Futuros da Liberdade 2024
Tchim-Tchim: à Grande Festa
Futuros da Liberdade, Mala. Ajuda, Lisboa
18 – 21 Abril 2024
Antes
A antecipação de uma grande festa é um momento de alegria. O prazer da antecipação é proporcional ao ritmo do que se está a preparar — em diferentes impulsos, dentro do peito — e para quem está habituado a deixar a expetativa correr solta experiencia um período de incubação de emoções crescentes que vai tirando a temperatura ao desejo de chegar ao futuro. Como um segredo: cuida-se e estima-se.
Este ano, as semanas antes do 25 de Abril derreteram-se umas nas outras.
Difícil era não estar com um nó no estômago, como uma panela de pressão ao lume, em antecipação do que aí vinha; desengane-se quem tenta agora, desajeitadamente, desvalorizar o que se passou em Abril de 1974 e a seguir. Mostrou-se, neste mês de festa, o espetro do que significa a revolução dos cravos hoje — para quem não a viveu e para quem ainda há-de vir: inabalável celebração, uma enchente, brilho por todo o lado. Uma posição, também, contra o nevoeiro espesso criado pela sequência de eventos políticos agoirentos nas semanas antes do melhor feriado do ano. Não houve, ainda assim, nevoeiro que ofuscasse a iminência da festa.
Testemunhei, neste mês de Abril, como Lisboa se transformou e como se intensificou o sentimento coletivo de apreço pelo que mudou há 50 anos. Foi com muita energia que se prepararam as celebrações, desta vez com uma rede de apoio financeiro e institucional muito mais vasta e dispersa que em anos anteriores — como era devido. Serve este texto para destacar uma iniciativa quase inédita em Portugal e que não pode deixar de ser reportada. Primeiro, por ter sido inesquecível para quem lá esteve; e segundo, por reunir as características que têm as coisas que marcam as mudanças subtis de corrente, que reorientam preocupações e estabelecem condições para aquilo que de mais importante tem a cultura: a expressão, livre e absoluta, de ideias.
Futuros da Liberdade, o festival organizado pela Mala e Joana Krämer Horta, aconteceu espalhado pela (e em importante colaboração com a) Junta de Freguesia da Ajuda entre 18 e 21 de Abril. A Mala, espaço fundado, em 2021, por Henrique Loja e Sofia Montanha e gerido por eles desde então [1], prolongou-se à Oficina das Artes, ao Mercado, ao Multiusos e ao Jardim das Damas numa programação de quatro dias que espelhou os modos heterogéneos e horizontais que caracterizam o seu pensamento sobre a produção cultural.
Durante
quinta-feira: dia 18
Mala: 17h
Casas num beco
Mauro Cerqueira
A inauguração da exposição Casas num beco, de Mauro Cerqueira, abriu o festival na quinta-feira, dia 18 de Abril na Mala, Ajuda. Patente até 23 de Junho de 2024.
O espaço expositivo da Mala é uma reunião de circunstâncias felizes. É um retângulo com uma montra aberta para uma rua calma e inclinada. No passeio e na estrada em frente, cadeiras Monobloc e uma mesa de campismo, jarras de cravos e garrafas misturavam-se com o ajuntamento que se via desde o fundo da rua — entre carros, motas, e um sol da tarde atrás dos prédios.
Do lado de fora da montra, vêem-se reconhecíveis formatos retangulares alinhados pelas paredes, pendurados bem alto. Mas não são telas nem desenhos emoldurados — são cartazes de imobiliárias, VENDE-SE ou ARRENDA. Foram remodelados, e agora são superfícies (de base) para uma rigorosa prática de desfiguração, de coisas remexidas e confecionadas com algum amor e vingança. O Mauro, co-fundador e responsável (com André Sousa) pelo espaço Uma Certa Falta de Coerência[1] há 18 anos, conhece bem os becos do Porto e vivenciou esses processos; essas casas, essas pessoas e as crises de habitação, especulação e pressão imobiliária[2] de que as cidades inevitavelmente se ressentem.
Num testemunho à sua amizade com muitos dos moradores e ocupantes dos becos, algumas das marcas e aprimorações plásticas nas peças expostas vêm também pela mão destes. Lêem-se como um workshop de assemblage em cartaz indesejado (um junta-e-cola-aqui).
Espreitam uns restos de rostos por baixo das marcas gravadas e pintadas pelo Mauro e companhia; uma silhueta da agente imobiliária, uns algarismos, uns logotipos. As peças têm a mesma palpabilidade que a universal gaveta dedicada aos objetos perdidos das casas: encontros entre velas velhas, post-its, relógios sem pilha, canetas gastas, fotografias 10x15 e colas-baton sem tampa.
