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João Nisa: Primeiras Impressões de uma Paisagem

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Sara Castelo Branco

O que olhamos pela camera obscura não existe como vemos — situa-se distanciado e em inverso1. Observamos a realidade, mas de forma indirecta. Nunca olhada directamente. O observador da camera obscura existe assim numa condição simultaneamente interiorizada que, num mesmo movimento, olha o mundo do exterior dele e centra-se introspectivamente no interior do dispositivo como se estivesse retirado do mundo — ficando por consequência retido num espaço interno, num acto de ver que é desunido do corpo, e que forma uma metafísica de interioridade [Crary, 1993]2. Se a “magia natural” da camera obscura foi operada pela pintura como forma de abeiramento ao realismo tridimensional perspectivista, a exposição Primeiras Impressões de uma Paisagem de João Nisa — na Galeria Zé dos Bois, uma curadoria de Natxo Checa3 — dialoga implicitamente com esta mesma tradição da pintura de paisagem, ou, talvez, com as alusões visuais que moldam o nosso olhar [e o do próprio artista] sobre esta forma de representação pictórica. Apesar da aparente desafectação da exposição, esta existe num movimento tensionado entre o interior e o exterior, a imagem e o som, a duração e o plano, a subjectividade do olhar perante imagens que resistem em serem plenamente pintura, fotografia ou imagens em movimento — emergindo assim através de uma interacção de forças paradoxais

 

 

Actuando sobre uma estrutura arquitectónica convertida em dispositivo óptico, a exposição Primeiras Impressões de uma Paisagem assenta na projecção de seis vídeos filmados no interior do obsoleto Aqueduto das Águas Livres — de onde provinha a água para abastecer Lisboa a partir do séc. XVIII —, partindo da especificidade singular arquitectónica da edificação ao utilizar um dos seus segmentos como uma série de dispositivos alicerçados nas fórmulas da camera obscura4. Os vídeos mostrados aqui derivam de uma concepção estabelecida num rigor particularmente estrutural, decorrendo da filmagem directa de algumas destas imagens, e as suas escalas e enquadramentos sejam definidos pela própria estrutura do Aqueduto. Se todas as imagens codificam relações de poder sobre a visão, enquadrando e modelando os modos de compreender e sentir o espaço, o olhar é nesta exposição moldado por imagens determinadas pelo próprio dispositivo arquitectónico, onde o cineasta toma a imagem conforme esta lhe é dada.

 

 

A ordem na qual o percurso da exposição se desenvolve dispõe as projecções nas várias salas da galeria, estabelecendo um movimento entre o todo e o uno, dado que envolve uma apreensão singular para cada um dos vídeos, mas também uma experiência comum em sucessão que cinge todos. Esta sequência de imagens corresponde à própria ordem fragmentária do local filmado por Nisa, cujas imagens seguem também um percurso crescente de revelação — o de fazer manifestar determinados elementos que gradualmente assomam nas imagens. O que se vê são planos de uma paisagem rural marcada tenuemente pela presença humana, e formada por um terreno com ervas e árvores movidas pelo vento, sendo que a partir do terceiro vídeo despontam elipticamente pequenos acontecimentos nas imagens. Apenas a última projecção se distingue das restantes, sendo vista quando o espectador se vira para sair da última sala, inscrevendo com o seu corpo essa mesma ideia de inversão que conforma a exposição — trata-se de uma imagem auto-referencial que mostra a parede do Aqueduto, ou seja, o dispositivo que dá origem a todas as imagens, num movimento que se vira sobre si mesmo, numa representação dentro da representação. Por outro lado, estas imagens absorvem a textura irregular, envelhecida e densa das paredes do Aqueduto, formando uma imagética fantasmagórica que é também activada por uma envolvência sonora que remete aos diversos elementos procedentes da realidade circundante do Aqueduto, bem como ao som fantasmagórico da água que surge em várias modulações ao longo da instalação. Esta sonoridade projectada dentro da edificação fomenta assim uma abstracção em que o som simultaneamente contacta e não contacta com as imagens. Desta forma, estas projecções convocam aqui a ideia de um diferimento, uma vez que se trata sempre de uma projecção indirecta da realidade [imagética e sonora] — de um existir diáfano à distância, que se inscreve na própria natureza diferida que constituiu o vídeo.

