João Maria Gusmão: Animal Farm
É incomum que a crítica de arte se detenha no que, no fundo, realmente é a experiência de uma obra: a do corpo do crítico e sua circunstância no momento em que a encontra. Pouco se comenta o impacto, por exemplo, do cheiro de uma galeria, ou do tipo humano com o qual esbarramos ali, para a etnografia da obra propriamente dita. Mas esta, como sabemos desde a teoria da recepção, não se separa nunca de seu contexto. Pelo contrário, tudo o que circunda uma obra deve fazer parte da crítica, tudo deve se somar num mesmo vórtex. Desde a dor de cabeça lancinante ou o estômago vazio no momento do encontro até a chuva torrencial da manhã da abertura, que deixa no ar uma sonolência própria e inevitável.
No caso de Animal Farm, primeira exposição solo de João Maria Gusmão em Nova Iorque, fruto de parceria entre as galerias Zé Dos Bois e 99 Canal, a experiência da exposição começa numa abarrotada e anônima entrada de prédio comercial em Chinatown. Acompanhando-nos na fila até um pequeno elevador de carga ao fundo da portaria, funcionários de escritório que carregam caixas de comida e suprimentos de almoxarifado. Nenhum deles sabe informar sobre a exposição, cuja existência em muito os surpreende. Quer dizer, a 99 Canal não é exatamente uma galeria hospedada nesse prédio, senão uma espécie de ocupação invisível, semi-clandestina, do seu sexto andar. É verdade que a maioria das boas exposições de Nova Iorque hoje em dia se dá nesses espaços de artista, em razão da perpétua crise imobiliária da cidade, que em sua impulsão centrífuga ou expulsa os verdadeiros experimentalistas para as margens ou então os deglute em formas expositivas mais dóceis. Mas ainda assim é sempre estranho — e informa totalmente a experiência das obras — entrar numa galeria sem saber se se está no endereço correto.
Quando a porta do elevador que dá para o sexto andar se abre, somos recebidos de supetão, no lobby de entrada, pela imagem de um galo contra um arroubo de luz solar, que em meio à escuridão abissal estoura em reconhecimento: sim, entramos seguramente no reino da arte. E eis aqui um preâmbulo. O galo de Nosferatu nos observa incauto e prenuncia a noite pós-noturna, aquela que se estende eterna apesar de já se ouvir a voz da manhã; a Noite que começa no instante mesmo em que a noite termina. "Um galo sozinho não tece a manhã", diz o poema de João Cabral de Melo Neto. Do outro lado do corredor, ainda antes da sala principal, um discreto projetor nos exibe a imagem de uma fita cassete, cuja forma fria evoca, segundo o curador da exposição, Marco Bene, a espectrologia do primeiro cinema. A implicação é oblíqua e, me parece, desconexa, mas a fita se destaca mesmo das outras obras por sua sobriedade, pela estética austera. Não à toa, Ghost Tape foi produzida dois anos antes de todas as outras peças de Animal Farm, ou seja, não à toa ela antecipa o (mas também se divorcia do) restante do constructo narrativo da exposição.
A montagem da sala principal já indica uma arte mais escultural que propriamente cinemática (como a de Ghost Tape, e a que Ghost Tape faria referência). Os projetores se apertam num espaço tão curto que tomam o centro da galeria com a sua materialidade, tornando as videoartes periféricas, ancilares ao maquinário. Bocas de turbina cobertas por nós de ferrugem que faíscam rubros fazem uma espécie de louvor à delicadeza da indústria, à ciência como forma artística possível — isto é, à ciência como contraciência. Gusmão quer se aproveitar da suposta objetividade da técnica, da suposta transparência da câmera, para causar no espectador desestruturações perceptivas inesperadas. Por isso tudo aqui precisa ser analógico, e tudo depende da raspagem e reversão manual das imagens, da inscrição direta de efeitos alucinatórios nos rolos de 16mm. O cinema se debruça sobre seus princípios, retorna ao gesto mais simples: a manipulação mágica da luz. Pela manipulação de seu índice nas fitas, claro, mas também pela termoformagem do cavernoso na galeria, pelo controle fino da atmosfera da sala, quer dizer, das circunstâncias que o crítico procura ignorar. A luz tanto como mármore quanto como cinzel.