Dá um prazer especial ver os cartazes assim utilizados, pendurados ao alto na Mala como estão habitualmente nas janelas e varandas, ou como estavam antes do Mauro lhes pegar. A ansiedade pelos espaços interiores secretos e fachadas assinaladas;
Essa sinalética familiar que diz: era assim mas já não é. Agora será diferente.
Como Paula Ferreira escreve no texto da exposição, é “encontrado um equilíbrio muito frágil entre a expressão de uma raiva latente e de uma afetuosa nostalgia” no tratamento dos materiais, na coletividade inerente das expressões marcadas no suporte, dos objetos ali fixados; são pequenos presentes deixados pelos companheiros de bairro, como o Mauro me explicou. Tesourinhos de outras vidas, de outras personalidades ali representadas embora ausentes, como o Pirata[1] ou o Leonel.
A inegável adequação do primeiro evento do festival foi amplificada pela sincronicidade com o que se passou nessa semana; dias antes da celebração do 25 de Abril, a Câmara de Loures decidiu demolir as casas do Bairro do Zambujal, um bairro de autoconstrução. Sem aviso prévio, os moradores encontraram-se sem alternativa habitacional viável, como obriga a lei; viram-se as pessoas desalojadas e sem alternativas[2]. E dias depois das celebrações interrompia-se, através de uma intervenção policial, a ocupação de um edifício histórico em Lisboa, abandonado há 16 anos, e reavivado como Centro Cultural Santa Engrácia no dia 25 de Abril[3]. Na Ajuda, bairro operário por excelência, mostravam-se as obras do Mauro; e ali a dois passos o Bairro 2 de Maio, ocupado em 1974 por trabalhadores, ainda hoje se mantém. Ocupações e desocupações (forçadas), especulação e habitação. Uma cidade são muitas.
Mauro Cerqueira, Casas num Beco. Vistas gerais da exposição na Mala (Associação Supermala), Futuros da Liberdade 2024, Lisboa. Fotos: Beatriz Pereira. Cortesia do artista e Supermala.
sexta-feira: dia 19
Oficina das Artes: 15h
O Corpo se lembra
António Onio
Da habitação para o corpo que habita
É interessante perceber que tipo de expectativas temos para as instituições culturais; que sejam espaços abertos e acessíveis, que programem para o público e para o contexto, o local e o que faz falta. Sabe-se das dificuldades, nos circuitos de arte contemporânea, em conseguir implantar uma verdadeira acessibilidade — uma que não seja de fachada, ou superficial — que se prende com os formatos, por um lado, de apresentação; e das práticas artísticas em si.
As inaugurações são divertidas para os artistas e curadores, para os amigos dos amigos e para os convidados, mas desconfortáveis para todos os outros. O desconforto palpável do público nos ambientes adjacentes à apresentação pública de arte é sintomática dessa falta de abertura. Mas felizmente há lugares e meios — frequentemente não-institucionais — onde se cultiva o terreno para momentos de ação, de confluência de gente, em exercícios de liberdade e de auto-perceção onde (precisamente) o desconforto do corpo toma o lugar principal da discussão e ensaia-se, em imersão, o seu significado.
Sentir o corpo bloqueado, ou o seu movimento inadequado, é uma condição pessoal e do mais íntimo que há. Mas na sua privacidade, é uma sensação generalizada; todos sabem o que é esse emperro, que é em si também um demarcar da experiência no espaço, em público, com os outros. Estar emperrado[7] é, então, uma delimitação auto-imposta, aprendida sem querer e alimentada pela torção do tempo. Torna-se central inscrever o movimento do corpo no festival; explorar a possibilidade de desenvoltura, praticar o direito a tomar espaço.
A tarde de sexta-feira fez-se na Oficina das Artes da Ajuda, um espaço da Junta de Freguesia remodelado e reaberto como polo cultural em 2021. O workshop O Corpo se lembra, de António Onio, era aberto a todos e direcionado em especial aos não-especialistas da dança. A intenção: explorar o conceito de liberdade aliado ao movimento através de técnicas somáticas; e dançar a partir da memória, mas da memória antiga: da altura em que não se dizia ainda, envergonhadamente “não sei dançar”. Ou, como me disse o António, desde “as memórias de infância até ao pepino do mar que existiu há biliões de anos atrás”.
