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Entrevista a Matt Mullican

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Antonia Gaeta

Entrevista conduzida por Antonia Gaeta a Matt Mullican por ocasião da sua exposição What do they feel?

Antonia Gaeta (AG): Vou apresentar-me; considero importante termos uma ideia sumária de quem temos à nossa frente, sobretudo porque acredito que uma pequena introdução pode desvendar alguns pontos ou interesses, em comum, entre o entrevistado e quem entrevista. O meu nome é Antonia Gaeta, sou italiana, vivo em Lisboa desde 2003, sou curadora e trabalho com arte contemporânea e art brut. Tenho um fascínio por códigos de diversa natureza mas também pela investigação psicanalítica dentro da criação artística e recentemente tenho-me dedicado ao estudo de fenómenos mediúnicos e de transe ou perda repentina de consciência.

Matt Mullican (MM): Interessante. E é muito interessante que fales disso porque relaciona-se com o trabalho que tenho desenvolvido na área da performance, desde os anos setenta, como ferramenta para explorar o espaço interior, psicológico e sondar a minha posição estética e existencial. Vou-me apresentar também mas através do meu trabalho e da minha última performance sob hipnose que fiz em Milão, no Hangar Bicocca, e que foi realmente louca. A pessoa (That person), uma entidade eterna e sem género, realizou uma série de acções cuja natureza e duração eram imprevisíveis. Ela movia-se dentro de uma área delimitada que continha vários objectos do quotidiano.

O meu trabalho toca os teus interesses e, embora não esteja directamente relacionado com a arte bruta, porque sei e controlo o que faço, estou na mesma linha criativa e reconheço que muitos processos formais até podem ser semelhantes. A diferença entre mim e um artista brut reside no facto de que consigo identificar o mundo do qual faço parte e que tenho distância, pelo menos acho que tenho distância. 

A este propósito quero contar-te uma história. Em 2004 fiz uma performance em Genebra (Matt Mullican Under Hypnosis: Geneva) e no dia seguinte perguntei à pessoa que me tinha convidado o que achava que o público tinha pensado. A sua resposta foi seca e directa:  Acharam que és autista, o que me deixou totalmente incrédulo porque julgava-me mais próximo da esquizofrenia; a causa da duplicidade e das sensações, mas ele continuou a argumentar dizendo: Não, não, comportaste-te como se tivesses autismo. A partir desse momento comecei a ler mais sobre esse transtorno, falei com médicos e li estudos de especialistas. Este tipo de comportamentos aparecem — embora em escala reduzida — nas minhas performances. Uns meses mais tarde voltei a falar com um curador no meu atelier sobre este tema contando-lhe o que tinha acontecido em Genebra e a sua reacção foi: Sempre achei que eras autista, pensa no teu corpo de trabalho: fazes uma lista do teu trabalho continuamente, tens uma cosmologia, números, cores recorrentes...etc., etc.

Esta conversa deixou-me ainda mais confuso porque o autismo é o oposto de ter distância, de facto não se tem distância; nem poder para a criar. Durante a hipnose vou longe, para frente e para trás e só passado um tempo volto ao normal. É claro que existe uma "lavagem" da psique. Mas sobretudo persistem várias perguntas: estou a falar da natureza da alma? Se é que a alma existe porque pode não existir. E qual a relação entre vida-morte, deus-diabo, paraíso-inferno, palavras?

AG: As antípodas?

MM: Sim e não. São antípodas e aparentemente opostas mas colaboram entre elas no universo. E no meu trabalho há sempre a presença de uma certa poesia envolvida no processo e nas relações: não quero que alguém veja o meu trabalho e diga: percebi! Gostaria que não percebesse. Não tenciono tornar o meu trabalho imperceptível, mas tento explicá-lo sem que seja literal ou imediato ou de fácil divulgação nas redes sociais.

AG: Vou contextualizar um pouco o teu trabalho para não dispersar muito a conversa: pintas, fazes filmes, bandeiras, esculturas, desenhos, néons, vidros, fotografia, caixas de luz, usas uma linguagem não verbal e congregas todo o universo na tua cosmogonia de símbolos, pictogramas e cores para abordar a questão da estrutura do mundo e explorar os aspectos mais herméticos de vida humana. Como preservas tudo junto?

MM: Com a forma. A forma é conteúdo. E depois há o objecto. O meu trabalho é dividido em cinco mundos: o sujeito, a linguagem, a moldura, as palavras e os elementos. Com estas cinco palavras consigo dar a conhecer a minha ideia de relação entre o mundo e sua representação. A parte mais interessante para mim é o sujeito. A forma pode ser o sujeito porque estes cinco elementos existem em tudo. No sujeito e no significado é que reside o meu trabalho. A linguagem, o corpo, o próprio e a alma são a parte mais importante mas também a mais problemática na sua concretização formal. Estou muito envolvido com o significado das coisas e muito menos com a forma das coisas e é por isso que muitos críticos acham que sou surrealista, que é uma falácia. A arte conceptual aponta para a forma e para o sujeito onde a forma é o conteúdo; a linguagem é o conteúdo. Mas tudo isto é racional e grande parte do meu trabalho é irracional porque acredito que o sujeito seja irracional.   

