Greenhouse: Pavilhão de Portugal / Representação Oficial Portuguesa na 60ª Exposição Internacional de Arte de Veneza — La Biennale di Venezia 2024
Ilhas, escolas e jardins de emancipação
Pavilhão Português, Bienal de Veneza de 2024
Entrar em Greenhouse é mergulhar num testamento vivo à capacidade de resistência e interligação. Este ambicioso projeto coletivo pensa a ecologia (a partir de "oikos", do grego antigo, que significa "lar") da casa, do lar — que é, como diz a teórica Gayatri Spivak, um sítio onde não precisamos de nos justificar perante estranhos. Trata-se de um espaço construído para o encontro; um espaço em que as biografias e relações pessoais das três autoras do Pavilhão Português configuram o ponto de partida para a criação de um refúgio. Em conjunto, a artista e curadora Mónica de Miranda, a historiadora e organizadora político-social Sónia Vaz Borges e a coreógrafa e investigadora Vânia Gala exploram eixos espiralados no espaço e tempo, centrando-se em histórias partilhadas. No ano em que Portugal celebra o 50.º aniversário da Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, responsável pelo fim da ditadura fascista que havia regido o país durante quatro décadas e que então procurava derrotar os movimentos de libertação das colónias, é de ressalvar o importante sinal de alento que a representação portuguesa na Bienal de Veneza transmite, constituindo-se por um coletivo oriundo da diáspora africana.
As três artistas curadoras não vêm sozinhas: pelo contrário, trazem com elas incontáveis vozes provenientes da mesma diáspora que foram convidadas para marcar presença na exposição e participar no respetivo programa — não como meros adereços, mas enquanto partes constituintes do projeto. As várias linhas do programa, como tal, integram mais de 45 colaboradores, acolhendo relações de longa data e alianças mais recentes entre investigadores nacionais e internacionais, performers, curadores, artistas e coletivos. No mesmo sentido, também a infinita inteligência das plantas foi convidada a intervir. "As plantas são a base da própria vida" (Shiva, 2019), como diz a ativista ambiental indiana Vandana Shiva, defensora da soberania alimentar e uma das principais influências do ponto de vista teórico para a forma como as artistas pensam a instalação. As plantas dominam o espaço — afinal, trata-se de uma estufa, um "jardim crioulo" (o conceito desenvolvido por Édouard Glissant para designar uma prática de distribuição partilhada avessa às plantations), um arquipélago de ilhas-jardins que atravessamos com os nossos corpos, tornando-se estes a água que as liga, enquanto caminhamos pelo elegante piso de madeira do segundo andar do Palazzo Franchetti, perto da Ponte dell'Accademia, no Grande Canal de Veneza. Embora a água, enquanto elemento, possa estar fisicamente ausente, é, no entanto, convocada, ou representada, pelo formato livre das ilhas-jardins, pela sensação que temos de estar fora daquilo que se considera o continente, ou o mainstream. Encontramo-nos no intervalo entre dois estados distintos: o sólido e o líquido, a terra e o mar. Existe enraizamento, mas também fluidez — é essa a condição da diáspora.
E também é essa a estrutura que sustenta as plantas, as ervas — selecionadas com base nas memórias pessoais das artistas-jardineiras —, numa referência à sua capacidade de tratar e curar diferentes maleitas do corpo e da mente. Trata-se de uma permacultura diversa que aglutina diferentes tempos, gerando o arquétipo de um jardim composto por variados elementos. O hall principal — uma sumptuosa biblioteca de madeira modernizada no século XIX ao estilo gótico veneziano — está balizado entre outras salas de menor dimensão. O contexto, à partida, sugere que se trata de um jardim botânico à moda colonial, mas as ilhas resistem desembaraçadamente a qualquer categorização, interrompendo o enquadramento ocidental que as circunda. Entre estas ilhas de formato orgânico, veem-se não apenas plataformas retangulares que, alinhadas com o chão de madeira e instaladas a alturas variáveis, servem como palcos para as várias performances que fazem parte do projeto, mas também espelhos e vidros, numa dispersão que implica x espectadorx enquanto participante responsável e emancipadx. O diálogo entre estes corpos escultóricos, os corpos dxs performers e os corpos dxs espectadorxs é o que define as relações que surgem no interior do Palazzo, integradas nas configurações dinâmicas que a modularidade das instalações permite.
