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Ana Cristina Cachola: uma entrevista

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Carolina Quintela

 

Ana Cristina Cachola (1983, Elvas) foi professora, é curadora independente, investigadora e autora de diversas publicações sobre arte contemporânea. É doutorada em Estudos de Cultura pela Universidade Católica Portuguesa. Entre 2017 e 2020 desenvolveu a investigação pós-doc intitulada "A Guerra como Modo de Ver: visualidade bélica na arte contemporânea", financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Atualmente integra a equipa do projeto europeu 4Cs e é responsável pelo projeto curatorial Quéréla, em Lisboa. Depois do impactante projeto para a comemoração dos 15 anos do MACE (Museu de Arte Contemporânea de Elvas) — Aqui Somos Rede — que decorreu no ano de 2022, traz-nos este ano a primeira edição da FARRA: Festa da Arte em Rede na Região do Alentejo.

Em Lisboa, nos primeiros dias de agosto, conversámos sobre o seu percurso, os desafios que a arte enfrenta em Portugal e o que pode e deve ainda ser feito. Conversámos também sobre a FARRA e a importância de uma festa.

 

Carolina Quintela (CQ): Com um extenso e significativo percurso enquanto teórica e curadora independente, quais são as tuas principais linhas de investigação?

 

Ana Cristina Cachola (ACC): As minhas principais linhas de investigação são assim umas linhas mal comportadas porque têm andado um bocadinho para cima e para baixo, não são linhas retas. Comecei por estudar comunicação, na variante de jornalismo, e confesso que fiz uns estágios que acabaram por não me interessar assim tanto e, por essa razão, passados dois anos, entrei na universidade para estudar gestão cultural. Comunicação, curiosamente, porque aquilo que pretendia era trabalhar num teatro (fiz teatro amador entre os 14 e 23 anos). No entanto, acabava por fazer todos os trabalhos sobre arte contemporânea e, nesse sentido, acabei por tirar o mestrado na área e tive um convite para ir para o centro de investigação para investigar arte contemporânea, estudos de cultura visual e estudos artísticos. Foi no cruzamento destas áreas, e depois no decorrer daquilo que foi o meu doutoramento, que comecei a abordar os estudos pós-coloniais e, em paralelo, a desenvolver investigação em estudos de género, ou estudos sobre as mulheres, se quisermos chamar assim. Claro que a curadoria entra como disciplina crítica, uma prática curatorial que tem uma origem crítica e, nos últimos tempos — sendo que dei aulas durante onze anos — a minha investigação continua centrada nos estudos de género e nos estudos de curadoria e na prática da curadoria.

 

CQ: Ao longo dos anos, foste responsável por diversos projetos curatoriais e de investigação como o Anexo ou o O Segundo Nexo. Mais recentemente, fundaste o projeto curatorial Quéréla, que conta aliás com uma exposição na FARRA. Podes falar um pouco sobre a origem deste projeto?

 

ACC: O Anexo e O Segundo Nexo foram projetos que me deram imenso gozo fazer e que acho muito interessantes. O Segundo Nexo, uma espécie de pré Quéréla que fiz com a Marta Espiridião, era uma homenagem à Simone de Beauvoir e O Segundo Sexo, tendo já uma tendência feminista, uma vez que só convidámos mulheres a participar. Depois a Quéréla, que também estava nesse espaço, contíguo ao Armário, é realmente um espaço onde se faz o que ela quer![1] É um espaço de feminismo interseccional, onde não queremos só mulheres brancas, cis e hétero a participar. Em Lisboa, o projeto não tem tido muitas apresentações, porque a sala contígua ao Armário ficou indisponível. No entanto, foi agora apresentado o que creio ser um grande projeto da Sofia Caetano, na FARRA, para o qual aconselho a todos uma visita. Atualmente estou a pensar organizá-lo de outra maneira, talvez de uma forma parasitária e ir variando os espaços e usá-los para poder fazer isso mesmo, portanto haverá novidades, senão em breve, no próximo ano.

 

CQ: Nesse sentido, e tendo em conta que estes projetos foram sempre apresentados em espaços alternativos e não institucionais, gostaria de saber a tua opinião sobre a importância destes, fora do circuito museológico convencional, no que diz respeito à recepção da arte contemporânea, bem como ao incentivo de novas formas de apresentação e exibição.

