16 / 22

Entrevista a Marcelo Rezende

o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-05.jpeg
Raphael Fonseca

Marcelo Rezende (São Paulo) é curador e crítico de arte. Foi diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia (2013-2015) e responsável por reorganizar a Bienal de Salvador (2014). Foi um dos editores da Revista Bravo, editor de conteúdo do Programa Cultura e Pensamento, do Ministério da Cultura, e da Revista Cult, na qual atuou como diretor de redação. Foi correspondente internacional da Gazeta Mercantil (1998-2002), em Paris, e repórter para os suplementos Mais! e Ilustrada da Folha de São Paulo (1993-1998). Também foi editor do projeto de publicações da 28a Bienal de Arte de São Paulo (“Em Vivo Contato”). É criador da coleção de ensaios "Situações" (ed. Alameda) e membro da agência Pequeno Comitê (PC). Como autor destacam-se os seus livros “Arno Schmidt” e “Ciência do sonho: A imaginação sem fim do diretor Michel Gondry”. Dentre os seus principais projetos curatoriais estão: "Bienal de Salvador" (Salvador, 2014), “À La Chinoise” (Hong Kong, 2007), “Comunismo da Forma” (São Paulo, 2007; Toronto, 2009), “Ver o Tibet” (Rio de Janeiro e Nova York, 2010), “Estado de Exceção”/SP.

Raphael Fonseca conversou com o curador a propósito da exposição O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul patente no Pavilhão Branco em Lisboa até 15 de janeiro de 2023. A exposição explora o projeto imaginado pelo filósofo e educador português Agostinho da Silva durante os seus anos de exílio no Brasil: um museu dedicado “à capacidade fraternal de entrelaçamento do diverso” numa ordem pós-independências.

 

 

Raphael Fonseca (RF): A exposição O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul parte do pensamento e palavras de Agostinho da Silva. Antes de falarmos da mostra em si, gostaria de perguntar como você tomou conhecimento do autor e de onde surgiu a ideia de desenvolver uma curadoria ao redor de seu pensamento.

 

Marcelo Rezende (MR): Apesar de Agostinho da Silva ter tido um papel extremamente significativo durante seu período de exílio no Brasil [ele esteve ligado a Darcy Ribeiro no processo de criação da Universidade de Brasília, entre outras universidade], foi na Bahia em que ele conseguiu progredir, partindo para a prática com a criação do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade da Bahia [hoje, CEAO-UFBA] em 1959. Agostinho teve uma atuação durante o curto governo Jânio Quadros [presidente do Brasil entre janeiro e agosto de 1961], procurando influenciar a diplomacia brasileira, a orientando em direção à África. Enfim, ele estava elaborando um pensamento já muito arrojado sobre questões de dependência, colonização, e a urgente necessidade de colocar o Brasil no centro de uma reorganização diplomática e política das nações de língua portuguesa — os independentes e os ainda, naquele momento, povos sob o domínio português.

De todo modo, ainda que ele estivesse projetando um futuro, sua figura, obra e pensamento, no Brasil e em Portugal, parece estar fixada no passado. No Brasil, em processo de esquecimento; em Portugal, se tornando um vulto nacional a ser oficialmente celebrado em jubileus comemorativos. Curiosamente, partindo desse ponto de vista, parece haver dois Agostinhos: um em Portugal, um acadêmico muito sério e descrito como um "velho chato"; mas há ainda um outro, no Brasil, com um pensamento e ação radicais, numa espécie de missão, pensando o Sul Global antes mesmo que isso existisse como categoria cultural e política. Foi durante minha estada em Salvador, ainda na direção do Museu de Arte Moderna da Bahia, que passei ter contato com essa memória sobre Agostinho, e foi durante as pesquisas para a realização da 3a Bienal da Bahia que chegamos [a equipe do MAM-BA e da bienal] a esse documento achado nos arquivos locais descrevendo a criação desse museu, o "Museu do Atlântico Sul" [MAS], jamais realizado.

Desde o início, esse documento me pareceu espantoso, por diferentes razões. O MAS trabalha a partir de uma urgência, uma necessidade de contato entre as nações do que Agostinho entendia ser o Novo Equador [hoje, o Sul Global], um bloco geopolítico cruzando Américas, África e Ásia; um bloco formado por nações e culturas em processo de ser exploradas pelo Norte Global. Esse, apenas um dos aspectos do MAS a partir do pensamento de Agostinho. Frente a nosso momento histórico, o MAS se apresenta como um projeto inacabado, sendo ainda capaz de orientar um pensamento sobre o que exatamente significaria uma ordem pós-colonial: de que modo os processos de dominação sobrevivem em esferas locais e globais, por qual razão o Hemisfério Norte se coloca como mediador de todos os processos ditos de decolonização e, ainda, de que modo seria possível decolonizar a imaginação.