Conversa: Mulheres e Abril
Oficina das Artes: 19h
Carla Filipe e Teresa Coutinho (contribuição de Maria Teresa Horta)
Ao fim da tarde reunimo-nos na sala da Oficina das Artes, que pelas 19h contava já poucos lugares vagos. Ao centro e rodeadas de cravos sentavam-se Teresa Coutinho, atriz e dramaturga; Joana Horta, produtora do festival e mediadora; e Carla Filipe, artista.
No espírito de desenvoltura explorado no workshop de António horas antes, difundiu-se pelas vozes do público — ainda antes de começar a conversa — um “à vontade” de quem está entre vizinhos, e a conversa fluída é como o riso: contagiante. Mal a Joana começou as apresentações, o público começou a pedir[8], como se ouviu na fila de trás, "mais pulmão", como se de uma conversa entre janelas opostas se tratasse.
Introduziram-se os extraordinários percursos das convidadas e fez-se homenagem a Maria Teresa Horta (que não pôde estar presente) pela voz de Teresa Coutinho que, enérgica e eloquente, falou daquela maneira que só os atores de palco sabem — a voz que arrebata as atenções — para apresentar o livro pousado na mesa à sua frente, Poesia Reunida de Maria Teresa Horta. Foi folheando o livro e declamou, quase de improviso, uma seleção de poemas.
Mulheres de Abril
somos
mãos unidas
certeza já acesa
em todas
nós
Juntas formamos
fileiras
decididas
ninguém calará
a nossa
voz
Mulheres de Abril
somos
mãos unidas
na construção
operária
do país
Nos ventres férteis
a vontade
erguida
de um Portugal
que o povo
quis[9]
A artista Carla Filipe preparou um momento raro — uma apresentação sobre as intermináveis linhas de investigação que suportam a sua prática artística e que raramente são mostradas ou, antes, diretamente explicadas. A pontaria do convite da Mala a Carla Filipe para esta conversa com Teresa Coutinho fez-se sentir quando a grande projeção do primeiro slide da apresentação iluminou a sala. Lia-se:
A Mulher no Mundo
2 volumes, 1952
— Maria Lamas
Quando uma artista se dedica ao estudo intensivo de histórias, propõe-se a percorrer maratonas. Séculos atrás, séculos à frente; várias localizações geográficas; relações orgânicas entre edições desaparecidas daquelas de capa poeirenta, anotadas por gente desaparecida, e revistas refundidas. Pormenores retorcidos e linguagem que hoje nos dá um arrepio involuntário. E no caso da obra da Carla Filipe, são visíveis as horas de trabalho dedicadas a narrativas particulares e à acumulação e tratamento de documentos, porque o trabalho assim o mostra; pelo caminho (do estúdio, da vida) ficam invisíveis as tais intermináveis linhas de investigação, emaranhadas e descodificadas, que moldaram as bases do seu trabalho plástico.
A Carla decidiu então apresentar aquilo que a tem ocupado, que é a sua análise da obra literária e visual de Maria Lamas. Em As Mulheres do Meu País, Maria Lamas levou a cabo um estudo inédito e compreensivo das condições de vida das mulheres em Portugal nas décadas de 40 e 50 do século passado[10]; propôs-se a lutar pela emancipação da mulher por entre perseguições, aprisionamentos e exílios. A apresentação foi sendo pontuada por excertos da publicação As Mulheres Portuguesas e o 25 de Abril, com texto de Beatrice D’Arthuys, publicado em 1977; perspetivas críticas sobre a miséria em Portugal e a condição ainda mais miserável da mulher (“a mulher não tem classe, é a última das classes”[11]).
Vimos e falámos de muitas das fotografias[12] e anotações de Maria Lamas nos seus volumes, feitas durante incessantes viagens aos cantos do país durante três anos; discutiram-se as condições de duro trabalho das mulheres, evidenciadas nos registos de Lamas, em contraste com a fantasia do feminino do Estado Novo; mas falou-se principalmente da necessidade de inscrever e reconhecer devidamente a importância de Maria Lamas e da sua obra no estudo antropológico e na história do feminismo em Portugal. Houve ainda um acelerado relato de algumas notas de A Mulher no Mundo[13] e de publicações da época (como a Revista Eva[14]), maioritariamente expressões e palavras recolhidas pela Carla (como as instruções, na referida Revista, para a organização simultânea de um dia na vida de uma patroa e respetiva criada[15]). O fascínio da Carla pela Maria Lamas estendeu-se a todos os presentes, e o tema da partilha foi uma coincidência feliz: o público era composto maioritariamente por moradores da Ajuda, tendo muitos dos presentes sido testemunhas das mudanças sociais desde o 25 de Abril e algumas ainda do que se viveu em Portugal na época em que Maria Lamas desenvolvia esta investigação. Muitas foram as intervenções do público atestando às desigualdades sofridas pelas mulheres no passado, incluindo paralelos ao presente e desejo de construção para o futuro.
