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Entrevista a Musa paradisiaca

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Antonia Gaeta

Uma conversa a quatro a propósito de Curveball Memory, um projecto expositivo de Musa paradisiaca, com curadoria de Sofia Lemos, patente até ao próximo dia 18 de novembro, na Galeria Municipal do Porto.

Antonia Gaeta: Há um tempo de aclimatação quando se entra nos lugares. Muitas vezes é a luz, outras vezes o cheiro ou as cores, no caso da vossa exposição é o som. O som do projector de slides que passa mas ao qual não corresponde sempre uma imagem ou uma frase, os ecrãs que ficam escuros durante algum tempo, a música das colunas de cada estrado/plataforma que sai de forma alternada. Muitas pausas...

Qual é o vosso entendimento?

Musa paradisiaca: Em Curveball Memory, a pausa é apenas aparente. Na verdade, o tempo da exposição é marcado por um fluxo contínuo de intensidades distintas. Quando o som se transfere de um estrado para outro não desaparece do primeiro, torna-se apenas mais subtil; quando a imagem se transfere de um ecrã para outro, o projector de vídeo não se apaga, continua a emitir luz e tempo; quando as projecções de diapositivos alternam com negro, são as esculturas, continuamente iluminadas que recuperam a atenção; etc. As pausas não são pausas, são momentos de deslocação, de transferência e de transumância entre entidades, qualidades e temporalidades em conexão permanente.

Antonia Gaeta: As vossas esculturas parecem fluídas, fundidas, moles, com algum non sense (raquetes de pingue-pongue ao lado de bolas de basebol). Haverá alguma proximidade com o surrealismo e com a obra A Persistência da Memória de Salvador Dalí?

Musa paradisiaca: Ainda que acreditemos no mal-entendido como força produtiva, este não é esse caso. O segredo bem guardado do Surrealismo — o “inconsciente originário” — não nos interessa de todo. Na Musa paradisiaca não há origem ou hierarquia, mas há uma afirmação ontológica. O “duro”, o “mole” e a “memória”, celebrados pelo Dalí, são contraposições inoperantes na relação com as nossas esculturas. O que importa, no aparente movimento desses objectos de alumínio, é a sua qualidade fotográfica, cromogénea, imagética e não-deformada. Esta condição não configura uma distorção por si só, porque as formas não esticam, não perdem a sua configuração, são apenas capazes de se manifestar ginasticadamente. E é precisamente essa forma de serem outra coisa, sem deixarem de ser o que são, que nos interessa. A haver alteração forma-ser, ela existe sempre na presença do que a antecedeu. É, portanto, na simultaneidade entre memória e acontecimento que este movimento (curveball) se conforma, neste caso, escultoricamente e imageticamente.

Antonia Gaeta:

— A folha deseja ser fumo. — O charuto deseja ser avião. — A bola deseja ser avião.  

— O avião deseja ser chão. — O piloto deseja ser mão.

— O voo deseja ser velocidade.  — A mão deseja ser bola.  Etc. etc.

Como entram estas frases na construção narrativa da exposição? [embora perceba que há uma ligação com as projecções] Como se relacionam com os objectos?

Os objectos e as frases só se relacionam porque são nomeados — escritos na parede —ou projectados?

Musa paradisiaca: A exposição foi construída para que não existisse um ponto de vista vantajoso, sendo que para isso muito contribui o seu formato espacial, em cunha diagonal. A deslocação que daí decorre é sempre incompleta, impreparada e desenquadrada relativamente a qualquer objectivo prévio ao movimento. O facto de os estrados permitirem a permanência no espaço de múltiplas formas e de diferentes tempos, aumenta as possibilidades de relação entre elementos, ampliando ou reduzindo as suas escalas, direcções ou interjeições correlativas. Este é um pensamento silogístico que depende de um curto-circuito na sensibilidade, sem que o choque seja abrupto ou doloroso. Onde as frases são comentários numa linguagem do desejo de transformação, os desenhos são a consumação dessa transformação pelo híbrido ou pelo disfarce, como o queiramos ver. As esculturas colocadas nos estrados, eles próprios teatrais, são uma prática do desejo enquanto prova de movimento, de vida, de sensibilidade e de equiparação.

Antonia Gaeta: Enviaram-me 83 páginas de notas sobre o trabalho da Musa paradisiaca. A vossa colaboração inicia-se em 2010 e os projectos que apresentam seguem-se, de forma continuada, guiados por esta ideia de diálogo e de “parcerias temporárias com entidades de variada competência”.

Qual o significado desta premissa? Ou melhor, como processam e abordam o discursivo e o participativo?

