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John Akomfrah: Purple

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Isabel Nogueira

Purple é o título da instalação que John Akomfrah (n. 1957, República do Gana) apresenta no Museu Colecção Berardo, mostra comissionada pelo Barbican Centre, Londres. Akomfrah, artista, escritor e activista, formado em sociologia, fundador da Black Audio Film Collective (1982-1998), vive desde criança no Reino Unido. Traz-nos agora uma inquietante peça de vídeo, com seis grandes ecrãs, cuja temática é a profunda e perigosa alteração climática que se vive no planeta e as suas consequências na vida humana, assim como nos outros animais e vegetais. Este trabalho constitui parte de uma tetralogia parcialmente mostrada, por exemplo, na Bienal de Veneza de 2015 (Vertigo Sea, 2015). As zonas planetárias sensíveis sobre as quais sobretudo incidem as filmagens — de arquivo e recentes — são, entre outras, o Alasca, a Gronelândia e as Ilhas Marquesas.

O trabalho activista e politicamente engajado de Akomfrah — notoriamente visível em obras como Auto da Fé (2016) — toma corpo imagético também no contexto da designada era do antropoceno, termo popularizado, entre outros, pelo cientista Paul Crutzen, nos anos 90 do século passado, e que resumidamente adverte para as problemáticas do aquecimento global, para a escassez de recursos naturais e para as consequências sérias da intervenção do ser humano na natureza. Reflecte-se agora sobre a materialidade do planeta e sobre o colapso ecológico iminente. Merece destaque, neste contexto, a importante exposição Fragile Ecologies (Queens Museum, Nova Iorque, 1992), uma das primeiras a colocar em causa o capitalismo industrial. Naturalmente que esta realidade tem vindo a ser interpelada nos discursos artísticos, nas obras e nas exposições que amiúde sobre estas problemáticas, cada vez mais, se debruçam.

Mas outra questão merece referência. Trata-se, neste contexto mundial, da emergência de uma mudança radical nas condições de visualidade. Um texto de Irmgard Emmelhainz, integrante da obra colectiva Art in the anthropocene. Encounters among aesthetics, politics, environments and epistemologies (2015), chama a atenção para uma mudança efectiva nas condições de visualidade e a transformação do mundo em imagens, ou seja, a criação de um novo ponto de vista do qual as imagens fazem parte. Passa-se da representação para o “estar presente”. Um escrito, mais antigo, de Marie-José Mondzain (L’image peut-elle tuer?, 2002) diz-nos que a imagem dá visibilidade a uma ausência, remetendo o espectador para a incorporação, que aglutina em si mesma três instâncias indissociáveis: o visível, o invisível e o olhar que os coloca em relação.

O espectador numa contemplação activa, desejante e receptiva de mundo, acrescentamos. Por outras palavras, a necessária e real vontade de ver.

E regressemos à instalação em causa. O espaço foi integralmente transformado numa câmara púrpura. As paredes e o chão criam a possibilidade de definição de um universo específico, notoriamente distinto do resto do museu; do resto do mundo. Entra-se aqui e a disponibilidade tem de ser total, num espaço exigente que fisicamente nos dá como única referência espacial as imagens da própria instalação, como objecto total, composto também por som envolvente. Sentamo-nos e deixamo-nos ir, em loop. As imagens vão-nos agarrando, por vezes criando, através do falso-raccord, uma certa ideia de continuidade. Outras vezes, a repetição é assumida. Uma das primeiras imagens é uma figura humana, de costas para o espectador, com a imensidão do branco da neve como fundo. As imagens vão-se sucedendo, numa gramática visual poética, denunciadora e intensa. Cria-se uma fusão de som e de imagem. Entramos no ecrã.

Do ponto de vista dos conteúdos, além das paisagens, surgem os conflitos políticos, sociais, ecológicos, as disputas pelo poder sobre a natureza, a necessidade de domínio que o ser humano historicamente foi conquistando e, a partir de determinada altura, legitimando, recorrendo à construção de sofisticados discursos demagógicos e mesmo populistas. Estes conteúdos, em larga medida, vão tendo uma linha cronológica de fundo. Vemos a poderosa instalação e ficamos a pensar que está tudo perdido. É a visão do espelho. Como chegámos aqui? O que começou como uma necessidade de sobrevivência foi-se transformando numa necessidade de domínio e, finalmente, para fechar o ciclo, tornou-se novamente numa necessidade de sobrevivência. Talvez ela, a natureza, é que conheça de facto as leis. E estas, eventualmente, não sejam passíveis de revelação ou de subversão. A consequência está à porta. Quer dizer, a imagem está efectivamente presente. Isto não é apenas uma imagem. Isto é realmente assim.

No final, levantamo-nos. Provavelmente não saímos como entrámos. O púrpura vai ficando atrás de nós. O dia entretanto caiu. Cá fora, o ar de Outono ainda é respirável. Não sabemos por quanto tempo.

John Akomfrah

Museu Coleção Berardo

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

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John Akomfrah: Purple. Vistas da instalação no Museu Coleção Berardo, Lisboa 2018. © Fotos: David Rato. Cortesia do artista e Museu Coleção Berardo.

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