Daniel Steegmann Mangrané: Fazer-Corpo
É um gesto generoso, aberto e claro, que parece dançar, não obstante a sua aparente imobilidade e rigidez de aço, que demarca o início da exposição de Daniel Steegmann Mangrané Uma folha translúcida no lugar da boca, que toma o nome de um verso de Paul Celan.
Upsylon - chama-se - essa escultura que recebe e abraça, alinhada na sucessão de vazios da galeria central do Museu de Serralves, onde poderia ser, também, porta. É porta e corpo. Mais especificamente o movimento do braço do artista ou o balanço da minha perna lançada para trás ou o rodopio de um torso. É um corpo-porta e um corpo-dança, que descreve movimentos subtis e aéreos por entre os finos fios dos seus membros.
Sobre a escultura, sobre o espaço em seu redor, sobre as outras obras, as paredes e o ar, repousa uma estranha luz verde artificial, desvelando o continuum das obras de Steegmann Mangrané: a floresta Amazónica do seu filme 16mm e de Phantom (kingdom of all the animals and all the beasts is my name) co-existem, enquanto rememorações, no espaço de exposição, assim como Phasmides e Morfogenesis-Cripsis, a cuja nova transformação se assiste na parede onde se lê o texto de introdução, disseminando-se e contaminando a superfície branca, parando, justamente, quando surge a outra imagem da floresta, espiral ou teia de troncos, vegetação, folhas e partículas de luz, que espreitam no que se percebe como um labirinto espontâneo, denso e complexo, que o artista, que vira câmara que vira olho, penetra. Esta percepção depressa se dissolve quando nos afastamos da parede. As marcas do desenho tornam-se, cada vez mais, imperceptíveis até assistirmos à sua completa desaparição. A nossa também, quando cruzamos a janela que não nos devolve o nosso reflexo senão desfocado e fragmentado, como o de tudo o que nos rodeia. As formas quebradas, os corpos estilhaçados, visões que vêm desse passado do início da modernidade.
“É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo”
Lê-se na parede de pernas para o ar. As palavras dobram-se e desdobram-se. Mimetizam os gestos do corpo, tornando-se nos próprios gestos, no corpo. Da poetisa brasileira Stela do Patrocínio, ao longo das paredes, recriam essa linguagem primeira, a oralidade, que, no seu dizer, só conhece palavras tácteis e palavras que se alimentam do corpo, de um corpo que se sente fora de si. Na parede, este é, ainda, atravessado por planos recortados, entre-recortados, golpeando letras, fazendo-as desaparecer e evaporar no ar.
“Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro”
O insecto-folha e o insecto-pau sabem fazer um corpo para si e sabem fazer casa e da casa fazer um corpo. O pavilhão de vidro, que habitam, tem uma forma sinuosa, assemelhando-se àquela orgânica que encontramos em certas plantas ou flores, cujo contorno desenha uma série de cavidades e protuberâncias, criando, por conseguinte, diferentes relações entre corpo e espaço. O interior acolhe um ecossistema de plantas autóctones, seleccionadas no jardim de Serralves, redefinindo essa ligação entre interior e exterior (que a janela de Álvaro Siza já enuncia), à semelhança da escultura Upsylon, situada no mesmo eixo, fazendo-nos olhar, no entanto, para o interior do museu, para a sucessão dos seus diferentes limiares. Contudo, a atenção exige-se ao olhar minucioso que procura, por entre galhos e folhas, esses insectos exóticos, inclusivamente por entre as folhas castanhas que parecem mortas. O conhecimento prévio da sua existência em nada retira à experiência do espanto e da maravilha, quase mágica, das formas que estes insectos fabricam para se transformarem, eles próprios, no espaço que os rodeia, evocando esse tempo anterior e longínquo da unicidade da matéria. Este desejo re-acende-se, certamente, em nós, através do pequeno holograma Mão com Folhas, ao sentirmos as nossas mãos como folhas e o nosso corpo floresta: um corpo-floresta.
Propusemo-nos a esta experiência (no próprio texto como espaço de ensaio): seria possível relacionarmo-nos com as obras de Steegmann Mangrané a partir da nossa percepção, ensaiando as relações que as obras estabelecem entre si e deixando-as transformar-nos? Steegmann Mangrané assim o desejaria, defendo que “a experiência fenomenológica tem que equivaler à proposta conceitual.” Para si, as obras entram num processo de participação com aqueles que já não poderão assumir-se como observadores passivos. E se nos encontramos envoltos pela delicadeza, subtileza e poesia das obras, sentimos, simultaneamente, um confronto desarmante perante as oposições que desmistificam, aquelas que herdámos da cultura ocidental e nos fazem crer que existimos enquanto sujeitos e as obras enquanto objectos. Não só sentimos as obras como declinações (ou variações intensivas) de um corpo, como o nosso próprio corpo é transformado pelas obras. Estas, pelos próprios problemas estéticos que indiciam, revelam ressonâncias de obras de outros autores das mais variadas áreas do conhecimento - da antropologia, da sociologia, da filosofia, entre outras - que informam, conceptualmente, a obra de Steegmann Mangrané.