 

 

Em Primeiras Impressões de uma Paisagem, as imagens desenvolvem-se portanto num entendimento onde o espaço se parece com o tempo. Os vídeos são subtilmente atravessados por pequenos movimentos, que se vão produzindo ao longo da duração alargada dos planos fixos, actuando sobre as potencialidades do plano fixo, em que o aparente estaticismo destas paisagens as fazem regressar ao seu carácter fílmico de “arte do tempo”. Neste sentido, esta exposição manifesta-se essencialmente numa experiência temporal, reivindicando a necessidade de um olhar mais persistente, uma vez que o carácter duracional faz as imagens se manifestarem, o que requer outros modos de ver estimulados pela ideia de permanência [do tempo de filmagem e do tempo de quem olha para elas].

 

 

 

 

 

 

 

João Nisa

 

 

 

 

Galeria Zé dos Bois

 

 

 

 

 

 

Sara Castelo Branco [1989, Porto] é doutorada em Arts et Sciences d’Art e Ciências da Comunicação pela Université Paris 1 — Panthéon Sorbonne [Paris] e Universidade Nova de Lisboa [Lisboa], enquanto bolseira da FCT. Investigadora do ICNOVA — Cultura, Mediação e Artes [FCSH-UNL]. Em 

2022, criou o Solarity Prospects — um projecto reflexivo e participativo, composto por uma série de eventos que envolvem plataformas para discussões descentralizadas sobre políticas e dinâmicas ligadas ao sol. Este projecto vai ter uma primeira apresentação na ACUD Macht Neu [Berlim] em 2023. Tem vindo a fazer a curadoria de exposições e ciclos de cinema experimental como Back of My Hand [Carpintarias São Lázaro, Lisboa, 2022], Blinding Light [CRIPTA 474, Turim, 2021], To Film 

With One Hand My Other Hand [Galeria Zé dos Bois, Lisboa, 2021], Under the Ground [Galerias Municipais de Lisboa, Lisboa, 2020] ou Out Off Nature [Arsenal — Institut für Film und Videokunst, Berlim, 2019]. Tem um mestrado em Estudos Artísticos — Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e uma licenciatura em Ciências da Comunicação e da Cultura pela Universidade Lusófona do Porto [ULP]. Na área da investigação e da crítica sobre arte contemporânea portuguesa contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas e catálogos.

 

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

 

 

 

João Nisa, Primeiras Impressões de uma Paisagem (2022). Vistas de Exposição. Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Zé dos Bois.

 


 

Notas:

 

1Baseada num fenómeno da óptica física conhecido desde a Antiguidade, a camera obscura é composta por um compartimento mantido na escuridão, que dispõe de um orifício num dos seus lados; a luz que entra por este orifício projecta na parede oposta uma imagem invertida dos elementos exteriores – sendo que o movimento destes objectos projectados produz uma experiência mais próxima do visionamento de um filme, do que da
observação de uma fotografia estática [Moure, 2015]. Apesar de existirem referências à sua utilização durante várias épocas – tendo sido mencionada por Alhazen, Vitellio, Guillaume de Saint-Cloud, Rober Bacon ou John
Peckham – foi no período renascentista que a câmara obscura teve maior relevância, particularmente com Leonardo Da Vinci nos manuscritos Codex Atlanticus [1452- 1519], e, com Giovanni Baptista della Porta no livro
Magia Naturalis sive de Miraculis Rerum Naturalium [1558], que destacaram a sua utilização na prática artística, dado que fornecia a perspectiva pretendida ao pintor. No século XVII, o orifício convencional da câmara obscura foi substituído por um sistema óptico, baseado numa lente a fim de melhorar a qualidade e a captura das imagens. Foi porém o desenvolvimento da química – quando Nicéphore Niepce introduziu, em 1826, um suporte sensível à luz que fixava a imagem projectada – que possibilitou o aparecimento da câmara fotográfica e da câmara fílmica, cujas designações derivam aliás deste seu antepassado.

 

2CRARY, Jonathan. Techiniques of Observer. On vision and modernity in the nineteenth century. Massachusetts: MIT Press, 1993.

 

3Sendo estas as primeiras impressões, este projecto irá resultar posteriormente na elaboração de vários objectos distintos; sendo que durante o período da exposição haverá igualmente um ciclo de filmes, cuja primeira sessão foi na Cinemateca Portuguesa, e terá continuidade no espaço da ZDB, constituído por obras ligadas ao cinema experimental, e escolhidas por João Nisa para dialogarem com o seu trabalho.

 

4Na origem deste trabalho encontra-se a investigação fotográfica realizada por Diogo Saldanha em torno das semelhanças do Aqueduto com o dispositivo da camera obscura.

 

 

 

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