Por todos os espaços se difunde uma certa densidade elegante, lembrando-nos que os jardins contêm em si espaços de sobrevivência e resistência. Os quilombos, comunidades compostas por fugitivos resistentes à escravização, são jardins revolucionários. Como diz Vandana Shiva: "O espaço ecológico, no qual a vida se renova e regenera, não é um espaço cartesiano bidimensional. É um espaço tetradimensional de «desha» e «kala», espaço e tempo, no qual a vida evolui com a inteligência, a vitalidade e a diversidade. Quanto mais densas forem as interações e relações no espaço ecológico da vida, mais conseguimos dilatar as nossas próprias liberdades e possibilidades." (Shiva, 2019) É esta densidade de interações que Greenhouse acolhe e que está no centro desta proposta — um projeto multidisciplinar que é um desdobramento a longo prazo das relações por que é composto, plantando sementes e regando jardins. Durante toda a Bienal, o Pavilhão é habitado por um intenso programa paralelo que inclui performances (arquivo vivo), conversas (assembleias), leituras e workshops (escolas), convocando os conceitos de rizoma, escuta coletiva, cosmologias ancestrais e a vivificação do arquivo. "O verdadeiro conhecimento provém da experiência, da interligação, [e] da participação." (Shiva, 2019)
A luta pela liberdade e pela emancipação atravessa Greenhouse por inteiro, principalmente tendo em conta que todo o projeto se baseia no pensamento do agrónomo, poeta e militante Amílcar Cabral, naquilo que é também uma celebração do centenário do seu nascimento. Celebrar a resistência do líder da luta pela independência de Guiné-Bissau e de Cabo Verde também é celebrar o espírito da Revolução dos Cravos. Ainda enquanto aluno do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, Cabral criou movimentos estudantis contra o regime português, exigindo a independência das antigas colónias africanas. Entre 1963 e 1973, ano em que foi assassinado, liderou a guerrilha militar guineense, com o objetivo de alcançar a independência da Guiné e de Cabo Verde, que já não pôde testemunhar em vida. Os conceitos de solo comum, bem como o formato das escolas na floresta, servem de inspiração para o Pavilhão. As florestas, espaços que ofereciam algum grau de proteção, acolhiam as escolas de resistência de Cabral. Por sua vez, a Escola da Revolução, um círculo modular instalado numa das extremidades da biblioteca, propõe repensar os nossos sistemas de educação: uma escola à sombra de uma árvore, um círculo sem hierarquias de poder, uma mandala que se desdobra conforme os corpos e as necessidades que a habitam — um lugar em que todxs aprendem com todxs, em que todxs ensinam x outrx, e em que toda a gente sonha em conjunto.
Numa das salas obscurecidas, Weaving Stories while Walking, filme de Mónica de Miranda e Sónia Vaz Borges com duração de 30 minutos, aparece projetado sobre uma estrutura de madeira que, simulando um billboard, parece emergir de um pequeno monte de terra — mais uma ilha no chão. O filme começa e acaba com quatro atores vestidos de preto a seguirem-se uns aos outros, caminhando convictamente sobre um palco. Entre esses dois momentos, os personagens são filmados individualmente: cada qual fala uma língua diferente (português, italiano, crioulo, inglês) e recita excertos de entrevistas-testemunhos sobre as décadas de 1960 e de 1970. Ouvimos relatos sobre a guerra colonial portuguesa; a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa; as escolas nas florestas; práticas medicinais tradicionais; sacrifícios de aldeões que acabaram mutilados na luta pela independência ou que apoiaram as guerrilhas, oferecendo mantimentos; e também o sonho de Amílcar Cabral: a criação de uma democracia cooperativa.
