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João Motta Guedes: No feeling is final

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Valerie Rath

 

Está uma bela manhã de sábado. Sento-me num terraço com vista sobre os telhados de Lisboa, e finalmente encontro o tempo para começar a escrever este texto. Já tentei algumas vezes, mas nunca me senti na disposição adequada — no estado emocional que me permitisse mergulhar a sério nisto. "so much to do / so much to feel / so much to be / so much to love / so much to enjoy / so much to devour and to be devoured" [tanto para fazer / tanto para sentir / tanto para ser / tanto para amar / tanto para desfrutar / tanto para devorar e ser devorado], como escreve o João Motta Guedes num dos três poemas que fazem parte da sua exposição individual No feeling is final, patente na Galeria da Boavista, com curadoria de Luís Silva. É sobre essa exposição que este texto fala.

Há tanta vida a ser vivida todos os dias, e "A day is not so short even though it is not so long" [Um dia não é assim tão curto, ainda que também não seja assim tão longo], como aponta o artista. Embora não tenha conseguido escrever uma única palavra nestes últimos dias curtos e longos, a exposição não me saiu da cabeça. No feeling is final. O que é que isso significa — para mim, para nós, para a vida, para a forma como deve ser vivida?

Este título, retirado de um verso do poema "Go to the limits of your longing", de Rainer Maria Rilke, é o título não apenas da exposição mas também das três peças apresentadas no piso 0 da Galeria da Boavista. Fiquei surpreendida e entusiasmada quando vi que estas peças são compostas por vitrais, um material habitualmente ancorado na História que raras vezes se vê integrado em interpretações artísticas mais joviais e contemporânea; e que é particularmente especial para mim, considerando a associação que faço com a minha mãe, que também trabalha com vidro e de cuja proximidade muitas vezes sinto falta, estando eu a viver bastante longe dela. "I am right here / you are right there / why is it not possible to build bridges through the abyss?" [eu estou aqui mesmo / tu estás aí mesmo / porque é que não se pode construir pontes sobre o abismo?]

Uma ponte entre nós os dois, mas também uma ponte entre o que está no exterior, o que o mundo é, e o que está no interior, o que eu sou, o que eu fui e o que eu serei. Na sua obra, o João transcende estes mundos aparentemente dissociados através do desdobramento de um âmbito cósmico. O artista fá-lo a partir da sua própria perspetiva, mas, mesmo assim, consigo entrar sem esforço nesta dimensão cósmica, sustentada numa verdadeira universalidade que nos contém a todos por via da nossa essência humana. Os três vitrais acabam por ser diferentes pontos de entrada para esta viagem, potenciada por sensações de êxtase — uma viagem que se pode fazer sozinhe ou acompanhade.

Na materialidade do vidro, o artista encontrou um medium que revela esta viagem em três impressões momentâneas sem a balizar entre qualquer início ou fim. O vidro, no seu estado sólido, é sempre permeável — e ganha vida pelo contacto com a luz, assumindo uma intensidade variável, de dia para dia, que é capaz de levar as cores para lá dos seus limites aparentes. O azul, o vermelho e o amarelo torrado espalham-se por toda a sala. Não há sentimentos definitivos, nenhum sentimento jamais vem só, e nenhum sentimento está para lá de qualquer outro. Quero fazer parte desta viagem e deixar para trás o peso que por vezes sinto. "everyday / wherever you are / flying is a matter of letting go / all the unnecessary weight, / and to go with those who propel us higher / is a thing of beauty / that may last forever" [todos os dias / onde quer que estejas / voar é uma questão de largar / tudo o que pesa desnecessariamente, / e acompanhar aqueles que nos elevam / é algo belo / que pode durar para sempre].

Quero voar.

É um novo dia, e sento-me outra vez para continuar a escrever este texto. Encontro-me no mesmo terraço, mas desta vez já se aproxima o fim da tarde; o sol, no entanto, continua forte, aquecendo-me o rosto, e vai descendo lentamente por detrás da cidade. Sente-se uma leve brisa, e o piar dos pássaros funde-se com o ruído das ruas, que suavemente se vão aquietando. Parece um momento belo — e, de facto, é. Pelos últimos dias, vou dando por mim a ruminar sobre momentos destes, a atentar nas preciosidades que o mundano e o quotidiano contêm, a trazer os meus sentimentos mais íntimos para o mundo, e ao mesmo tempo a deixar que o exterior impressione o que existe dentro de mim. Sobretudo, são os versos poéticos do João que fazem parte desta exposição — e que fui citando ao longo do texto, e que vou lendo e relendo outra vez — que mais intensamente produziram este efeito em mim.

Permito-me regressar ao momento em que, na exposição, saí da sala dos vitrais e subi as escadas. A atmosfera é diferente aqui. A sala está obscurecida, as cores desaparecem, e as paredes estão pintadas de preto, sem a presença da luz do dia. Uma escultura feita de espirais de ferro entrelaçadas domina o espaço. Demoro um pouco a perceber o que estou a ver — e ainda mais o que estou a ouvir. A princípio, parece que os três megafones que se projetam da escultura servem para que o visitante fale para a peça, mas logo percebo que, do seu interior, já emitem uma voz. Trata-se do próprio João a ler os seus poemas, um de cada vez. Os poemas dialogam com os vitrais; e, sobretudo, dão uma expressão mais tangível aos sentimentos que procuram retratar, resgatando-os da abstração pura. No entanto, aquilo que eu sinto, e que o visitante sente, não deixa de ser, até certo ponto, incomunicável, ainda que se possa partilhar vezes sem conta, de infinitas formas. “My dear, come, u can leave when u wanna, / the road goes as the road goes / and absolute freedom / is only true when shared” [Queride, vem, podes ir embora quando quiseres, / a estrada segue como a estrada segue, / e a liberdade absoluta / só o é quando a partilhamos].

A exposição do João é uma viagem por toda uma experiência humana em que a temporalidade se transforma em simultaneidade e singularidade; em que toda a espacialidade se deslocaliza, pelo que a emotividade se torna diretriz. Sobram-nos, assim, possibilidades infinitas, cores bruxuleantes, o horizonte, o sol e as estrelas, e eu própria e cada um de nós. Quando não há sentimentos definitivos, posso desfrutar de cada um deles mais um bocadinho, durante tanto tempo quanto durem.

 

João Motta Guedes

Galeria da Boavista

Valerie Rath é uma produtora cultural e curadora austríaca com formação acadêmica em história da arte e gestão artística e cultural. Atualmente vive em Lisboa. Desde abril de 2024 trabalha como curadora interna da DUPLEX_AIR. A sua prática curatorial é motivada por uma profunda curiosidade sobre a influência das narrativas passadas nas nossas capacidades colectivas e individuais de imaginar mundos futuros — e como as intervenções artísticas podem expandir essa imaginação.

 

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro, revista pela editora.

 

 




João Motta Guedes: No feeling is final. Vistas gerais da exposição na Galeria da Boavista, Lisboa, 2024. Galerias Municipais de Lisboa. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galerias Municipais de Lisboa. 

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