A luz e sua ausência são centrais no interior de cada máquina projetiva, formando nichos pelos quais transpassam os fios de filme de novo e de novo e de novo. Assim igualmente passamos nós, espectadores, em frente às projeções. Em muitos momentos, nos sentimos interrompendo a ficção ou rompendo o véu da ocularidade. Somos banhados pela luz dos filmes e sem querer nos colocamos no interior de suas cenas. Desfazemos por um momento a separação entre sala e tela, definidas, nos diria Crary, pela estrutura do teatro de cávea, cuja planta-baixa subentendia desde sempre uma descorporificação e virtualização do espaço ficcional. Pelo contrário, em Animal Farm nós próprios somos projetados no espaço ficcional, corpos fílmicos, peles-películas. Trata-se, esta exposição, daquilo que Hollis Frampton chamou de cinema "como continente e não como tubulação".
Adicione a isso a ambiência interna da abertura, um clima de festa eletrônica em meio à penumbra, rostos formando no escuro um turbilhão. Os filmes, todos mudos, são infundidos pelas vozes desses espectadores, que conversam alto entre si, seus contornos decalcados pela fumaça do cigarro. Os espectadores são eles próprios cenográficos, parecem atores contratados pela Zé Dos Bois, vestidos como manda a mais recente moda nova-iorquina e encobertos pela semi-cintilação dos projetores, que de longe lembram as lâmpadas focais de um estúdio. A maior parte do público é de portugueses, uns tantos deles expatriados, e passa o seu tempo na sala ao lado, onde não há obra de arte sequer mas o vinho flui gratuitamente. Penso: deve ser este um sintoma importante de um certo contexto, de uma certa estética da recepção.
O falatório não impede que se pondere os filmes de Gusmão. Pelo contrário, os complementam. Atentamos ao movimento das imagens, e as vozes que nos cercam, distorcidas e balbuciantes, agora pendem delas como adornos fantasmáticos. Em Half a Horse, Landscape with Boat and River, e Bedrooms, por exemplo, a imagem é tão lenta que é quase estática, retrato piscando com estranho polimento, e o falatório dos espectadores parece sugerir nelas uma presença surreal. Os filmes não têm peso, e suas imagens, apesar de silenciosas, são quase só acústica. Ao redor delas então, por fora da montagem, as vozes contrafazem um ectoplasma, insinuando figuras que já não estão lá. Em um dos vídeos, cavalos metamórficos se dissolvem de repente no ar, e é como se Gusmão nos dissesse: o cinema de Muybridge inventou o cavalo, ora já podemos desinventá-lo; o cavalo é a concretização da metafísica do movimento, ora já podemos concretizar nele a metafísica da paralisia. Em Bedrooms, uma coleção de camas em casebres portugueses evoca o gótico da velhice e da doença, e a qualquer momento esperamos pela aparição do anjo, como pela Angélica de Manoel de Oliveira.
Em Day for Night e My Uncle's Castle, o falatório se torna praticamente voyeurístico, na medida em que as imagens se pretendem distantes do espaço de exibição, evidências de clareiras solitárias que jamais poderemos tocar. É como se os espectadores observássemos a casa dos outros, a vida dos outros, ou víssemos por detrás da vista dos outros — dessas vítimas da câmera, dessas presas, que obviamente não se percebem observadas por sua própria conta, que não conseguem nem mesmo se observar de fora. Raspadas até o núcleo mais duro, fixadas nos deslocamentos mais sutis, as linhas das imagens parecem duras, homogêneas, como nas pinturas de Hopper. Há um modernismo no uso da forma, no chiaroscuro da casa, nas angulações do cabelo e das folhagens ante o castelo, que evocam os cartões postais de um mundo invertido, totalmente livre de qualquer falatório. Enfatiza-se assim, inversamente, a solidão dos que tanto falam, ali na galeria.