Na sala do canto oposto, imersa na luz do exterior, apresenta-se uma instalação sonora de seis canais dispostos em meia-lua. Esta peça, intitulada Cross Talk, transmite um programa radiofónico com curadoria de Léopold Lambert e Sónia Vaz Borges que integra nove episódios de podcasts originalmente criados para The Funambulist. Durante a semana de abertura, a instalação transmitiu repetidamente Transmission, uma peça sonora com duração de 40 minutos composta por sons sinistros típicos da radiocomunicação, helicópteros, vozes e cantos indistintos, vozes femininas fantasmagóricas e comunicações em português das vitórias alcançadas pelo exército de libertação.
Noutra das salas em que a terra também é elemento de destaque, encontra-se o filme Transplanting, de Mónica de Miranda, no qual quatro performers vestidos de preto dançam em e com diferentes paisagens naturais, por vezes sozinhos e noutras em conjunto. Filmado em vários jardins botânicos lisboetas, bem como nas suas imediações, o filme termina com as performers a alcançarem um edifício habitacional da cidade, ficando a observá-lo. Através da interação humana com estes jardins — construções coloniais da tropicalidade e do exotismo —, a vegetação torna-se um agente, lembrando-nos de que “a natureza é mais do que uma construção humana, ou um objeto de manipulação humana para obter benefícios a curto prazo; antes, é a força criativa do universo. Estar vivo é viver no ecoceno.” (Shiva, 2019) As personagens principais, maioritariamente do género feminino, veiculam uma noção de sororidade, convocando uma perspetiva ecofeminista que “expõe a necessidade de uma nova cosmologia e uma nova antropologia que reconheça que a vida na natureza (que inclui os seres humanos) é mantida através da cooperação, do cuidado recíproco e do amor.” (Mies & Shiva, 1993) Esta rede de apoio e cuidado recíproco presentifica-se não apenas neste filme, mas também em todo o projeto do Pavilhão.
Mónica de Miranda é cofundadora do Centro de Investigação Artística HANGAR, ponto de encontro de artistas, curadores e investigadores que celebra dez anos de existência em 2024. O programa do centro, com especial enfoque no Sul Global e em constelações pós-coloniais, tem sido um espaço independente de referência na cena artística de Lisboa. A equipa do HANGAR esteve envolvida na produção deste Pavilhão, assim como também esteve o ethos da construção de comunidades; a rede que foi construída ao longo dos anos contribuiu de forma evidente para um frutífero envolvimento coletivo. Fazem parte daquilo que Shiva advoga, especialmente quando escreve que, “em todo o mundo, as pessoas escrevem hoje uma nova história, reconhecendo a brutalidade das novas e velhas colonizações, explorando novas formas de juntar o local ao global, interligando as muitas histórias fundacionais das diversas culturas que existem, e juntando a nossa criatividade e inteligência à criatividade e inteligência de cada ser vivo […], empenhando-se na defesa das nossas diversas liberdades interligadas.” (Shiva, 2019) Materializando a noção de que ninguém é verdadeiramente livre até que todxs sejamos livres, a equipa do Pavilhão demonstrou uma solidariedade inequívoca para com a Art not Genocide Alliance (ANGA), que exigiu à Bienal de Veneza a exclusão do pavilhão do estado apartheid de Israel, tendo por base as atrocidades cometidas contra o povo palestiniano. Mais uma vez, a emancipação das pessoas oprimidas e colonizadas revela-se uma luta única e interconectada.