 

ACC: Existe um livro, que não me lembro do nome do autor ou se era uma coletânea, chamado O museu como musa[2]. Portanto, quando começaram a aparecer os museus de arte, os artistas começam também a construir peças para esses novos espaços, a musa inspiradora eram os museus: enormes, com grandes pés de direitos, com as paredes brancas. Acho que os museus ainda hoje acabam por domesticar um bocadinho as peças. Não que eu não goste de ver peças nos museus e que não sejam uma oportunidade que determinados artistas têm de trabalhar numa escala que ainda não tiveram antes, isto não é uma crítica, estamos a falar de uma possibilidade. No entanto, acho que certos artistas, antes de chegarem a um circuito museológico, não têm muitas oportunidades, principalmente porque ainda vemos uma grande discriminação de artistas mulheres — basta ver as listas de artistas das exposições —, de artistas trans, de artistas racializadas e, portanto, quero que este espaço alternativo seja um espaço onde isso possa acontecer livremente e que os artistas possam trabalhar sem que tentem também domesticar certas práticas só porque os museus têm o eurocentrismo muito vincado no seu modo de ver. Quero que seja uma coisa que nos liberte desse eurocentrismo no olhar da arte. Pode ser uma coisa mais espontânea ou pode ser uma coisa muito preparada, o que interessa é que pode haver ali uma desconstrução daquilo que é o dogma da arte e os princípios que nós nos habituámos a conhecer e que se tornaram canónicos.

 

CQ: Há pouco falavas que o teu percurso se inicia através da tua experiência no teatro, mas que ao estar em contato próximo com arte contemporânea o foco de interesse foi-se alterando. Imagino também pelo facto de o teu pai ser colecionador, com uma coleção que tem origem no início dos anos 1990. Essa realidade teve impacto na tua escolha de ação profissional? Foste assumindo naturalmente um papel ativo na continuidade da constituição da Coleção A. Cachola?

 

ACC: Influenciou-me claramente naquilo que é o meu trabalho. Teve uma influência fortíssima, tão forte que quando fui fazer o mestrado, e eu fazia teatro há muito tempo, fui fazer o mestrado crente de que o que me interessava eram as questões da comunicação, da gestão e da promoção, estrutural e comunicacional do teatro. Cada vez que ia fazer um trabalho, todas as ideias que tinha eram sobre arte contemporânea e rendi-me completamente, percebi que iria trabalhar nessa área. E claro que teve um impacto brutal, não só no meu gosto, como nas facilidades que tive. Sou uma privilegiada e não me esqueço dos privilégios que tive e que para outra pessoa seria muito mais difícil ser curadora ou escrever sobre arte. Acho que faço um trabalho que é meritório, mas foi muito facilitado e sou a primeira a reconhecê-lo.  

Na coleção, assumo um papel ativo nas compras, na programação e tenho feito várias curadorias de exposições.

 

CQ: Dentro deste tema do colecionismo e da tua proximidade ao mesmo, o que consideras ser essencial na constituição e desenvolvimento de uma coleção de arte? Qual o papel do curador numa coleção?

 

ACC: Acho que uma coleção de arte vai ter sempre uma parte que é subjetiva. No entanto, acho que não é muito relevante e vai sendo informada, pelo menos no caso do meu pai e posteriormente quando eu entrei. Por ver muita coisa, conhecer os artistas, perceber que uma obra pode constituir uma boa vizinhança de uma outra obra. Perceber que podemos ter ali obras que realmente têm essa boa vizinhança, artistas que têm uma obra que se confronta com outra. Também pode ser interessante acompanhar várias gerações para, já que a coleção tem um pretexto, que é com um pretexto heurístico e é uma coleção feita só de artistas portugueses, gostamos de ter alguma representatividade destes artistas portugueses.

Considero que estar informado e ter um cuidado na representatividade (e esta é uma luta que tenho dentro da coleção) para que haja paridade, por exemplo, e incluir mais artistas racializados. Estes são os três fatores mais importantes no colecionismo.

 

CQ: E como vês o colecionismo, público e privado, em Portugal?

 

ACC: Temos, ainda, muito poucos colecionadores e isso enfraquece muito o mercado e torna a vida dos artistas muito precária. Isto é o que me preocupa, podíamos ter só cinco que comprassem muita arte e isso não ser um problema. Mas o problema é que são poucos colecionadores e as compras das coleções públicas não são muito significativas, o que faz com que o trabalho dos artistas, principalmente os artistas mais novos, mas, obviamente, também dos mais velhos, seja absolutamente precário e isso é vergonhoso. Os apoios são vergonhosos e escassos, os júris muitas vezes não estão preparados, nem os formulários de candidatura. Portanto, é necessário fazer uma grande mudança, correndo-se o risco de se perder grandes artistas e grandes obras.

