para parar e ler, os sentimentos e as memórias que lhe ficam deste lugar, bem como as pessoas que acolheu na sua contínua hospitalidade — das quais ela própria faz parte.

Posso sempre crescer outra vez.

Por outro lado, isto também significa que havemos sempre de voltar a algum género de começo nas nossas vidas; a um começo de um manancial quase inacreditável de possibilidades que nos fazem oscilar entre a determinação e a dúvida, entre a ansiedade e o arrojo — um começo de um ressurgimento de autodeterminação, tal como se sente pela primeira vez na adolescência, quando a sede de independência ainda não se deixar condicionar pela assimilação da responsabilidade que lhe é inerente. Ainda que durante esta passagem à idade adulta sonhemos estar em todo o tipo de lugares que existem para lá das paredes do nosso quarto, também podemos, mais tarde, enquanto pessoas supostamente crescidas, ansiar pelos lugares que suscitam um sentido de segurança precisamente por via desta familiaridade emparedada. E a Alberta, até certo ponto, redescobriu este lugar de proteção na Kunsthalle Lissabon; ou, a bem dizer, ali o reconstruiu para si própria. Esta exposição é um testemunho disso mesmo. Na sua carta de amor, ela convida, sobretudo, aqueles artistas que, sustentades pela hospitalidade da KL, lhe transmitiram um sentido particular de pertença através de um sentido partilhado de intimidade — não apenas entre todes, mas também através das suas obras artísticas.

Acabando de ler a carta, viro-me para a exposição, e sigo a cortina branca semitransparente que serpenteia por toda a sala, gerando uma nova e suave configuração que a divide sem criar interrupções. Este design expositivo, da autoria de Carlos Bártolo, possibilita uma aproximação à intimidade com es artistas que a Alberta descreve na carta; mas, mais do que isso, também me permite um momento de proximidade com es artistas que aqui se apresentam. Alguns já me são familiares, e pude conhecê-los através dos trabalhos artísticos que apresentaram em exposições individuais neste mesmo espaço; outros, conheço pessoalmente, da altura em que fiz um estágio na Kunsthalle Lissabon e em cujas exposições, como tal, tive a oportunidade de trabalhar; e outros há ainda de quem apenas sei o nome e as histórias que me foram contadas. Lettera d'amore funda-se numa subtil interação de regressos e descobertas; cada peça transforma-se num documento não apenas do passado mas também do presente da Kunsthalle Lissabon.

Reconheço imediatamente a obra da artista portuguesa Inês Zenha, cuja exposição individual Ressurreição, patente no início do ano passado, transformou a KL numa espécie de casa de banho sagrada em que a fluidez de género purgava delicadamente as normas rígidas dos binarismos. Ao passo que, naquela exposição, a instalação se continha num branco purificador, nos trabalhos que aqui se apresentam o azul flui livremente na minha direção. Reaching for a blue flame é o título da série, que, nas suas três pinturas a óleo sobre papel, nos mostra um conjunto de figuras ternamente entrelaçadas umas nas outras, com corpos de configuração fluida. As obras de Inês transmitem-me sempre um sentido incrível de vulnerabilidade — uma vulnerabilidade na qual, no entanto, ao desfazer-se de quaisquer sugestões clichés de fraqueza, eu quero envolver-me, num abraço que me transmite um sentido de proteção e de confiança não apenas em mim mesma mas também nos outros.

Dou mais uns passos, e chego à peça de Giulo Scalisi. A maqueta The Obelisk está apoiada numa base redonda cortada a meio, pelo que consigo olhar para o seu interior. Faz-me lembrar uma casa de bonecas de algum mundo paralelo futurístico, mas está vazia. A única figura que aparece revela-se na impressão montada na parede por detrás da maqueta. Esta impressão, intitulada A landscape of a gentleman, mostra-nos um cenário distópico de árvores sem folhas e uma paisagem praticamente despida de elementos naturais. Consegue-se discernir quatro destas casas-obelisco; e, no canto inferior esquerdo, sob uma das árvores despidas, vê-se sentado, ou agachado, Paul, a personagem principal da obra de Giulio, que já assumira esse papel na sua exposição individual A house for a gentleman, de 2021, ocasião em que o artista apresentara o protótipo de The Obelisk pela primeira vez. Trata-se de uma espécie de projeção sombria de um mundo cujos habitantes se isolaram de tal forma nas suas próprias casas que já não sabem como fugir dessa situação — um mundo no qual nunca ninguém vive efetivamente, mas onde já sinto que entrei por uma vez ou outra.