Mas as relações encontradas entre as obras destes autores e as do artista estão já explanadas na própria experiência e apropriação da sua obra (donde a importância da nossa pequena experiência), em que as semelhanças e as interferências, que criam entre si, mimetizam, por sua vez, as que o artista encontra quer nos insectos-folha, nos insectos-pau, na floresta, quer nas experiências desses mesmos autores desses mesmos casos, embora o artista prefira designar essa relação de metáfora, uma vez que lhe permitem colocar, sempre, um determinado problema sobre a obra de arte. Por exemplo, a descoberta do insecto-pau permitiu-lhe pensar sobre o paradoxo inerente à beleza de certas imagens nas quais coexistem fragilidade e poder, ou como as relações entre fundo e figura, proximidade e distância, determinam essa coexistência (ambos problemas da ordem da percepção e da representação). Já a clássica oposição entre formas naturais e culturais, que o artista tenta quebrar, a partir da dissimulação de uma série de paradoxos, como por exemplo, a de um padrão geométrico semelhante ao de uma célula que se multiplica ad infinitum, transformando-se em tecido orgânico geometricamente complexo, serve-lhe para pensar sobre as relações entre as formas, mais do que sobre as próprias formas em si. Talvez porque estas sejam criadas como processos (onde as próprias singularidades do medium entram na composição da obra) ou fluxos cuja acção última seja, sobretudo, a de transformar os corpos.
Roger Caillois, sociólogo e ensaísta francês, no seu ensaio Mimicry and Legendary Psychasthenia, de 1935, questiona a razão encontrada por vários cientistas para a capacidade mimética desenvolvida por certos animais, nomeadamente a dos insectos-pau e dos insectos-folha, como sendo a necessidade de defesa perante os inimigos. Contudo, tanto são encontrados, nos estômagos dos animais predadores, vários animais que mimetizam o ambiente que os rodeia, como estes, muitas vezes, não têm, biologicamente, razões para temer qualquer inimigo, revelando-se a necessidade de defesa, completamente, inútil. O autor propõe uma outra hipótese, a da psicastenia pela semelhança que encontra com a experiência que o esquizofrénico tem do seu corpo e da relação deste com o espaço que o rodeia: “To these dispossessed souls, space seems to be a devouring force. Space pursues them, encircles them, digests them in a gigantic phagocytosis. It ends by replacing them. Then the body separates itself from thought, the individual breaks the boundary of his skin and occupies the other side of his senses. He tries to look at himself from any point whatever in space. He feels himself becoming space, dark space where things cannot be put. He is similar, not similar to something, but just similar. And he invents spaces of which he is “the convulsive possession.” All these expressions shed light on a single process: depersonalization by assimilation to space, i.e., what mimicry achieves morphologically in certain animal species.”
Curiosamente, os poemas de Stela do Patrocínio descrevem uma experiência muito idêntica à observada por Caillois. A poetisa sente-se, frequentemente, fora do seu corpo, e por vezes trata o corpo como matéria inerte, uma matéria que pode ser arrancada, extraída para ser examinada, ou que pode renascer sob diferentes formas (e, se atentarmos, quase todas elas próximas de um vocabulário de experiências médicas - evaporar, gasificar - porque “eles é que me botam pra nascer todo dia / E sempre que eu morro me ressuscitam / Me encarnam me desencarnam me reencarnam / Me formam em menos de um segundo”), ou melhor, é pelas palavras que a poetisa devém, ela própria, o seu corpo e sente a carne, que é a sua, como matéria plástica mutável e moldável: o corpo deitado transforma-se, no poema, no peso da carne (Stela do Patrocínio esteve internada quase durante os últimos 30 anos da sua vida numa colónia psiquiátrica).
Steegmann Mangrané, por sua vez, questiona-se se não serão os diferente usos que fazemos das formas, nas diversas expressões artísticas, sucessivas tentativas de nos dissolvermos a nós próprios no mundo, ao que acrescentamos que essa dissolução só é possível no processo de devir, se pensarmos, por exemplo, na influência que o pensamento de Eduardo Viveiros de Castro tem na obra deste artista, sobretudo pela noção de corpo que retira do perspectivismo ameríndio: “A morfologia, a forma visível dos corpos, é um signo poderoso dessas diferenças de afecção, embora possa ser enganadora, pois uma aparência de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afecção-jaguar. O que estou chamando de “corpo”, portanto, não é sinónimo de fisiologia distintiva ou de morfologia fixa; é um conjunto de afecções ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos, há um plano intermediário que é o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas” (Eduardo Viveiros de Castro, “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”).
As obras de Steegmann Mangrané - de regresso ao início, também, do texto - são corpos tal como os ameríndios os vêm: desencadeiam processos, que não são mímicos (assim como o devir-animal, ou afecção-jaguar, também não é mímico), mas permitem penetrar na textura da matéria das coisas, para se transformarem no Outro e devir-Outro, devir-animal, devir-folha. Uma folha translúcida no lugar da boca relembra-nos, ainda, Burroughs (para quem os órgãos sexuais apareciam por todo o corpo), citado por Gilles Deleuze, quando este descreve o corpo sem órgãos, esse corpo intensivo fabricado no preciso momento do processo de devir, atravessado por velocidades, intensidades, afectos… o mesmo corpo que Espinosa pensou e que poderia ser, também, o corpo ameríndio ou o fazer-corpo das obras de Steegmann Mangrané.
(Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Recentemente, foi co-curadora de “Utopia/Distopia”, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT).