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Manuela Marques: Echoes of Nature

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Sara Magno

O Trabalho da Fotografia no Registo da Natureza

De todos os instrumentos feitos pelo homem, nenhum se assemelha melhor a uma parte do seu corpo do que a câmara ao olho. No entanto, não se trata de um desígnio. A câmara é tanto uma cópia do olho como a asa de um pássaro é da de um insecto. Cada uma é um produto de uma evolução independente; se isso aproximou a câmara do olho, não é porque uma tenha imitado a outra, mas porque ambas encontraram os mesmos problemas, e muitas vezes os resolveram da mesma forma.

George Wald, “The Eye and the Camera” [1953]

 

 

 

 

O alento científico e sentimentos como a melancolia poética associados às ilhas dos Açores coexistem num mesmo espectro da representação em Ecos da Natureza. Esta exposição propõe que a natureza do processo fotográfico se encontra do outro lado de uma fronteira ténue que a separa dos fenómenos naturais observados pela própria fotografia. Esta fricção entre o trabalho da fotografia e os fenómenos que esta observa e capta, é constante no trabalho de Manuela Marques; e é também com este foco que a curadora Emília Tavares convida este corpo de trabalho a ocupar três andares do Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa [MNAC]1.

Da mesma forma que a câmara se aproxima do olho humano, como observa o cientista premiado pelo Nobel George Wald, existem muitas outras semelhanças que aproximam o fenómeno fotográfico de diferentes fenómenos naturais. Point de Fuite, Record, Refraction, Replique, ou Surface Sensible, são algumas das obras que podemos encontrar nesta exposição cujos títulos apontam precisamente para essas semelhanças. Estas semelhanças, no entanto, não são resultado de um processo mimético, mas sim de um processo reflexivo onde se levantam certas questões que acompanham a fotografia desde o seu início no século XIX — altura em que se começa também a definir a noção de natureza tal como hoje a entendemos.2

Tendo como palco o arquipélago dos Açores, Manuela Marques parte à descoberta de certos fenómenos naturais particulares deste local, bem como da redescoberta do processo fotográfico e da forma como a fotografia permite estabelecer ligações entre diferentes níveis de realidade atravessando dimensões da vida humana radicalmente opostas como a arte e a ciência.

 

 

Se, por um lado, podemos entender a fotografia de Manuela Marques como fazendo parte de uma investigação científica, aproximando-se do seu estatuto de evidência — documentando vestígios da actividade vulcânica na série fotográfica Bombe ou o emaranhado da estrutura do solo açoriano na série Extraction, registando "objetos de estudo" como cogumelos e tubérculos através do gesto demonstrativo de segurar o "objeto" com as mãos na série Porteuse, ou medindo o movimento da luz solar na série La mesure du soleil — por outro lado, nesta exposição, há imagens que nos levam para um entendimento da fotografia como sendo em si mesma um fenómeno estranho que coexiste lado a lado a um mundo paralelo de duplos fantasmáticos e reflexos enganadores — como nos mostra a série Passage, onde o registo fotográfico de uma marca no solo se torna tanto ou mais relevante do que a misteriosa ausência daquilo que permitiu essa marca, ou a série Réplique que aponta para os pequenos desfasamentos que acontecem nos processos de reprodução revelando o lado estranho da duplicidade das coisas. Ao mesmo tempo, a réplica pode ser entendida enquanto fenómeno sísmico, da mesma forma que a passagem de algo que deixa a marca de uma ausência pode ser entendida como sendo o resultado da destruição que acompanha a atividade natural de um vulcão.

 

 

As séries Record, Explosion e Source são extensões, ou variações, destas duas linhas de observação onde se utiliza o próprio conceito de fotografia como metáfora. Em Record, vemos a captação ampliada de registos sísmicos em papel fumado — uma técnica antiga e descontinuada de registo da atividade sísmica que se pode ainda encontrar nos arquivos de geo-observação dos Açores. Aqui, a superfície sensível do papel fumado pretende fazer uma alusão à superfície sensível da película fotográfica e à forma como a fotografia, tal com um sismógrafo, permite um registo indexical que lhe confere um carácter de «processo científico».

A série Explosion mostra-nos fotografias encontradas em arquivo que registam a erupção do vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial, que durou cerca de dois anos, entre 1957 e 1958, e que foi tema do primeiro direto transmitido na televisão portuguesa. Estas imagens foram levadas para o exterior do arquivo, expostas à luz ambiente, e fotografadas novamente captando os reflexos dessa luz na superfície brilhante do papel fotográfico. É como se essa luz natural fosse em si uma entidade do lugar que ganha corpo ao ser reproduzida sobre uma imagem antiga, desnorteando-se qualquer noção de "cópia" ou "original" associada. Estas imagens propõem uma redefinição da fotografia enquanto objecto científico.

Elas vão ao encontro de uma ideia de verdade confinada ao território da não-evidência, como observa Margarida Medeiros [2012], uma verdade obtida pela ultrapassagem das "rugas de superfície", e que o dispositivo fotográfico permite revelar.

Por sua vez, a série Source destina-se à observação da luz feita a partir do interior do Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores. Isto permite, de uma forma indirecta, apontar para o caráter introspectivo da fotografia que também se presta a captar fenómenos interiores, mais de natureza psicológica do que de natureza física. A estas imagens juntam-se outras como Pleine de Lune ou Point de Fuite onde vemos a figura masculina isolada, misteriosa e introspectiva, numa tentativa de captar aquilo a que se pode chamar o ‘estado de alma’ característico dos Açores: um estado que remete ao transcendentalismo poético de Antero de Quental, ao lado metafísico, e à expressão da angústia de alguém que procura um sentido para a existência.3

 

 

Os três vídeos que encontramos em diferentes momentos da exposição: Vortex, Fusions e Outremer, partem de um registo de observação da natureza tradicionalmente objectivo, ou seja, sem corte ou edição. Captam um remoinho de vento perto da cratera de um vulcão, raios de sol que atravessam as nuvens e uma tempestade que chega do mar, respectivamente. Estes vídeos dão-nos a impressão de que, da mesma forma que uma das primeiras imagens que interessou aos irmãos Lumiére captar foi a imagem dos trabalhadores a saírem da fábrica, aqui podemos ver a clara intenção de captar um certo tipo de trabalho que não está ligado à natureza social humana, mas sim ao trabalho da própria natureza e à forma como este decorre "naturalmente" na linha do tempo.

O jogo reflexivo evocado por estas imagens, no seu conjunto, resulta tanto de uma observação científica como de uma pulsão artística experimental, inscrevendo-se numa tentativa renovada da superação do binómio clássico entre optimismo racionalista/cepticismo empirista. Este jogo, no entanto, não é novo. Está mais próximo das aspirações do romantismo no século XIX4, do que do circulacionismo que prolifera hoje em dia [Steyerl 2014]5. Em Ecos da Natureza estamos, portanto, a reviver o momento em que aquilo que permitiu o optimismo racionalista, ou seja, a separação rígida entre exterior e interior, ou entre sujeito e objecto, dá lugar à dissolução das fronteiras que separam estes conceitos e ao entendimento da natureza como sendo precária, frágil e enganadora, um constante equilíbrio entre prosperidade e catástrofe.6 Esta é uma revelação que nos apanha quase sempre de surpresa da mesma forma que um vulcão, por mais avisados que estejamos de que pode entrar em erupção a qualquer momento, nos pode apanhar desprevenidos.