 

CQ: Na tua opinião, qual é a responsabilidade de um colecionador enquanto agente de promoção da produção artística e da sua exibição? Por exemplo, a Coleção A. Cachola teve sempre um papel ativo no apoio e promoção de artistas emergentes e não só, através da aquisição de obras e projetos comissionados, lembro-me, por exemplo, da pintura de grandes dimensões da Adriana Proganó (apresentada na exposição comemorativa dos 15 anos do MACE) ou agora o projeto da Isabel Cordovil na cisterna de Elvas (na FARRA).

 

ACC: A responsabilidade de fazer comissões é muito importante porque muitas vezes os artistas, por pressão do mercado, ainda por cima do mercado capitalista, em que cada venda pode acrescentar mais valor à próxima venda, obrigando, por vezes, a não poderem construir os projetos que realmente querem. Também por causa da escassez de apoios, acho que devia haver uma prática mista, tanto com comissões como de compra de peças.

 

CQ: Está neste momento a decorrer, na cidade de Elvas, a primeira edição da FARRA — Festa da Arte em Rede na Região do Alentejo, da qual és diretora artística. É uma festa que reúne trinta exposições de quatorze coleções, treze entidades sem fins lucrativos, dois museus e uma exposição fruto de residência. É promovida pelo MACE — Museu de Arte Contemporânea de Elvas, num projeto RPAC em parceria com Appleton: Associação Cultural, Centro de Arte Oliva e Córtex Frontal: Residências e Oficinas. De que forma se juntaram estas entidades e qual o papel que cada uma assume nesta FARRA?

 

ACC: As candidaturas à RPAC, um programa de apoio cuja primeira edição aconteceu este ano, obriga felizmente a parcerias. Nós conseguimos umas parcerias muito interessantes e conseguimos fazer várias coisas. Primeiramente, temos as residências que aconteceram no Córtex Frontal, em Arraiolos. Foram expostas na FARRA mas vão ser também expostas no Centro de Arte Oliva e na Appleton, portanto temos estas residências que vão estar em vários sítios e, desta forma, juntam muito diretamente as várias entidades. Depois temos a Appleton com o Podcast e a programar um ciclo de performances, a levar a biblioteca e a apresentar uma exposição em Elvas. O Córtex Frontal, também com uma exposição em Elvas e o Centro de Arte Oliva com uma exposição que é da coleção do José Lima, que vai ser levada depois também para o Centro de Arte, em São João da Madeira.

 

CQ: Estava no outro dia a ouvir o Podcast de que falas, Appleton Podcast temporada especial FARRA, no qual participavas em conjunto com as restantes parceiras, e no qual falam sobre a feliz coincidência de serem todas mulheres: Vera Appleton (Appleton Associação Cultural), Andreia Magalhães (Centro de Arte Oliva) e Mercedes Vidal-Abarca (Córtex-Frontal). Como lês esta coincidência? E qual a importância da afirmação da mulher no meio cultural?

 

ACC: Penso que se fizeram muitos avanços até à pandemia, estava realmente a acontecer um cuidado para uma maior inclusão de mulheres, tanto nas exposições, como nos debates ou como convites para fazer capas de livro ou edições. Havendo um cuidado muito maior, estava-se a avançar e a bom ritmo para que pudesse haver uma paridade. Neste momento, temos um enorme retrocesso, talvez não nos sítios cuja aprendizagem ficou feita e não querem voltar atrás, mas continuamos a ter listas de exposições onde estão só homens representados ou apenas duas mulheres, painéis onde estão somente homens, com toda a displicência e toda a pouca-vergonha a falar em nome das mulheres. Pessoas racializadas pouco se vê, ou pessoas trans e, portanto acho que estamos num retrocesso brutal em relação ao período pré-pandemia, o que me preocupa imenso e que considero perigosíssimo.

 

FARRA-Appleton - Performance Vitalina Sousa
FARRA-Appleton - Performance Gisela Casemiro
FARRA-Appleton - Performance Rui Toscano
FARRA- Appleton - Performance David Maranha e António Mota
FARRA-CACE 1
FARRA-CACE 3
FARRA-CACE 2
FARRA-CACE 4

 

CQ: Num total de trinta exposições e outras apresentações, a FARRA reúne maioritariamente coleções privadas, ainda que a CACE — Coleção de Arte Contemporânea do Estado, que é uma coleção pública, tenha uma importante exposição patente no MACE. Qual a importância dessa interseção e de dar visibilidade a coleções privadas?