Quando se apagou a apresentação e se esmoreceram as partilhas do público, a Joana perguntou à Teresa:
Quais são os desafios específicos que as mulheres artistas enfrentam na expressão das suas visões e experiências no contexto pós 25 de Abril?
A pergunta acertadíssima da Joana dava para mais 10 horas de conversa. E Teresa responde tacitamente sobre todas as farpas que se têm sentido crescer, teimosas, e que são preocupações conjuntas das mulheres. Esse sentido de união e de empatia é o similar ao sentimento que se tem num concerto onde um grupo de pessoas se funde numa massa; vislumbrando, por momentos, uma verdadeira coletividade. Quando a Teresa respondeu, houve esse brilho de quem transforma indivíduos em coletivos. A sugestão de retrocesso de direitos (e é da mulher que aqui se fala) tem estado omnipresente desde as recentes eleições legislativas, e serviu a resposta da Teresa para recordar que essas lutas não são de outros tempos, quando foram conquistados direitos a pulso por muitas e muitos; são uma longa prova de resistência que nos compete a todos, e que competirá sempre a quem, com a sua arte e trabalho, tem vontade de comunicar. Esse trabalho, dos artistas, será o de exercitar essa liberdade em que vivemos há 50 anos — que não se tome por garantida —, todos os dias e em cada gesto e palavra.
A ameaça, trocista e incoerente, é triste mas real; a resposta é assegurada, assumida e compreendida.
Acenaram-se as cabeças em uníssono, aplaudiram-se as intervenções e distribuíram-se cravos.
Sábado: dia 20
Jardim das Damas: 16h
Sessão de poesia revolucoionária selecionada
Gisela Casimiro e André Tecedeiro
Cachupa por D. Amélia Mascarenhas
Há momentos que impressionam sempre como se fossem experienciados pela primeira vez. Exemplo: o efeito que a poesia tem nas pessoas. Outro exemplo: chegando ao topo da Calçada da Ajuda, vindo de Monsanto, surge uma vista panorâmica dividida ao meio — na rua que desce em direção ao Tejo levanta-se, do lado esquerdo, uma inesperada e surreal construção, a do Museu do Tesouro Real, tão branco e geométrico que parece um modelo 3D. É difícil acreditar que o enorme edifício exista na realidade. É, felizmente, menos difícil acreditar nos efeitos duradouros da poesia.
É entendida, entre portugueses, a herança do uso cuidadoso da linguagem. Não é que a sua utilização seja, geralmente e à partida, cerimoniosa; pelo contrário, está sujeito ao descalabro. É mais a lembrança (memória) de dar o não-dito por dito: a subtileza da omissão e da figura de estilo, da imagem pintada por palavras que nunca chamam as coisas pelos nomes. A poesia, que foi a prática da queixa e da partilha e da força: a dor-de-cabeça do censor.
O Jardim das Damas, adjacente lateral ao Palácio da Ajuda/Museu do Tesouro Real, divide-se por dois pisos. No parapeito superior serviram-se cachupa e bebidas; no andar de baixo prepararam-se bancos corridos em frente a duas cadeiras altas, para se ouvir a leitura de Gisela Casimiro — escritora, artista, poeta e ativista — e o poeta André Tecedeiro. A seleção dos poemas veio na maioria dos livros empilhados ao centro. Depois de dois dias de sol e calor a meteorologia previa para esse sábado uma tempestade de trovoada à tarde, mas no Jardim das Damas sentia-se um vento morno. Começou-se a leitura à vez: pela voz de Gisela e André ouviram-se Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Miguel Torga, Ary dos Santos, Jorge de Sena, Sérgio Godinho, Manuel Alegre, Jorge Luís Borges, Judite Canha Fernandes, Inês Francisco Jacob, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, poemas dos próprios poetas convidados e Mahmoud Darwish, poeta Palestiniano. Entre Bravos e aplausos ao fim de cada poema, respirava-se fundo e dedicavam-se as atenções inteiramente renovadas à próxima contribuição. Para o contexto, aqui destacam-se:
Judite Canha Fernandes, Sem título (Poemas da Amadora)
despejar pessoas devia dar prisão
por corrupção de tudo
até do coração.