 

Echoes of Nature 3 © ADF_José Paulo Ruas
Echoes of Nature 36 © ADF_José Paulo Ruas
Echoes of Nature 20 © ADF_José Paulo Ruas
Echoes of Nature 42 © ADF_José Paulo Ruas
Echoes of Nature 23 © ADF_José Paulo Ruas
Echoes of Nature 12 © ADF_José Paulo Ruas (1)

Manuela Marques, Echoes of Nature [2022]. Vistas de Exposição. Fotografia: José Paulo Ruas. Cortesia Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado [MNAC].

 

 

 

 

 

Manuela Marques

 

 

 

MNAC

 

 

 

 

Sara Magno [Lisboa 1983] é investigadora na área de Estudos da Cultura no CECC — Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, da Universidade Católica Portuguesa. Escreveu uma tese de doutoramento com o título Documentality in Contemporary Art: Paraesthetic Strategies in the Works of Salomé Lamas, Jeremy Shaw, and Louis Henderson. Concluiu o mestrado em Comunicação e Arte na Universidade Nova de Lisboa e a licenciatura em História da Arte na Universidade de Lisboa. Actualmente é co-editora da Diffractions, revista interdisciplinar e transcultural dedicada ao estudo da cultura, e editora assistente do Hangar Books.

 

 

 

 

Manuela Marques, Echoes of Nature [2022]. Cortesia Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado [MNAC].

 


Notas:

 

1Apesar de ser já antiga a intenção de trazer o trabalho fotográfico da Manuela Marques ao Museu do Chiado [MNAC], diz Emília Tavares numa visita à exposição, foi unicamente com a parceria com a Temporada Portugal-França 2022 que esta exposição, bem como a publicação de um catálogo que a acompanha, se tornou possível. Manuela Marques  [Tondela, 1959] é uma artista portuguesa que vive e trabalha em Paris, foi vencedora do BES Photo 2011, e a última exposição individual que realizou em Portugal foi na Fundação Calouste Gulbenkian, e em França na cidade de Reims.

 

2Em The Invention of Nature, Andrea Wulf conta-nos a história de Alexander von Humboldt [1769-1859], um naturalista alemão que, entre as suas ideias mais revolucionárias, tinha uma visão radical da natureza: esta é vista como uma força global complexa e interligada ao invés de existir apenas para o uso da humanidade; Humboldt formulou também uma das primeiras teorias que prevê alterações climáticas induzidas pelo homem, atualizando desta forma a ideia de natureza no século XIX. Wolf conta ainda como Humboldt se relacionou com personalidades como Simón Bolívar, Thomas Jefferson, Charles Darwin, Goethe, entre outras, influenciando tanto o pensamento científico como artístico das gerações que se seguiram.

 

3Antero de Quental, um dos principais impulsionadores do modernismo em Portugal, nasceu em São Miguel, nos Açores, em 1842. Foi um poeta e filósofo que a 11 de setembro de 1891 decidiu terminar a sua própria vida num banco de jardim situado por baixo de uma inscrição com a palavra ‘Esperança’ na sua terra natal.

 

4A contraposição à razão pela emoção, à objetividade científica pela subjetividade individual e à observação real dos factos pela imaginação são características do romantismo que têm ecos nesta exposição.

 

5Circulacionismo é um termo de Hito Steyerl para caracterizar a circulação e aceleração das imagens que se acentuou com a chegada da Internet. “Circulationism,” diz-nos Steyerl, “is not about the art of making an image, but of postproducing, launching, and accelerating it” [Steyerl 2014, 37].

 

6“In this great chain of causes and effects” comenta Alexander von Humboldt, já referido aqui numa nota de rodapé anterior, “no single fact can be considered in isolation” [Humboldt in Wolf 2015, 5]. Quando o funcionamento da natureza é entendido como sendo parte de uma grande cadeia de causas e efeitos, a sua vulnerabilidade também se torna óbvia. Este é manifestamente um pensamento partilhado por Manuela Marques nesta exposição, poderá mesmo dizer-se que é a raiz do seu entendimento tanto da fotografia como da natureza.

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