"Particularmente nas alturas difíceis, […] é o jardim que se revela a base de formação da criatividade e sabedoria que nos vão permitir recriar o mundo" (Cluitmans, 2021), afirma o académico Erik A. de Jong. Podemos, portanto, agradecer à equipa do Pavilhão por esta oportunidade de interagir com o jardim e pensar o fazer-jardim como uma forma de nos vincularmos ao lugar, à comunidade e aos antepassados. "O jardim abre espaço para fazer e experienciar. O jardim ritualiza a nossa existência e dá-lhe um sentido. A atenção e o cuidar enlaçam a natureza viva à nossa condição humana. […] Isto manifesta-se sobretudo nos lugares em que se vê maior privação: nos jardins comunitários de cidades americanas com alta densidade populacional, em jardins criados por sem-abrigo, por soldados de trincheira durante a guerra, ou por refugiados nos seus acampamentos." (de Jong in Cluitmans, 2021) O fazer-jardim não apenas desenvolve a nossa empatia como também se revela uma ferramenta de regeneração e aprendizagem sobre e com o solo, os ecossistemas e os seres não humanos.
Nesta Greenhouse, podemos encontrar trombeta-dos-anjos, ararutas, palmeiras-arecas, bananeiras, manjericão, samambaias, aloés, cacau, coco, café, dracena, espadas-de-São-Jorge, gengibre, hibisco, trapoerabas, jasmim, erva-cidreira, verbena-limão, capim-limão, tamareiras-anãs, figueiras-de-natal, costelas-de-Adão, plantas-da-paz, mamão, maracujá, lírios-da-paz, hortelã-pimenta, abacaxi, piripiri, árvores-da-borracha, arruda, sálvia, cana-de-açúcar, inhame, tabaco, moringas, curcuma, árvores-guarda-chuva, bromélias, avencas, figueira-chorona, bananeiras-selvagens, ou iúcas. "No refúgio que oferecem, há espaço não apenas para a vida mas também para o mundo." (Cluitmans, 2021) Nestes tempos difíceis que vivemos, penso no jardim da minha mãe, em como tem sido uma fonte de saúde e abundância para a nossa família, e também uma forma de nos mantermos ligadas às nossas raízes enquanto sujeitos diaspóricos. Enquanto crescia, não lhe prestei grande atenção. Ela fá-lo naturalmente, quase sem esforço algum — um exercício diário. Porém, agora, admiro profundamente aquele espaço de sabedoria e ligação, para continuar a recriar o mundo tal como os espíritos da emancipação o imaginaram.
Ana Salazar Herrera (1990) é curadora e escritora, fundadora do Museum for the Displaced (2019-presente) e curadora assistente da Diriyah Contemporary Art Biennale 2024, Arábia Saudita. Explora subjetividades nómadas, poli-linguísticas e transculturais, propondo questionamentos inventivos de mapeamentos geopolíticos hegemónicos. Foi curadora interim no Ludwig Forum Aachen (2022-23), Alemanha, e curadora assistente no NTU Centre for Contemporary Art Singapore (2016-20). Ana foi curadora-em-residência (2021-22) no Künstlerhaus Schloss Balmoral, Alemanha, participante no programa de mentoria Project Anywhere (2020-21), e fellow no Shanghai Curators Lab (2018). Tem um mestrado em Práticas Curatoriais da School of Visual Arts, Nova Iorque, e uma licenciatura em Piano da Escola Superior de Música de Lisboa. Publica em revistas de arte, catálogos de exposições e jornais académicos como Afterall e Stedelijk Studies.
Tradução do EN por Diogo Montenegro. Revista pela autora.
Mónica de Miranda, Sónia Vaz Borges, Vânia Gala, Greenhouse. Vistas da exposição no Pavilhão de Portugal, Bienal de Veneza 2024. Foto: Matteo Losurdo. Cortesia das artistas.
Mónica de Miranda, Sónia Vaz Borges, Vânia Gala, Greenhouse. Vistas da exposição no Pavilhão de Portugal, Bienal de Veneza 2024. Fotos: Anna Jarosz. Cortesia das artistas.
Última foto: © Matteo Losurdo.
Bibliografia:
Cluitmans, L. (2021). On the Necessity of Gardening: An ABC of Art, Botany and Cultivation. Amesterdão: Valiz.
Mies, M., & Shiva, V. (1993). Ecofeminism. Londres: Zed Books.
Shiva, V. (2019). Oneness vs. the 1%. Oxford: New Internationalist.