Em O mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas, Urutau, 2021.
Gisela Casimiro, Sem título
1.
Abril — o cravo vem
chamar a liberdade
Para brincar
2.
Na mesa de voto
escrevi o poema
a revolução
3.
Uns pulmões que
faísquem na voz –
a ignição da revolução
4.
Meço a minha liberdade
por quantas pessoas
ainda falta libertar
5.
Do sangue feito seiva
brota a flor da marcha
concreta da liberdade[16]
E terminada a seleção de Gisela e André, a sessão abriu aos pedidos do público. Ouviu-se uma voz assertiva: O coito do Morgado![17], e a seguir, outra voz: José Fanha, Eu sou Português Aqui![18].
Sessão de escuta
Jardim das Damas: 18h
Polido
No final da sessão de poesia fez-se uma pausa enquanto se davam os toques finais para o próximo evento. O sol ia sendo tapado por nuvens pesadíssimas e o vento soprava em diferentes direções. Pelas 18h, Polido — músico e artista — ajoelhou-se na almofada em frente ao seu set-up, ligado a grandes colunas, e introduziu a sessão que tinha preparado. Polido trabalha sobre o significado, intenção e utilização da música tradicional/popular portuguesa como parte fulcral da construção de identidade partilhada, desde a sua fundação pela Política do Espírito de António Ferro (e o chamado processo de folclorização) à urgência, na década de 1970, já em liberdade, de recuperar música perdida, através de documentação e difusão — expressões musicais até aí consideradas dissidentes (e parte inabalável da luta dos trabalhadores) — música-política, música-ação, música-social.
Desenrolou-se assim uma segunda parte de Futuros da Liberdade; da palavra e da poesia chegou-se ao som e à música, legado icónico da revolução que nunca é demais recordar.
A sessão de escuta oferecida por Polido foi intercalada por explicações sobre o que se estava a ouvir. Em dois gira-discos foi tocando gravações de Michel Giacometti[19], interpretadas um pouco por todo o país antes e depois do 25 de Abril, e colaborações com Lopes-Graça[20]; recolhas variadas de práticas musicais de tradição rural, gravadas em democracia, como a de José Alberto Sardinha; canções aludindo à reforma agrária (menção honrosa: Grupo de Ação Cultural — Cantiga sem Maneiras, compositor José Mário Branco, 1976); uma composição de Jorge Peixinho em homenagem (Elegia) a Amílcar Cabral; José Afonso que não poderia faltar; Luís Cília (Contra a Ideia da Violência, a Violência da Ideia, 1974); e outras composições contemporâneas que remisturaram as canções e danças populares, como Três Velhos Fandangos Portugueses de Lopes-Graça interpretados pela pianista Olga Prats (1973).
Do céu nublado e húmido caíram minúsculas gotículas de chuva que pareceram cronometradas com o que escutávamos. Numa espécie de coreografia harmoniosa, trouxe-se uma tenda azul para manter os discos secos.
O formato de sessão de escuta é calmo e demorado. As coisas são dadas a ouvir, brevemente apresentadas, e seguem-se uns minutos de contemplação incerta. Surgem perguntas do fundo da consciência: estaremos todos a ouvir a mesma coisa? As gravações foram sendo delicadamente iniciadas e retiradas, em sequência contínua; mas não como se contassem uma história linear. É antes um ambiente que é construído de raiz, com recurso apenas e principalmente ao som, à ocasional palavra de Polido, e à referência visual das capas dos discos que é pontual. E é impressionante o volume enorme que esse som ocupa, é monumental, mesmo ao ar livre e com o trovão longínquo da tempestade que acontecia do outro lado da cidade. Foi tão simples e tão eficaz que a memória insiste em relembrá-lo como uma peça de teatro em muitos atos: salta-se do Alentejo para a Beira, Lisboa, Cabo-Verde, repressão, revolução, reforma.
A última gravação foi afeta às ações que são validadas no coletivo: Os Homens que Vão Para a Guerra (Douro Litoral), uma obra coral acapella de Lopes-Graça.
Os homens que vão prá guerra, vão morrer.
Os homens que vão prá guerra, vão pra nunca mais voltar.
Diz adeus a pai e mãe, que vos não torno a ver.
Diz adeus a pai e mãe, que vos não torno a abraçar.
