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Bruno Pacheco: Vaivém

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Carlos Vidal

Estar ou participar (palavra neste caso muitíssimo ajustada!) numa exposição de Bruno Pacheco requer sempre uma duplicidade, pelo menos, de situações ou apreensões, ou melhor ainda, diversas tarefas para o espectador: o prosaísmo dos referentes ou cenas (tanto mais intenso quanto mais repetitivo, e de série para série há elementos comuns, corpos humanos, baleias — cetáceos que são mais “ordens” pictóricas do que animais —, rochas, caixas…..), este prosaísmo, como nos “repetitivos” temas de Velázquez (quantos retratos reais pintou?), faz-nos pensar acima de tudo na pintura e suas ordens de gestos, fazer manual (a mão que por vezes aqui aparece, embora sem parecença, antes massa informe de cor) e em seus desdobramentos — conceito central — cromáticos e figurais.

E se falei em “duplicidade”, no início, foi porque uma exposição de Bruno Pacheco é, também ou acima de tudo, uma reflexão sobre a pintura numa história “sem progresso”.

Entretanto, antes de desenvolver o tema, pode dizer-se que se é de Clement Greengerg a ideia de que “não há progresso em arte” (e Bruno partilha esta ideia, a seu modo), o autor desta muito bem intitulada exposição — Vaivém — já não partilhará com o americano a necessidade de só existir pintura em via ou no campo da sua autorreflexividade.

Ora, em dois textos seminais Greenberg vai expor este imperioso “essencialismo”, que o apartará de discípulos ligados à historicização da arte da pintura, como Michael Fried (que dirá que cada época pictórica dará as respostas correspondentes às suas perguntas também epocais) e Rosalind Krauss (que valorizará a vanguarda, em moldes diferentes dos do seu “mestre”): esses textos são Avant-garde and kitsch (1939), importante análise histórica de um tempo crítico (início da Guerra); aqui Greenberg vê a necessidade do artista se desviar da política social e ligar-se à boémia (prolongando quiçá Baudelaire), pois esta é uma fuga ao capitalismo mercantilista posterior ao colapso do mecenato aristocrático — daí uma certa relação entre vanguarda e niilismo (o que Dada e futurismo bem encarnam). Ou seja, há uma certa forma de a arte se preservar da “decadência” (palavra que o Bruno também utiliza), isolando-se dos ideais e requerimentos tanto burgueses quanto revolucionários. Há ainda uma determinada demiurgia não-objectiva (e talvez seja tal princípio que leva o autor a não incluir aqui os seus retratos narrativos de “grupos”) que assim Greenberg descreve, contra o mutante futuro e os seus discípulos previsivelmente “desobedientes”: “O conteúdo deve tanto dissolver-se na forma que a obra de arte ou literária não pode reduzir-se, nem no todo nem em parte, em outra coisa que não ela mesma”.

Tudo isto será repetido em Modernist Painting (1960, portanto mais de 20 anos de “firmeza” neste ponto), mas aqui sob o signo de Kant. Diz Greenberg que toda a arte deve ser autónoma e que Kant foi o primeiro moderno. De facto, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a “autonomia” é a vontade autónoma de a si mesmo conceder as suas leis, sem as reger pela perfeição divina, por exemplo. Aqui, portanto e como é sabido, Greenberg responderá, ou “colaborará” com Kant dizendo que toda a arte deve encontrar o fio da sua especificidade: à literatura o que é da literatura, à pintura o que é da pintura. Mas o que é de uma e de outra? Quem o determina? O autor? E quando é o autor aquele que diz que a sua arte o ultrapassa? Ele, aí, tem de a deixar agir, à sua arte, ou seja, à sua disciplina artística. E se ela o ultrapassa, se ela tem “vontade própria”, é porque age por sucessivos desdobramentos imprevisíveis, irónicos (como diria Bataille, o homo ludens está acima do homo sapiens), mas num jogo de cálculo infinito. Intercambiável.

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Ora neste Vaivém Greenberg está totalmente arredado: Bruno Pacheco mostra a sua pintura, e algumas obras estão na base de trabalhos em progresso e outras datam de 2006/2007, em livros: dir-se-ia que Mallarmé substitui Greenberg, e a arquitectura (quase) substitui a pintura. Com efeito, à maneira de Mallarmé (e devemos encadear estas interpretações como o Bruno encadeia as suas formas), un coup de dés jamais n'abolira le hasard. Exactamente: o acaso não abole o acaso. E agora descreveremos detalhadamente a exposição, a sua presentificação e o modo como a pintura passa da vertical do “cubo branco” (e da tela na parede silenciosa) para a horizontal do livro, que nada diz mas comunica. E se comunica é porque a forma não é todo o conteúdo, mas uma sucessão de possibilidades.

Temos então duas filas ligadas e paralelas de mesas verdes, onduladamente: ligadas, mas uma sobe, outra desce em suaves declives. Tudo foi pensado e desenhado com suficiente antecipação; todas as mesas são ocupadas e os 35 livros (todos com os respectivos títulos) têm em média, ora mais ora menos cerca de 14 pinturas sobre papel; cada livro é lido pelo espectador. A vista geral da exposição revela contrastes entre pinturas e entre pinturas, livros, textos (títulos), e mesas verdes — a aparente neutralidade deste jogo (o “ludens”) perturba-nos e obriga-nos a averiguar a situação, portanto, vistoriar livro a livro.