Em alguns casos, o vídeo é tão atraente que nos magnetiza por completo e nos retira do falatório, nos suspende a um palmo dele. Em Solar Farm, por exemplo, sem dúvida a peça mais impressionante (e não à toa a peça-chave) da exposição. Nela a fazenda, vista de cima, lembra uma maquete em miniatura, e no seu centro um reflexo cego forma globulosos clarões. Trata-se de um espelho que, ao longe, lá do chão, prefigura o reverbério circular do sol. Na tela, onde está tão bem enquadrado e devidamente descolado do real, o brilho lembra uma mandala elétrica, ou as insígnias cósmicas de Hilma Af Klint. Olhando, inversamente, para o projetor, é possível ver a incisão do sol perfurando o filme, se interpondo ao filme, e uma constelação de poeira na lâmina ressaltando novamente a função mais-que-fática daquelas máquinas.
Em outros casos ainda a imagem absorve o falatório e o metaboliza. Na peça habilmente intitulada Fermented Foam, um bloco de linhas muito tênues parece envergar o fora, que se desfaz em mais e mais fora, como se dele fosse impossível escapar. As linhas coalham e formam talhos, como se uma brota disforme emergisse ali ininterruptamente e se coagulasse, uma nascente espirrando massa fresca. A luz cremosa embrenha várias cores indistintas em superfície sincromista, com a superposição RGB de três projetores diferentes formulando ali uma gota difusa, uma bolha uterina, uma esfera para milhões de simultâneas osmoses psico-visuais.
Ao lado, através de um arco que projeta um entre-cômodo ou um espaço secundário mais amplo, uma enorme tela retangular eleva uma projeção anamórfica de vacas pastando ao arranjo mais privilegiado da exposição. Flat Cows Make Nice Yogurt é um vídeo cômico mas também bastante mórbido, provavelmente o mais sentimental da galeria. Não só porque os animais, quando estendidos assim horizontalmente, se tornam monstruosos, seus músculos aberrantes levados ao limite, as tetas esgarçadas e esgotadas. Não só porque as vacas são reveladas como meras "máquinas eficientes para a transformação de erva em leite," como as designou, sarcasticamente, Vilém Flusser. Mas porque, contrapostas a horizontalidade da manada à verticalidade da Nova Iorque através das janelas ao redor, tornam-se claras também as regras da pecuária humana, tão nitidamente expostas nesta cidade-exemplar em termos de pastoreio do gado americano.
De fato, das super-vacas ao detalhe do girassol podre em Sunflower at Dusk, das arquiteturas vazias à alienação do trabalho em The Wondrous Pumpkin Farm, o que se experimenta é uma melancolia no fundo de tudo, miasma de morte exalando dos sistemas humanos mais efetivamente bem-articulados, das garantias mais seguras de ordem e extração de valor. Parece que a ideia de Gusmão é demonstrar, pela distorção — tanto frontal quanto implícita — da realidade, a ciência de um mundo fantástico mas cujo âmago no entanto já se putrefez. O artista dá assim continuidade ao trabalho de Jean Painlevé, para quem a natureza era ao mesmo tempo máquina e fantasia, materialidade e imaginação, enquanto satiriza a brutalidade e impessoalidade dos procedimentos mundanos, que a sua câmera registra sem dó.