A gravação ao vivo do Coro da Academia de Amadores de Música foi feita no Coliseu dos Recreios a 25 de Maio de 1974, organizado pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Segue-se, na gravação, um furor absoluto da audiência e ouve-se em coro:
FIM DA GUERRA
FIM DA GUERRA
FIM DA GUERRA.
noite de sábado: dia 20
Pavilhão Multiusos da Ajuda
Concerto Lena D’Água e Benjamim: 21h
Dj set Nídia: 23h
Na noite de sábado o Pavilhão Multiusos da Ajuda transformou-se no centro de Lisboa. A noite traz coisas inesperadas — exceto essa noite, que a Mala preparou e promoveu com uma habilidade fora do vulgar.
A Lena d’Água, ícone absoluto da música portuguesa, lançou em 2019 o álbum Desalmadamente — trinta anos depois do seu último lançamento de originais a solo, Tu Aqui. O concerto com Benjamim, às 21h, era seguido de um set de Nídia, produtora e provavelmente melhor Dj do país. A Nídia faz parte da editora discográfica Príncipe Discos, um coletivo já mítico de produtores afrodescendentes, responsável pelas melhores noites de Lisboa[21]. Lançou o segundo álbum, Não Fales Nela que a Mentes, em Maio de 2020 (muitos se identificarão com o estrondo que foi esse lançamento, e serão ainda mais os que terão algumas dessas músicas no topo das suas playlists, pelo menos, até 2030). 95 MINDJERES, novo álbum de 2023, faz referência às 95 mulheres que se juntaram ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde[22] na década de ’60, treinadas pela militante e heroína da libertação guineense Titina Silá e lideradas por Teodora Gomes, para lutarem pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Titina Silá foi assassinada por militares portugueses numa emboscada quando estava a caminho do funeral de Amílcar Cabral, líder do partido e da sua causa, em Conacri, a 30 de janeiro de 1973. No aniversário da morte de Titina Silá celebra-se anualmente o Dia Nacional da Mulher Guineense em homenagem à sua luta pela igualdade de direitos e a independência do seu país. Foi para a independência dos países colonizados que se fez o 25 de Abril, e o álbum da Nídia relembra essas mulheres que deram a vida contra a repressão com aquilo que ela faz melhor — bangers.
A programação da noite era tão promissora que inesperado seria que fosse menos que extraordinário.
No campo do Multiusos estava um pequeno palco e o público distribuía-se sentado pelas bancadas e de pé em frente ao palco, expectante. Em cada baliza nas extremidades do campo, um bar. Estava escuro, e o palco iluminado por focos de luz quente. E então subiram ao palco o Benjamim e a incomparável Lena d’Água. Começou por cantar, de mansinho:
Faltam dois minutos para entrar…
A cortina vai levantar…[23]
As horas seguintes foram um misto de emoção e incredulidade reservado apenas a quem esteve presente. A Lena d’Água, melhor que nunca, é um símbolo vivo do que foi Portugal na década de 1980 e não é preciso ser nostálgico para se sentir essa potência[24]. A Nídia é, mesmo, a melhor Dj de Portugal: focada, competente, imparável.
domingo: dia 21
Mercado da Ajuda
Grupo Coral Alentejano da Ajuda: 15h30
Performance de Lara Dâmaso: 16h30
E já era o último dia, e último dia do festival significava também a última localização da Ajuda a ser transformada em palco de convívio e festividade por caminhos de arte contemporânea.
A tarde de domingo começou com o Grupo Coral Alentejano da Ajuda, formado em 2017 por moradores da Ajuda com fortes ligações à região do Alentejo. Sentiam-se resquícios, bons resquícios, da noite anterior que estava ainda fresca na memória e a ideia de ir ouvir Cante Alentejano no Mercado da Ajuda parecia familiar, como um sonho que se parece estar a ter pela segunda vez (não era um sonho, e nunca estive em situação semelhante). Não tinham passado ainda 24 horas da sessão de poesia revolucionária e da sessão de escuta no Jardim das Damas e portanto já se pressentia o que se ia ouvir das vozes do Grupo Coral, apesar de ser algo completamente diferente de tudo o que se tinha andado a passar naqueles dias; afinal, uma coisa é declamação de palavras de resistência, ou a construção de ambientes através de gravações preciosíssimas das expressões de um país em revolução; e outra é ver um grupo coral de Cante Alentejano ao vivo, num mercado, a um Domingo de sol, depois de uma noite no Multiusos.