 

ACC: Há dois anos aconteceu a celebração dos 15 anos do Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Na altura, não tinha nada que ver com o assunto, estava com os meus projetos, quando em março o meu pai me diz que a pessoa responsável pela celebração não estava disponível e pediu-me para ser eu a fazer uma exposição. Escrevi um projeto e disse que só o fazia se fosse como tinha planeado. Como o meu pai é uma pessoa de fazer, disse-me “vamos fazer isto” e fomos arranjar financiamento. Claro que as coleções privadas tomaram logo um grande destaque, porque a ideia era levar a Elvas instituições com quem já tínhamos criado uma rede de afetos e que fossem, ou coleções privadas, ou associações non-profit. Fizemos vinte e cinco exposições em Elvas que é Património da Humanidade e, por isso, tem espaços lindíssimos, mas que estão fechados. Nós, em conjunto com a Câmara, conseguimos abrir esses espaços para acolher essas exposições, no entanto, é muito difícil arranjar vigilantes, é problemático cumprir os horários, porque estamos a fazer um evento enorme, muito especializado e em que é preciso materiais que não estão à venda nesta cidade, são precisos técnicos muito especializados, que não se encontram nesta cidade. Portanto, é tudo uma loucura e é tudo muito mais caro porque é preciso transporte, é preciso pagar estadia às equipas técnicas e nós percebemos que podiam existir vários problemas, mas o que é certo é que toda a gente adorou. Arranjámos o dinheiro, entre candidaturas e mecenas privados. Como, de facto, aconteceu as pessoas ficaram muito contentes, inclusive o ministro da cultura na altura e os próprios mecenas demonstraram vontade de que este evento acontecesse novamente. Então, eu e a minha bastante reduzida equipa, que inclui a parte técnica, a comunicação, o design e o produtor, fizemos uma residência em julho do ano passado, onde chegámos ao nome FARRA. Queria alguma coisa que se chamasse festa, porque ando a pesquisar sobre party studies, como criação de comunidades, e foi o Luís Alves Vicente, que é o nosso diretor de comunicação, que chegou ao nome. Desenhámos um dossier de projeto muito completo, com orçamento, com o planeamento de comunicação e comecei a apresentar aos mecenas, começámos a ter algum financiamento e depois candidatámo-nos à DGArtes e conseguimos o apoio. Penso que conseguimos projetos extraordinários, tanto nas comissões, como nos projetos apresentados lá. Infelizmente, continuamos a ter vários problemas logísticos e é claro que fico chateada, mas isto acontece no Alentejo e tenho de ficar contente. Em Elvas conseguimos fazer trinta exposições de arte contemporânea, conseguimos trazer novas comissões, projetos site specific. Acho que estamos todos de parabéns!

 

CQ: Na reta final da FARRA, a decorrer até 25 de agosto, o que é que os visitantes podem ainda encontrar?

 

ACC: Além das exposições, que estão a decorrer no horário que está indicado no site farra.pt (espero que não haja problemas nesse aspeto) e ainda os laboratórios de mediação com vários artistas, sendo que a maioria tem sido para crianças. No fim de semana da finissage vamos ter cinco performances a acontecer, portanto vai ser um fim de semana bom para se estar na FARRA.

 

CQ: Sobre estes laboratórios com artistas, entre eles Alice Geirinhas, Francisco Trêpa, Sandra Baía e Eugénia Mussa, qual é para ti a importância da mediação e da interação entre a população/visitantes e os próprios artistas?

 

ACC: Penso que na arte contemporânea temos um problema e que a própria comunidade da área contribui para ele: há quem acredite que a arte contemporânea não é para todos e isto não faz sentido nenhum. Uma pessoa que vê arte contemporânea não precisa de saber a teoria ou algo assim, pode só olhar da mesma maneira que ouve música techno, música de dança, ou música clássica e gostar ou não gostar. Para mim, é uma coisa difícil de compreender. Agora, acho que as pessoas põem os artistas num pedestal, muitas acreditam que são inacessíveis e, por isso, acham que a arte está também inacessível. Por esta razão, temos de acabar com estes mitos e, se estes mitos não terminam, não vale a pena estarmos a fazer uma RPAC e não vale a pena estarmos a construir museus ou dar ferramentas a museus, dinheiro ou apoios. Nesse sentido, é para mim muito importante fazer os laboratórios de mediação com os artistas para que as pessoas os conheçam, estejam em contato com eles e perceberem que isso é possível, é normal e assim quebrar um bocadinho a barreira que existe.