AG: Atrevo-me a relacionar a tua forma de trabalhar com uma das máximas da antiga Grécia inscrita no pronaos do templo de Apolo em Delfos que é Gnothi seauton; "conhece-te a ti mesmo".

MM: Conhece-te a ti mesmo. Muito bom! Gosto, nunca tinha ouvido falar disso. Antes de mais conhecer (to know). Definimos que significa conhecimento e/ou conhecer, que é algo totalmente abstracto. Depois a ti mesmo (your), a mim, o meu, quem tu és, e logo o próprio. É uma grande palavra. Cada uma destas palavras singularmente poderia ser interpretada de variadíssimas maneiras. E claro, tudo faz sentido, é grandioso! Quando vês a figuração e visitas a minha exposição What do they feel? na Galeria Cristina Guerra, encontras corpos de crianças dormindo no chão, são sonhos que se materializam. Podemos falar da natureza da alma. Conhece-te a ti próprio — dizias há pouco... E eu questiono-me: o que é o próprio; a alma? Como se encontra? Acho que o próprio é sentimento, é sentir. Eu sinto o que sou e como quero sentir. A sensação das coisas.

AG:  A sensação das coisas (The feeling of things). Usaste esta frase como título para a tua exposição no Hangar Bicocca. O que me leva a perguntar-te uma quase evidência: usas com regularidade no teu trabalho a palavra feeling. Ou relacionada com os objectos ou com as pessoas. Pode ser a tua sensação e/ou o teu sentimento ou, ainda, a nossa forma de sentir. Porquê esta palavra?

MM: É a última definição, é onde vamos chegar. As pessoas querem sentir e ter esta sensação. Pensa, por exemplo, na sensação de ser rico ou de ser amado ou de amar; as pessoas querem isso e esta sensação — que na realidade é uma vontade — é muito complicada. A sensação das coisas The feeling of things segue outro trabalho: O significado das coisas The meaning of things, um caminho através das sensações das coisas num círculo infinito.

Claes Oldenburg fez um statement, em 1961, onde, entre muitas coisas, diz isso: I am for an art that grows up not knowing it is art at all, an art given the chance of having a starting point of zero. Acho que este ponto zero do qual Oldenburg fala é o que ando a procura e que para mim é o mais interessante.

AG: Que tipo de trabalho apresentas na Galeria Cristina Guerra?

MM: Apresento anatomias, cores recorrentes no meu trabalho: verde para elementos físicos e materiais, azul para a vida quotidiana, amarelo para ideias, preto e branco para a linguagem e para os símbolos, e vermelho para o subjectivo; uma linha entre o objecto e o sujeito, vida e morte. Há um cadáver, uma fotografia de 1964 que é muito importante para mim. Essa fotografia ajuda-me a pensar a forma de projectar sentimentos nas imagens e dar vida a relações que tenho não só com pessoas mas também com as imagens de pessoas. Imagens vivas, imagens mortas, pedras coloridas numa cama com as dimensões de um corpo sem que seja propriamente um corpo mas antes luz reflectida dele.

Ao olhar para ti, neste momento, não te vejo enquanto corpo. Vejo sim a luz reflectida sobre ti e é esta luz que te representa. O que os meus olhos vêem é abstracto. O que o meu cérebro vê és tu. Vemos o mundo através de nós mesmos e acho que isto é visível na exposição como o é também a figuração que é o signo básico — é o outro, a pessoa. É tudo acerca da empatia, das conexões.

AG: Um trabalho em particular — a grande tela com letras — faz-me pensar na Biblioteca de Babel de Jorge Luis Borges, o alfabeto que abre as portas ao mundo: o espaço, o ponto, a vírgula, as 22 letras do alfabeto.

MM: É magia. É a coisa mas próxima da magia que podemos alcançar. Estou seguro disso. Essas letras são desenhadas por mim, são minhas, fazem parte do sistema. E, certamente, o ponto e a vírgula representam o tempo. Muito interessante. 

Matt Mullican

Cristina Guerra Contemporary Art

A exposição está patente até ao próximo dia 16 de novembro.

 

Antonia Gaeta (Itália, 1978) é Licenciada em Conservação dos Bens Culturais pela Universidade de Bolonha. Mestre em Estudos Curatoriais pela FBAUL e Doutorada em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da UC. Desenvolveu projectos de investigação e exposição com diversas instituições artísticas em Portugal e no estrangeiro e tem textos publicados em catálogos de arte e programas de exposições. Foi coordenadora executiva das representações oficiais portuguesas nas Bienais de Arte de Veneza (edições 2009 e 2011) e de São Paulo (edições 2008 e 2010) para a Direcção-Geral das Artes. Em 2015, foi curadora adjunta do Pavilhão de Angola na 56ª Bienal de Veneza. Desde 2015 desenvolve projectos curatoriais para a colecção de arte bruta Treger/ Saint Silvestre.

 

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Matt Mullican. What do they feel?. Vistas gerais da exposição na Cristina Guerra Contemporary Art. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de Cristina Guerra Contemporary Art. 

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