Juntou-se o grupo a meio das bancas corridas do mercado, as mulheres de avental, de lenço azul na cabeça e chapéu por cima. Seguravam as mãos à frente do corpo naquela posição que dá a segurança da estabilidade e de um orgulho despretensioso, de se estar pronto a cumprir uma tarefa. E fez-se ouvir aquela persistência que tem o som do Cante Alentejano, património imaterial da humanidade, cantado daquela maneira tão material que se associa imediatamente ao duro trabalho da lavoura e, consequentemente, à luta dos trabalhadores no Alentejo e as suas vitórias. Ó Baleizão Baleizão, Moda do Limoeiro, e para acabar, Grândola Vila Morena com coro da audiência, e distribuíram-se cravos como já era tradição.
Sem interrupção, começou a performance de Lara Dâmaso, artista suíça lusodescendente[25] que subiu para as longas bancadas em frente ao espaço onde o grupo coral tinha cantado e de onde agora dispersava para se tornar audiência. A Lara moveu-se lenta e tensamente, entre respirações, no que pareceu ser o total controlo de cada pequeno músculo. Como diz no programa do festival, a artista explora o “potencial catártico da expressão vocal”, e não há melhor maneira de o descrever; a Lara dança, agacha-se, expande-se e depois produz, com a energia de um corpo inteiro, o som que esse corpo lhe permite.
É muito poderoso o momento de choque frontal com o que não estamos habituados a ver, que foi (e será sempre que acontecer) uma experiência para quem viu a Lara a performar pela primeira vez. Esse choque reverberou-se pelo mercado, e transformou-se paulatinamente num transe coletivo, hipnótico e estranho e magnético, já que foi quase impossível tirar os olhos da performance.
Enquanto observava a Lara a mover-se foquei os seus pés — de meias brancas e socas — e o som da madeira das solas em cima da pedra fria das bancadas e ocorreu-me uma memória física e gutural, a de entrar no mar gelado, quando parece que o coração sobe à garganta.
Futuros da Liberdade 2024. Vistas gerais dos vários momentos e performances na Mala (Associação Supermala), Oficina das Artes da Ajuda, Jardim das Damas, Pavilhão Multiusos da Ajuda e Mercado da Ajuda, Lisboa, 2024. Fotos: Beatriz Pereira. Cortesia dxs artistas e Supermala.
Depois
No fim da performance e fim do festival sentiu-se uma grande alegria e um inesperado alívio.
A Mala propôs a organização de um festival comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, depois de organizar uma primeira edição de celebração do 25 de Abril em 2023.
A ideia de um festival é inesperada e corajosa. Por muito abrangente que se pretenda a circulação e apresentação de práticas artísticas contemporâneas — seja na sua produção, política de acessibilidade ou documentação, — há formatos já delineados ou que já se conhecem bem — e é importante relembrar que a Mala (que começou como Supermala, projeto de exposição itinerante[26]) é uma galeria, onde o Henrique e a Sofia desenvolvem uma programação e curadoria de arte contemporânea. Há uma longa distância que separa a conceção de exposições de arte contemporânea, como a Mala tem feito regularmente, da organização de um festival de 4 dias; é outra energia, outra dedicação e outra prática. E o festival que organizaram foi muito além da curadoria de exposições. Daí o alívio — era a expectativa criada pela programação. E no final: prometia muito, mas entregou imenso.
Tchim-Tchim à Sofia, ao Henrique e Joana e a todos os artistas envolvidos, à Junta de Freguesia e a todos os apoios concedidos. Que se façam muitos mais destes e que se sinta sempre vontade para festejar assim o melhor dia do ano.
Mariana Tilly, artista. Vive e
Este texto foi escrito no âmbito de um protocolo de apoio da Swiss National Science Foundation.
Notas:
[1] A partir do projeto (artístico) coletivo de curadoria Supermala, estabelecido em 2020.
[2] Espaço onde, numa primeira visita em 2012, estava uma exposição de Tiago Afonso com vídeos da implosão dos prédios do Bairro do Aleixo (ou torres, como eram chamados) no Porto. Foi uma das primeiras exposições não-institucionais que vi.
[3] Centro Comercial Stop, tornado centro cultural por músicos e artistas, é um exemplo mediático da cidade do Porto que vale a pena conhecer e cuja situação é prova da desconexão entre administrações públicas e o que são os espaços organizados, por necessidade, pelos artistas. Assunto agora em águas de bacalhau, depois de tentativas de despejo e sorrateiros planos para os terrenos adjacentes ao edifício.
[4] El Pirata, querido amigo-artista de Uma Certa Falta de Coerência, já desaparecido.