O meu momento seguinte é com Laure Prouvost, uma artista sobre cuja exposição já ouvi tantas histórias. Melting into each other, ho hot chaud it's heating dip esteve patente na Kunsthalle Lissabon em 2020. Com esta mostra, Laure mergulhou a KL numa realidade liquefeita que se dissolvia na escuridão. Pela Alberta, fiquei a saber não apenas que a exposição ficou bem marcada na memória daqueles que a visitaram, mas também que as paredes da Kunsthalle continuavam a emanar o cheiro da montagem, qual souvenir espontâneo, muito após o encerramento — um cheiro a peixe, já que todo o espaço desta realidade de Laure estava coberto de tinta de lula. Agora, estou perante uma pequena poça dessa tinta. "This one is love" [Este aqui é amor]. A voz jocosa que há pouco ouvia sussurrar do outro lado da sala vem de um vídeo de um iPhone, aninhado entre rochas, ramos, folhas, dois tijolos e uma tangerina sobre a tinta de lula. "Touch it. You can eat it" [Toca nisto. Podes comer.] Não sei exatamente o que é que posso tocar ou comer, mas quero fazê-lo — a voz não me deixa ir embora.

Finalmente consigo afastar-me da voz e passar para o lado de lá da cortina, e dou por mim frente a um ecrã. Coloco os auscultadores na minha cabeça, e mergulho em For a Life Long Disease of Copper, de Alice dos Reis, apresentada na exposição homónima da artista em 2021. Recorrendo a filtros digitais de envelhecimento, Alice transforma-se na sua própria avó, participando numa entrevista ficcional que aborda o período de tempo em que a segunda trabalha numa empresa de Lisboa para desenvolver o seu primeiro dispositivo intrauterino em base de cobre. Trata-se de uma narrativa ambígua cujos acontecimentos factuais se fundem com elementos de ficção científica, representando um passado vivido através de um futuro por viver que possibilita uma interação mútua numa dimensão pessoal mas também política.

Há pouco, descendo as escadas para o espaço expositivo, todos os presentes na noite de abertura foram informados de que haveria uma performance relacionada com o tato — assim se referia a instalação de Tamara MacArthur, perante a qual me encontro. Esperando a minha vez de entrar na pequena sala circular cheia de cortinas azuis, vem-me ao espírito todo o tipo de recordações pessoais: memórias de cola azul, músicas da Britney Spears, e milhentas estrelas, de quando, em 2022, ajudei Tamara a construir a sua paisagem montanhosa de sonhos sob um céu estrelado para a exposição individual Wished On The Moon For More Than I Ever Knew. A cortina abre-se, por fim, e Tamara convida-me a entrar, indicando que me sente na cadeira. Tudo é azul; tudo está coberto de estrelas. Como é amiúde o caso, tudo em Tamara brilha; e logo dá início à performance de VIP, uma dança privada de uma intimidade emocional que se prolonga pela duração da música que a acompanha. Não se diz uma única palavra; ainda assim, sinto que Tamara diz tanto — através das suas expressões faciais, através do seu toque suave, através da resposta intuitiva que suscita em mim. Não sei qual terá sido a experiência para as outras pessoas, porque esta performance foi só para mim, tal como o foi individualmente para todos os que entraram na pequena sala circular na noite de inauguração de Lettera d'amore. Durante o resto do período de exposição, a presença de Tamara será substituída por um vídeo da sua performance a passar em loop num iPad, acompanhado dos pleaser shoes que deixou na Kunsthalle Lissabon, assim materializando o acontecimento.

Prestes a sair da exposição, vejo outra coisa, em que não tinha reparado, por detrás da parede onde se lê a carta da Alberta. Dobrando a esquina, encontro aquilo que parece ser o refúgio de uma Kunsthalle Lissabon adolescente. Assim que entro na sala, sinto que me transformo numa versão adolescente da pessoa que sou hoje — uma versão obcecada com uma única figura, uma estrela pop: La Chola Poblete. A sua presença domina o espaço, cujas paredes estão repletas de pósteres com o seu rosto, assim a transformando, sem dúvida alguma, no meu maior ídolo. Sento-me no chão, revestido com uma alcatifa roxa felpuda, aconchegada entre duas almofadas com padrão de zebra. À minha frente encontra-se um leitor de CD. Coloco os auscultadores e carrego no botão para reproduzir, e oh — a nostalgia! A voz de La Chola manifesta-se na leitura do seu manifesto, que já fizera parte da inauguração da sua exposição individual PAP ART, de 2023. Sentada neste quarto de adolescente, a ouvir as palavras de La Chola, irreverentes no seu sentido de autodeterminação, finalmente percebo.

Posso sempre crescer outra vez.

 

Kunsthalle Lissabon

Alberta Romano 

 

Valerie Rath é uma produtora cultural e curadora austríaca com formação acadêmica em história da arte e gestão artística e cultural. Atualmente vive em Lisboa. Desde abril de 2024 trabalha como curadora interna da DUPLEX_AIR. A sua prática curatorial é motivada por uma profunda curiosidade sobre a influência das narrativas passadas nas nossas capacidades colectivas e individuais de imaginar mundos futuros — e como as intervenções artísticas podem expandir essa imaginação.

 

 

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro, revisto pela editora.

Nota: Valerie trabalhou como assistente curatorial na Kunsthalle Lissabon no âmbito de um estágio de junho de 2021 a fevereiro de 2022. 

 










Lettera d'amore. Vistas da exposição na Kunsthalle Lissabon. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia des artistes e Kunsthalle Lissabon. 

Voltar ao topo