 

CQ: Ainda sobre este trabalho de mediação, a FARRA e o movimento de descentralização da arte, pergunto-te: qual a relevância que a arte contemporânea pode ter fora dos grandes centros? A arte tem ou pode ter poder transformador dentro das comunidades?

 

ACC: Nós fazemos uma dupla descentralização, a coleção que está no MACE em depósito, que é a coleção António Cachola, sai e acolhe a Coleção de Arte Contemporânea do Estado. Uma coleção que existe há muito tempo, que tem muitas peças e que agora tem tido um novo alento com novas aquisições, aspeto que deve ser reconhecido. Penso também que, se estamos a falar de coleções e que se não queremos fechar a FARRA apenas a coleções privadas, queremos igualmente trazer instituições non profit, queremos trazer outro tipo de instituições a Elvas, é importante ter presente a CACE. A coleção tem enorme qualidade e a Sandra Vieira Jürgens com a Francisca Portugal, que tivemos a sorte de ter e que são ótimas curadoras, trouxeram ao museu a descentralização em Elvas. A outra forma de descentralização, que é muito democrática, foi conseguirmos levar vários olhares da arte, várias coleções e vários nomes de artistas a um só lugar, ou seja, quem visita a FARRA só tem de se deslocar a Elvas para ver exposições ou visões curatoriais distintas. Tem trinta exposições para ver, laboratórios de mediação, performances e todos os nossos eventos são gratuitos e o acesso a todas as exposições é gratuito. A maior parte dos laboratórios de mediação foram feitos lá, temos todos os sábados visitas guiadas por circuitos definidos e também gratuitas. Portanto fizemos um evento extremamente democrático.

Em relação ao poder transformador, tenho muito medo de dizer que a arte pode ser transformadora, como dizia Adorno é impossível escrever poesia depois de Auschwitz. Havia uma grande esperança na arte e depois temos toda aquela desgraça. Agora, acho que não é transformadora, mas pode influenciar positivamente as comunidades e pode, em certos sítios e de maneiras até não muito complicadas, criar mesmo mini comunidades que se juntem e que possam aprender outras epistemologias, outras formas de saber. Transformar, penso que é um pouco difícil.

 

CQ: Esta dinâmica de colaboração e cooperação que falas, vincada tónica da FARRA, é também uma ideia ou um princípio para ti estrutural especialmente nos dias que correm? Ser rede, criar parcerias, valor da comunidade...

 

ACC: Para mim é estrutural. Enquanto nós não tivermos os museus a cooperarem uns com os outros, as coleções umas com as outras, enquanto nós não tivermos essa dinâmica a acontecer é difícil. Enquanto, por exemplo, não virmos três museus juntarem-se para fazer uma comissão a um artista, o próprio material técnico ser partilhado, já que é uma coisa que se torna obsoleta tão rapidamente e que às vezes é usada apenas numa exposição, haver uma base de dados daquilo que se podia partilhar em vez de se estar a gastar dinheiro que muitas vezes é depois desperdiçado. Poder haver essa partilha, poder haver workshops entre os recursos humanos dos vários museus, em que uns são muito bons em serviços de mediação, os outros são muito conhecidos por organizarem muito bem as obras em coleção, os outros porque comunicam muito bem nas redes sociais. Com esta partilha só temos a ganhar e, se o sistema da arte for forte não vamos estar a competir, vamos sim fazer para que tudo funcione melhor. Na minha opinião é a única forma do mundo da arte crescer saudável e de acabar com os artistas enquanto precarizados.

 

CQ: Sendo tu uma defensora da equidade, liberdade, justiça, sororidade e detentora de uma clara consciência social e política, pedia-te para falares um pouco da ideia de festa, que referiste há pouco e que descreves como sendo o “lugar de nascimento, lugar de resistência”.