[5] A arbitrariedade com que a autarquia avançou com as demolições sem providenciar alternativas aos moradores, na semana das comemorações do 25 de Abril, revela total sentido de impunidade do governo local. O projeto Vida Justa (vidajusta.pt) esteve com os moradores a recolher testemunhos. Mais informação
[6] https://stopdespejos.wordpress.com/2024/05/03/centro-social-e-cultural-de-santa-engracia-despejo-ilegal-de-uma-realidade-amada-pelos-vizinhos/
[7] Um sinónimo de emperrado é empenado, cujo primeiro significado é:
em.pe.na.do
adjetivo
1. torcido pela ação do tempo
[8] Numa espécie de surto espontâneo de surdez coletiva, enfim, são as acústicas.
[9] De Maria Teresa Horta, em Poesia Reunida, Dom Quixote, 2009.
[10] As Mulheres do Meu País, publicado em fascículos entre 1948 e 1950, reeditado em 2024 pelo Público.
[11] Citação da página 31, As Mulheres Portuguesas e o 25 de Abril, com texto de Beatrice D’Arthuys. Fotografias de Alain Mingam e Sylvain Julienne. Afrontamento, Porto, 1976.
[12] Patentes na Gulbenkian na exposição As Mulheres de Maria Lamas, até dia 28 de maio de 2024.
[13] Obra enciclopédica de Maria Lamas, publicada em 1952. «A MULHER NO MUNDO é a História da Mulher e não de algumas mulheres. Por isso, pensando em todas, nunca perdi de vista essas condições gerais nem a mulher obscura e heróica que tem sido, afinal, a grande sacrificada, no lento, complexo e penoso avanço humano, através de milénios e milénios». citação de Maria Lamas, partilhada por Carla Filipe na apresentação.
[14] Revista Eva, Jornal da Mulher e do Lar, aqui mostrados excertos entre 1939-1945.
[15] Nostálgicos estão alguns por essa altura e em criar correspondentes estatutos legais, como acabava de se saber poucos dias antes, tema que não faltou referir. Mais informação: https://www.publico.pt/2024/04/08/politica/noticia/movimento-civico-promove-livro-semente-adversarios-familia-2086305
[16] Publicado no jornal Público, 8 de Abril de 2024.
[17] De Natália Correia. “1982 e a Assembleia da República debatia a despenalização do aborto. O então deputado do CDS, João Morrgado, argumentou: «O ato sexual é para ter filhos». Natália Correia (na altura deputada eleita pelo PPD) subiu à tribuna para responder com um poema muito original. As gargalhadas obrigaram à interrupção dos trabalhos.” Retirado de
[19] Michel Giacometti, nascido na Córsega em 1929, foi um importante coletor de música portuguesa em contexto rural. Entre 1959 e 1982, criou registos sonoros (com um gravador de fitas) por todo o país num extensivo levantamento de práticas musicais; esteve também envolvido na difusão dessas práticas em programas de televisão, construção de arquivos e fundação de museus.
[20] Como descrito na Enciclopédia de Música em Portugal no Século XX, “É a Lopes-Graça que se deve, em grande parte, a visão da música popular como um meio poderoso para estimular a acção política e a transformação da sociedade. (…) Para os músicos associados à «música popular portuguesa», alguns deles colectores, os trabalhos de recolha e de edição fonográfica de Lopes-Graça e Giacometti (...) constituíram um dos principais suportes para processos de criatividade musical, reforçando a «música popular» enquanto meio de «militância cultural»”. “Um dos resultados da colaboração com Giacometti foi a edição, entre 1960 e 1971, da Antologia da Música Regional Portuguesa, cinco álbuns de registos sonoros”, 2010. Volume 2, pp. 426-427.
[22] PAIGC, partido fundado por Amílcar Cabral em 1961 com intenção de conseguir a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde.
[23] Minutos, do álbum Desalmadamente, 2019.
[24] Ainda que, entre músicas de Desalmadamente e uma cover de Estou Além (de António Variações) tenha havido Demagogia e, após palmas e assobios incessantes no final do concerto, Sempre que o amor me quiser.
[25] A Mala tinha já apresentado uma performance de Lara Dâmaso nos 15 anos do Mace (Aqui Somos Rede, 2022), na Sociedade de Instrução e Recreio em Elvas num dos finais de tarde mais quentes que tenho memória. A Lara apresentou-se, dessa vez, no enorme terraço do edifício em frente à paisagem totalmente ampla de Elvas.
[26] Dentro de malas.