Os contrastes são estes, entre elementos aparentemente díspares (que uma visão atenta tudo liga), não são os contrastes que eu chamaria de impactantes das pinturas de “grupos” (os exércitos de palhaços ou os Meeting Point de 2011-2012). O “grupo” é referencialmente identificável com facilidade, digamos, homogeneíza as singularidades que muitas vezes se perdem, pois pictorialmente se desagregam. Mas o retrato de “grupo” não poderia estar aqui presente, de facto, pois o que está presente é o mesmo grupo, só que matericamente diferente: o grupo dos livros, a sua instalação (palavra a usar com algum cuidado). Ora, a instalação como nova forma pictórica é descartada pelo autor que, muito certeiramente, dirá que a pintura de hoje é muito semelhante à pintura renascentista, a Giorgione! Curioso, muito curioso, ou coincidência a sublinhar.

Bruno descarta a ruptura numa arte que vem de Cimabue, Giotto, Leonardo, Giorgione, Velázquez, Goya ou Manet (cujo trabalho mnemónico isto mesmo compreendeu mais do que os impressionistas).

Ora o Giorgione do Bruno é o Giorgione de Federico Zuccari tratadista, L’idea de’ pittori, scultori et architetti (Parte 1 e Parte 2, 1607). E porquê Zuccari e Giorgione. Porque lucidamente Zuccari recusou a revolução na sua arte! Conta-se que um dia romano estava Caravaggio, símbolo da revolução na arte da pintura, na Igreja de S. Luís dos Franceses trabalhando nas telas dedicadas a S. Mateus (1600). Obras espantosamente inéditas, menos para Zuccari. O mestre é chamado para contemplar os “caravaggios” e responde: nada aqui vejo que já não vira em Giorgione. Não é importante saber se foi blague ou não, mas Zuccari sabia que a pintura (ou melhor, a sua proveniência: o desenho) ora era natural, ora artificial e poética, ora fantástica. E era tudo.

Tudo o que aqui o Bruno repõe. A variedade destas figurações constrói uma secreta “auto-retrospectiva”. Tudo o que o autor fez, pensou e “como fez” desde 2011-2012, ou 2006, está aqui apresentado. No livro Love for nature uma pintura de uma pedra é sucedida por uma roda (o círculo) dançante de figuras; se a pedra agrega (singularidade) as pessoas estão em estádio de desagregação, e talvez a mediação possa ser mesmo um OVNI que aparece e desaparece, desafiando a relação figura-fundo, como acontece noutros livros com corpos nus sem densidade matérica.

Em Cameo este ou estes corpos, que vemos em vários livros (e a repetição e troca passa por aqui, como forma e narrativa subvertida), gera um fato de surf que pode ser seguido, ou gerar, cogumelos. Há nestas sequências, e isso é o que faz delas seres ou realidades inéditas, improvisação, rigor, ludicidade e, talvez acima de tudo, inevitabilidade. Assim, estes livros são desdobramentos ou variantes subjectivas, sendo que por vezes o “monotema” aparece, em Folding Box por exemplo: a mesma caixa gera formas indefinidamente, cada dobra é forma e estrutura e cada estrutura liga-se a uma sombra colorida. Monotemático, ou seja, de forma repetida centralizada, é também o livro Cacto, onde um cacto (de detalhes subtraídos, ou “não incluídos”, diz o autor) se vê rodeado por um mundo de toques e gestos que geram a paisagem em torno, sempre diferente de pintura para pintura.

Os afectos da violeta são um exercício cromático assaz importante: esta cor expressa a noite, presta-se para tal como poucas outras cores, por isso um mocho é pintado mas, como as cores também são subjectivas e as várias camadas nem tudo “dizem”, o mocho e a noite podem ser acompanhadas de umas laranjeiras e um bouquet de flores. Revelation relaciona OVNIS e dolmens, porque de uma coisa e de outra pouco sabemos.

Como da pintura, pois o “homo ludens” é assertivo na sua dimensão improdutiva. Sabemos que a pintura é um jogo aberto mas não imprevisível. Mas é um jogo. E isso basta.

Bruno Pacheco

Galeria Quadrum

Carlos Vidal. Artista, crítico e professor. Trabalha entre Lisboa e Madrid. Licenciado em Pintura pela FBAUL, onde lecciona Temas da Arte Contemporânea, Pintura, Estudos de Pintura. Doutorado em Pintura com a tese Invisualidade da Pintura: História de uma Obsessão (de Caravaggio a Bruce Nauman), publicada em Portugal e Espanha (2 edições, Brumaria, Madrid). Representado em colecções particulares e institucionais (Museu de Arte Contemporânea-Serralves, Porto; MEIAC, Badajoz; CAV, Coimbra, etc). Publicou recentemente Deus e Caravaggio: A Negação do Claro-Escuro e a Invenção dos Corpos Compactos (1ª edição: 2011; 2ª edição: 2014; duas
edições espanholas: 2016, 2017).

 

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Bruno Pacheco. Vaivém. Vistas gerais da exposição na Galeria Quadrum. Curadoria Bruno Marchand. © Fotos: Bruno Lopes. Cortesia de Galeria Quadrum — Galerias Municipais de Lisboa.

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