 

ACC: A festa foi sempre encarada com muita leviandade e as coisas sérias foram sempre pensadas ou enquadradas em sistemas normativos muito rígidos e muito fechados. Diz-nos a história e as histórias que muito boas ideias surgiram em momentos de descontração. Pensando nisto agora mesmo: no meu caminho, enquanto académica e quando comecei a fazer investigação, é certo que gostei sempre muito de sair à noite e de ir a festas. Apercebi-me que os meus raciocínios, as minhas ideias, ou as minhas conversas mais frutíferas — não a teoria em si, não o estudar os clássicos — aconteceu nestes contextos. Comecei a falar com os meus colegas, até porque a ideia de night studies foi a Daniela Agostinho que teve, mas a verdade é que quanto mais saía ou ia a um jantar e ficávamos a conversar e de repente ficávamos quatro horas a falar de uma obra de arte, “porque é que aquilo veio daqui?” ou “e eu até pensei naquilo”. A troca de perspetivas nesse ambiente fazia o meu pensamento explodir e ia para casa e apontava tudo para escrever papers! Então, o que achei a partir daí foi que as pessoas, quando estão em ambientes descontraídos e em que podem dizer muitas parvoíces, ao contrário dos espaços normativos como são muitas vezes as faculdades, nos impeliam de pensar e de criar laços afetivos que são muito importantes neste dialogar e pensar em conjunto. Tantas exposições e textos que combinei à noite!

Na inauguração da FARRA, apesar do ter dito que é uma festa ferida, porque o mundo está ferido, acho que se não continuarmos em festa e a dar-nos uns com os outros de forma descontraída, não vamos conseguir encontrar nenhuma solução. Temos de ser o mais criativos possível e ter o maior afeto entre todos para que uma solução possa ser encontrada. É, neste sentido que queria mesmo que fosse uma festa e que as pessoas tivessem o mais descontraídas possível, para que quem decide e que tem poder, tome boas decisões e crie novas parcerias. Aliás, já aconteceu uma coisa muito boa mas que ainda não posso divulgar! Várias coisas podem surgir de uma boa festa ou de uma boa conversa, numa esplanada ou num jantar. Acho que a festa, a FARRA, que é a Festa da Arte em Rede da Região do Alentejo, serve mesmo para isso e é mesmo um ato de resistência: nós não vamos parar de conviver, de ter afeto e de ser criativos para conseguir fechar esta ferida enorme que o mundo tem.

 

CQ: Uma última pergunta que é exatamente sobre o afeto: sempre que leio ou te ouço falar sobre arte, não posso deixar de sentir o valor emotivo presente nas tuas palavras. Propões, por vezes, analogias em torno do amor e do afeto. De que forma está ou pode o amor estar implicado na arte?

 

ACC: O amor está mesmo muito implicado na arte. Com todos os artistas que conheci, percebi que a criação de uma peça é de um amor incondicional e isso claro que liberta uma energia que tu passas a sentir. A arte tem obviamente de ser paga, não é disso que se trata, mas sendo uma profissão tão difícil, se não estivéssemos aqui todos por amor, acho não podia ser por outra coisa. Faço também este meu trabalho precisamente porque acredito que o amor é a coisa mais importante que existe.

 

Coleção António Cachola 

FARRA

Quéréla

 

Carolina Quintela (1991), curadora. É licenciada e mestre em Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, e pós-graduada em Curadoria e Programação das Artes pela Universidade Católica Portuguesa. Desde 2015 que se dedica ao desenvolvimento de projetos curatoriais, investigação e produção de textos. É Curadora e Investigadora do MACAM: Museu de Arte Contemporânea Armando Martins.

 

 

 

FARRA-Rialto 2
FARRA-Rialto 1
FARRA-Rialto 3

Imagens: Ana Cristina Cachola. FARRA: Intervenção de Sofia Caetano para a Quéréla, slideshow com proposta da Appleton (Performances de Vitalina Sousa, Gisela Casimiro, David Maranha e António Mota e Rui Toscano); Slideshow com a exposição do CACE no MACE; Intervenção de Isabel Cordovil para a Coleção António Cachola; Proposta de Rialto6 com Henrique Pavão e Lawrence Weiner; Intervenção de João Marçal para o Armário. Slideshow da exposição MACE 15 anos (2022). Fotos: © Pedro Magalhães. Cortesia dos artistas, das coleções e de FARRA.

 

Notas:

 


[1] Referência à origem do nome do projeto: Quéréla — o que quer ela.

[2] The Museum as Muse: Artists Reflect de Kynaston McShine.

15 anos MACE - Coleção A. Cachola 3
15 anos MACE - Coleção A. Cachola 1
15 anos MACE -Coleção A. Cachola 2
15 anos MACE - Coleção A. Cachola 4
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