Musa paradisiaca: Curveball Memory é um projecto que começa com a expansão de um filme constituído por episódios filmados consecutivamente em diferentes lugares, como o resultado de diferentes encontros, com ritmos próprios. Tal como as frases projectadas ou os objectos fundidos em alumínio, o filme Mestres da Velocidade (2017) sobrepõe esses encontros, tornando-os contemporâneos, ainda que temporalmente e espacialmente desfasados. Foi precisamente assim que a compositora Clotilde Rosa (1930-2017), com quem colaborámos no filme, viu estes três conjuntos de imagens, enquanto compunha, simultaneamente, as partituras originais que distinguem e temporizam charutos, aviões e pingue-pongue. Via enquanto compunha; via enquanto ouvia; o que não é mesmo que dizer que compunha para o que via ou que via para poder compor. O trabalho da exposição está, para nós, na auscultação deste ritmo e na criação das condições para ouvir; quer aquilo que é obviamente sonoro (composições musicais) ou legível (frases projectadas), quer aquilo que não o é, como no caso dos objectos que se relacionam entre si sobre os estrados, mas também na interferência destes no filme, nas frases e nos desenhos projectados e vice-versa. Esta tentativa de audição — da Clotilde Rosa, da(s) flauta(s), da(s) chave(s), do(s) charuto(s), do(s) avião(ões), da(s) luz(es), etc — em Curveball Memory é uma formulação de diálogo em si, onde os intervenientes se afirmam, conjugam, reformulam ou reanimam sem hierarquia de sentido prévio àquela experiência, da exposição.

Antonia Gaeta: No Programa Público da exposição, Miguel (Ferrão) começa por dizer “Não dizer tudo de uma vez...” e o Eduardo (Guerra) discorda e diz “Nunca confiar em alguém que fale sobre si próprio”. Miguel continua dizendo “É preciso escolher!”;  enquanto Eduardo fala de “Alguma teatralidade...”.

Os dois concordam que o que fazem  — os sujeitos-diálogo — não vos pertence; não pertence a ninguém. Em que consiste este Programa Público e qual o seu tema?

 Musa paradisiaca: Dado que o Programa Público foi também construído com a curadora da exposição, Sofia Lemos, pedimos-lhe que respondesse à pergunta. Gostaríamos que esta fosse uma conversa a quatro.

Sofia Lemos: O programa público desenvolvido em conjunto permanece neste lugar de encontro entre vozes e temporalidades. Foi pensado a partir da auscultação como forma de atenção às concretizações e intensidades dos actos de enunciação. Tal como na monografia lançada pela Galeria Municipal do Porto sobre a Musa paradisiaca, o programa público cruza intervenções com diferentes finalidades e naturezas que conversam em simultâneo com a obra. Convidámos três pensadoras a colaborar connosco que, desde as suas distintas áreas de actuação, têm explorado questões de pertença e estranheza.

Estas sessões, assim designadas pela Musa paradisiaca, coincidem com um momento na sua investigação mais directamente dedicado à experiência dos limites entre linguagem, afasia, desejo e representação. Com a crítica e curadora Filipa Ramos, com quem inauguramos o programa, exploramos através da escuta e do diálogo a relação entre a linguagem — escritura, leitura, oralidade — e a possibilidade de tornar-se outro, imaginar-se outro, e tornar-se animal. Tais possibilidades manifestaram-se também com a escuta performativa de uma performance do poeta e artista visual António Poppe com a Musa paradisiaca. Com a filósofa Fernanda Bernardo, exploramos o alcance hiper‑ético e hiper‑político da transitividade, transferência e simultaneidade no corpo escultórico apresentado em Curveball Memory, obras que já existiram com outras formas, que tiveram outras vidas, e que na Galeria Municipal do Porto se apresentam em processo de rememoração e, concomitantemente, em contínuo devir. Com a compositora Isabel Soveral, finalmente, partimos da sua matriz compositiva para reflectir sobre a musicalidade e estrutura que definem a forma como a Isabel trabalha densidades e texturas sonoras.

Há uma sensação de cumplicidade entre os eventos, que têm na sua origem a natureza conversacional da prática da Musa paradisiaca. As questões que permanecem implícitas no espaço expositivo são assim amplificadas em conjunto, dando origem aos sujeitos-diálogo, de configuração contingencial, definida apenas pelas vivências e testemunhos ali presentes.

Musa paradisiaca

Galeria Municipal do Porto

Antonia Gaeta (Itália, 1978) é Licenciada em Conservação dos Bens Culturais pela Universidade de Bolonha. Mestre em Estudos Curatoriais pela FBAUL e Doutorada em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da UC. Desenvolveu projectos de investigação e exposição com diversas instituições artísticas em Portugal e no estrangeiro e tem textos publicados em catálogos de arte e programas de exposições. Foi coordenadora executiva das representações oficiais portuguesas nas Bienais de Arte de Veneza (edições 2009 e 2011) e de São Paulo (edições 2008 e 2010) para a Direcção-Geral das Artes. Em 2015, foi curadora adjunta do Pavilhão de Angola na 56ª Bienal de Veneza. Desde 2015 desenvolve projectos curatoriais para a colecção de arte bruta Treger/ Saint Silvestre.

 

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Musa paradisiaca. Curveball Memory. Vistas da exposição na Galeria Municipal do Porto. Fotos: Dinis Santos. Cortesia dos artistas e Galeria Municipal do Porto.

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