wanderings
wanderings é o título – francamente evocativo – da mais recente exposição colectiva, patente na Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, com curadoria de Gregory Lang.
wanderings, que a folha de sala da exposição traduz por “errâncias”, poderia igualmente ser traduzido por “devaneios”, eventualmente poéticos; certamente mundanos. A exposição apresenta trabalhos de artistas consistentes, tais como Francis Alÿs, Juan Araujo, Rui Calçada Bastos, Michael Biberstein, André Cepeda, Filipa César, Alexandre Estrela, Andreas Fogarasi, Dan Graham, Matt Mullican, Thomas Ruff, Julião Sarmento, Wolfgang Tillmans ou Lawrence Weiner. Como denominador comum, prefigura-se a obra que transporta o instante mundano, o universo cosmopolita, o pulsar da cidade, e o artista que lhe vai tomando o pulso.
Esta bem conseguida exposição reporta-nos, inevitavelmente, a Charles Baudelaire, que justamente tornaria célebre a figura do flâneur – o fruidor imaginativo, melancólico, em busca de emoções, cosmopolita, sozinho na multidão, que se passeia – de dia, sob a iluminação natural da cobertura de vidro; ao anoitecer, com a luz do gás – pelas ruas e pelas modernas passages parisienses do Segundo Império, à época de Napoleão III e das reformas urbanas de Georges-Eugène Haussmann. As ruas eram a sua casa. O exterior transfigurava-se em interior. Paris passeava-se. Há qualquer coisa de visionário e de predador na figura do flâneur. Preda a vida, buscando incessantemente a modernidade e o amor, claro. Segundo Baudelaire, o amor seria a ocupação natural dos ociosos. Bela e infindável ocupação esta. Aliás, ainda como escreve o poeta francês em Le peintre de la vie moderne (1863): “Dizia-me um amigo meu que, ainda muito pequeno, assistia ao arranjo do pai e contemplava então, com um espanto tingido de delícia, os músculos dos braços, as gradações de cores da pele (…) O quadro da vida exterior penetrava-o já de respeito e apoderava-se do seu cérebro. (…) Será necessário dizer que aquela criança é hoje um pintor célebre?”. Supomos que não.
Mas também Walter Benjamim pode aqui ser convocado. É justamente no ambicioso projecto Das Passagen-Werk, iniciado em 1927 e nunca terminado, que Benjamin realizou claramente uma fusão entre a arte e a vivência quotidiana e mundana, ao mesmo tempo que assumiu como matéria reflexiva a obra de Baudelaire e a cidade de Paris do Segundo Império, metrópole efervescente, moderna e sedenta de futuro. E duas questões sobretudo nos importam: a libertação da técnica – do fazer – que a imagem mecânica permite, como entendeu Benjamin, não obstante desconfiar da permanência da célebre aura; a libertação mundana do flâneur para outros domínios do pensamento e da vivência cosmopolita, como viu Baudelaire.
E neste ponto regressamos a wanderings, uma exposição feita de belas peças, sobretudo em suporte fotográfico e videográfico, a par de textos e de outros objectos, como uma cadeira ou um grande balão azul, ou ainda uma inusitada – face ao conjunto – pintura de Michael Biberstein. A entrada faz-se por entre trabalhos de Filipa César e de Alexandre Estrela, que justamente evocam o universo em questão, seguindo-se da magnífica vista nocturna de Thomas Ruff, de fotografas a preto e branco de André Cepeda, por exemplo, entre outros artistas que propõem este suporte. Na sala de baixo, merece destaque a instalação de postais de Oriol Vilanova ou o pau colorido, que é suposto ser movimentado, de André Cadere. Todas as obras permitem a abertura de janelas de imaginação, de vida, de relações espaço-tempo diversas. E, do ponto de vista do espectador, wanderings, de modo talvez involuntário, permite que o visitante se torne também um flâneur, ao descobrir universos, lugares, inquietações, objectos. E volta tudo ao início com o visitante seguinte.
Finalmente, debrucemo-nos ainda sobre outro aspecto. No texto que introduz a mostra em causa pode ler-se que este projecto foi inspirado em três filmes descritivos de viagens – ou deambulações, propomos nós – pela cidade de Lisboa: A cidade branca, de Alain Tanner, Lisbon story, de Wim Wenders e Derivas, de Ricardo Costa. E naturalmente que o imaginário urbano nos reporta, invariavelmente, ao cinema enquanto marco claro de modernidade e de mundanidade, imediatamente desde a sua invenção, inicialmente como curiosidade mecânica, como se sabe. Estes filmes colocam Lisboa como protagonista de um imaginário presente e tornado imagem. Contudo, percebemos que wanderings se reporta a muito mais do que Lisboa e do que, consequentemente, a estes filmes. Aliás, Lisbon story é, provavelmente, dos filmes menos conseguidos de Wenders, que precisamente tem como matriz do seu trabalho a imagem e, maioritariamente, o universo da cidade. Pensemos em Alice in den Städten (1974), Der Himmel über Berlin (1987) ou Faraway, so close! (1993) como exemplos bastante mais notáveis. De todo o modo, e a propósito de Lisboa, outros cineastas poderiam ser evocados, como João César Monteiro ou Edgar Pêra.
Por outro lado, e ainda no que à questão do cinema diz respeito, esta exposição assume um ambiente cinematográfico, não apenas no sentido do imaginário que propõe – como já se referiu –, mas inclusivamente na montagem e leitura que propicia, às vezes remetendo para o raccord cinematográfico, na sua fluidez e conexão pertinente de elementos. Esta exposição é ainda um belo passeio, ao modo do flâneur do século XIX, agora não numa rua ou passage parisiense, mas numa galeria. Lá fora, é Dezembro. Aqui, o tempo e o clima é o que deles quisermos fazer.
Isabel Nogueira
(n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).