Corpos Talhados de Dentro para Fora
Sobre a exposição de Paloma Varga Weisz na Galeria Pedro Cera.
Na psicanálise de Freud, o termo uncanny é definido como "a experiência psicológica de algo estranhamente familiar, em vez de simplesmente misterioso". A descrição não está longe da sensação que nos assola ao visitarmos a primeira exposição em Portugal da artista alemã de origem húngara Paloma Varga Weisz, patente na galeria Pedro Cera. A familiaridade está sempre presente, identificamo-la nos traços antropomórficos das figuras esculpidas ou desenhadas, no calor da madeira e no vestígio da mão que a talhou. No entanto, essas personagens nunca deixam de representar um enigma, por muito que nos consigamos ver a nós próprios nos seus misteriosos semblantes.
Uma figura feminina, enquadrada na parede e esculpida em madeira de tília queimada, sem braços e pernas mas com uma sinuosa barriga, sugere que comecemos exactamente por onde tudo tem início. Bumped body (2017) é um corpo dentro de outro corpo, com a opacidade protectora que esconde mas revela o que ainda virá a ser. Os olhos estão fechados num semblante de placidez e a materialidade da madeira parece aproximar-nos do calor uterino. Se a transfiguração do corpo humano é um tema que atravessa esta exposição, em particular, e, de um modo geral, toda a produção artística de Paloma Varga Weisz, este Bumped body surge como figura antropomórfica que é súmula de toda e qualquer mutação corporal e da sua ligação a uma correspondente mutação - ou multiplicação - imaterial.
Numa parede adjacente, Lying woman (2016) dá continuidade à atmosfera de bonomia: deitada de costas sobre um dos braços, numa pose de devaneio, uma figura nua talhada em madeira de tília surge como se de uma personagem mitológica se tratasse, uma Vénus ou uma Perséfone, num abandono ensimesmado de ninfa. A mão certeira da artista assume-se nos movimentos sucessivos que deram forma à madeira e a pele afirma-se enquanto superfície de transmutação e de inscrição, de leitura de cicatrizes. Como se pode ler no texto que acompanha a exposição, trata-se de um "acto de violência, encarnado no gesto de desbaste", na acção de subtracção implicada na formação de qualquer unidade subjectiva.
No centro da sala está uma figura vestida com o que parece ser uma bata de hospital e estendida sobre uma mesa em vidro, apenas as mãos juntas sobre o peito e os olhos cerrados sugerem que esteja morta ou num sono presumivelmente induzido. Sobre o corpo, uma outra mesa em vidro expõe uma panóplia de frascos, recipientes e utensílios de laboratório que nos transporta para um cenário clínico, para o episódio de uma qualquer história de ficção científica. A ciência ao serviço das transmutações do corpo humano, até chegar à alteração da sua natureza, que hoje tão bem conhecemos. O título da obra - Still life (2017) – e o modo como os seus elementos compõe uma quadra meticulosamente encenada evocam as pinturas de naturezas mortas que marcaram a história da arte ocidental.
Numa mesma abordagem que coloca o corpo sob um incisivo olhar examinador, em Phyllida - cabinet 6 (2017), dentro de uma caixa vemos o busto do que poderia ser um velho homem das cavernas, sobre a cabeça, um chapéu em pele leva-nos a imaginar uma qualquer era do gelo. Na metade inferior do caixilho, observam-se as mãos do exemplar humano, com um polegar opositor plenamente desenvolvido. Podíamos estar na ala pré-histórica de um museu de história natural e é um pouco esse o olhar com que percorremos as rugas meticulosamente talhadas, as sobrancelhas arqueadas, a expressão ponderada mas desinteressada de um rosto que nos devolve uma viagem milenar.
A opção de Paloma Varga Weisz por técnicas artísticas tradicionais, próximas do artesanato e sempre fiéis ao trabalho da mão, é manifesta em Bumped man (2016). Sobre um banco de madeira, vemos uma criatura de aparência humana, as mãos estão sobre os joelhos e o olhar dirige-se para cima, interpela-nos numa súplica triste mas expectante. Esculpida em madeira de tília policromada, a figura colorida parece-nos humana mas claramente desfigurada, comprimida. Como nas personagens alucinadas das pinturas de Francis Bacon, há um realismo deformado que se apresenta como incisão na linha do tempo, o que sugere uma acção contínua, um trauma em mitigação.
O recurso a temas da iconografia tradicional, sobre os quais a artista aplica formas desviantes ou introduz elementos desarmónicos, é transversal e está presente em trabalhos como Nosemonkey (2017) - uma criatura com um enorme nariz fálico e o corpo coberto de pêlos que segura num outro ser quase informe. Apesar dos contornos animalescos das figuras e do escurecimento da madeira queimada, conseguimos, nesse salvamento e através das posições dos corpos, identificar prontamente uma Pietà, tema recorrente da arte sacra. Numa série de desenhos, essas mesmas figuras semi-humanas, semi-animais são retratadas com a assertiva simplicidade das ilustrações de um conto infantil.
As obras de Paloma Varga Weisz fixam a inconstância da forma humana e sondam as fronteiras dessa humanidade, como se cada corpo se encontrasse num constante processo de modelagem e entalhe e esse fosse o seu modo de existir. A escultura é talvez a expressão que mais respeita o movimento de tudo o que vive; pode representar, num compasso suspenso, a longuíssima história de qualquer organismo. Paloma Varga Weisz sabe-o, tal como sabe que a pele se talha sempre de dentro para fora. Talvez seja esse o maior enigma a decifrar por trás das suas obras: tratam-se afinal de corpos que se geraram a si próprios, não obstante a omnipresença da mão da artista.
Maria Beatriz Marquilhas
Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.