Portanto, enquanto o primeiro entre-cômodo expunha um naco do transcendente, o segundo é uma ferida aberta no paraíso. O aspecto especulativo das imagens da primeira parte, este que parece obcecar os artistas portugueses contemporâneos, se rebate na segunda contra uma dissolução existencial tanto do conteúdo quanto da própria substância fotográfica. O emplastro de uma tintura é comestível e as abóboras parecem conformações do maravilhoso, mas o tempo é sempre enquadrado pelo capital e mijamos no túmulo de Mozart. O aspecto caseiro, artesanal, das filmagens contribui para essa percepção de um divino lo-fi, processado em baixa resolução, que emergiria na mídia por nossos erros e subtrações. Os rastros destes nos filmes, é importante sobremaneira não apagá-los.
Assim é que a abertura de Animal Farm na 99 Canal fica entre uma festa orgiástica e sua mais devastadora crítica, entre a empolgação infantil com a terra e sua ironização melancólica. Há um flerte com a nostalgia proustiana, uma certa aposta velada em que o tempo e a distância, por si próprios, adicionem à textura da vida ou granulem-na o suficiente para torná-la significativa (como na estética, já comodificada pelas redes sociais, do antigo VHS familiar). E há um reconhecimento de que quando nos retiramos do tempo ou nos aproximamos dos objetos pela imagem científica vemos um mundo que é puro, sim, mas também um tanto quanto sinistro. Gusmão faz com que imitemos o olhar do fantasma ao apontar sua câmera mansamente para a plástica agrária e laboral buscando nela um triste magnetismo pela técnica. Talvez esteja aqui o aspecto revolucionário da exposição, revelado não pelo desintegração política mas pela desintegração basinskiana da técnica.
Se a exposição vence, se nos coloca na posição de imaginistas jubilosos, é justamente e acima de tudo pela técnica. É porque cada obra faz uso de um gimmick particular, que tentamos firmemente desencobrir, como num show de mágica ou no cinema de Cocteau ou Meliés, onde a fonte da catarse é a trucagem. Se a exposição é fascinante como é, é porque Gusmão fabrica lapsos perceptivos a partir de uma destreza admirável no uso do maquinário, e explora o maquinário também como tema de uma saturação perceptiva muito humana. Ele nos faz ver o monstruoso no regime industrial, na imposição do trabalho sobre a natureza, mas também o artesanato concreto que atravessa esse trabalho, e o cômico e o transcendente que, querendo ou não, co-afloram da técnica como gama de possibilidades, assim que ela é interceptada pela criatividade humana.
Os projetores criam luminárias cinemáticas que enfeitam a festa e o falatório, e respondem a eles. Dizem-lhes: assim como vocês observam as imagens como que de fora, nós também observamos vocês. As imagens são interfaces entre dois ambientes igualmente ficcionais. Espalhadas como lampiões, refletidas no chão de linóleo, emolduradas pelas janelas (ou, mais que isso, pela própria cidade de Nova Iorque), essas cenas de um mundo que não nos pertence e ao qual não mais pertencemos parecem tornar nosso mundo, em contrapartida, irreal. Resta saber qual lado da interface é mais profundamente sombrio, qual é mais irremediável, e qual lado não esconde, no avesso da deterioração, brilho vital mais forte e cegante.
Rômulo Moraes é um escritor, artista sonoro e etnógrafo brasileiro. Doutorando em Etnomusicologia na City University of New York (CUNY, Graduate Center) com uma bolsa Fulbright/CAPES, é Mestre em Cultura e Comunicação pela UFRJ. É o autor de “Casulos” [Kotter, 2019] e trabalhou e lecionou na The New Centre for Research & Practice. Atualmente, interessa-se pelas fenomenologias da imaginação, maximalismo pós-mediatico, o entrelaçamento do pop com o experimental, e as cosmopoéticas do garimpo.
Este texto foi escrito em português do Brasil.
João Maria Gusmão, Animal Farm. Vistas gerais da exposição no 99 Canal, Nova Iorque. Fotos: Kunning Huang. Cortesia do artista e Galeria Zé Dos Bois.