E há ainda um outro aspecto: o MAS leva a uma reflexão sobre qual é a função do museu, e o que significa exatamente exibir objetos em nome da normatização social, política, cultural e em defesa de discursos canônicos. Durante meu trabalho na Alemanha, em uma pesquisa sobre os artistas da então Alemanha Oriental [socialista], me foi necessária uma reflexão sobre o museu e a ideia de "exposição": de que modo exibir a função ideológica do objeto, em contraponto a sua função estética? Melhor ainda: como no processo curatorial trabalhar a partir do critério ideológico e não apenas o critério estético? De que maneira lidar com o Modernismo como ideologia, diferenciando mediação e didatismo? Sao muitas as questões...

Ao mesmo tempo, observando os projetos artísticos e expositivos em desenvolvimento hoje, e que se autodefinem como "pós-colonial" e "político", me parece haver a ausência de uma reflexão mais refinada... Pós-colonial, mas como? A partir do conceito de Negritude [Sédar Senghor], o espiritual contra o materialismo, ou Pan-Africanismo [e a ideia de unidade]? Os dois? Como? Feminismo, mas qual? Amy Garvey? Feminismo socialista? Liberal? Sem essa essa reflexão me parece estarmos na iminência de termos essas questões, tão imperativas, convertidas por museus e artistas em um estilo. O beijo de morte do critério estético nos lábios do critério ideológico. Enfim, do ponto de vista curatorial, abrir as portas do MAS em uma serie de exposições definidas por departamentos do Museu do Atlantico Sul me pareceu uma estratégia interessante para se criar um espaço no qual essas questões pudessem ser debatidas em nome de novas praticas sobre a função e o caráter da exposição e do museu como um dispositivo politico-cultural. O que seria de fato um museu pós-colonial? O que seria uma exposição pós-colonial? Quais os critérios? O MAS poderia ser o espaço especulativo em torno dessas questões.

 

RF: Chama-me a atenção na exposição ver que ela conta tanto com materiais de arquivo relativos ao Agostinho, quanto artistas que procedem de diferentes lugares do mundo, mas que, em certa medida, articulam uma certa relação triangular entre o continente africano, Brasil e Portugal. Gostaria de saber mais como se deu o teu processo de pesquisa e criação para realizar essa ponte entre um projeto intelectual de meados do século passado e a produção de arte hoje.

 

MR: Bem, acredito que seja inescapável enfrentar o fato de que o MAS [a exposição] força um ato de imaginação: como seria esse museu? Quais seus códigos, o que, e de que forma exibir uma obra, um documento, um objeto a fim de sustentar o programa original do Museu do Atlântico Sul? O fato de que o MAS nunca foi materializado no passado o torna, naturalmente, uma instituição em potência. Quais potências poderiam então ser trabalhadas curatorialmente? Se tentássemos especular sobre essas perguntas, poderíamos imaginar o seguinte andamento: vindo do programa original, temos essa definição de um museu que se recusa a hierarquizar sua coleção, e essa des-hierarquização deveria ser concretizada nos seus modos de expor. Trata-se de um museu que expõe a cultura e a arte, a partir de recorte geopolítico e de uma posição política clara, a de criar o diálogo e a proximidade entre aqueles sub-representados, os então ausentes, culturalmente massacrados pela hegemonia [também] discursiva do Norte Global. Para Agostinho, representar os sub-representados numa relação entre Portugal, África e Brasil. Seria essa missão algo encerrado, resolvido, neste nosso cenário, nosso século 21, no qual o sistema de arte [museus, Bienais, galerias, etc.], Estados e nações passam a reconhecer efetivamente o que foi anunciado em toda a teoria pós-colonial? Ou essa missão poderia ser compreendida ainda como um objeto em potência? Se aceitarmos que sim, aceitamos que mecanismos de submissão, sub-representação e dominação estão ainda presentes, mas de uma nova forma: sob o disfarce da aceitação. Um exemplo bem simples: o conceito de Arte Global como um elemento constitutivo da Arte Contemporânea após 1989, procurando um espaço sem hegemonias culturais, se contrapondo a uma única e europeia categorização da arte, artistas e seus movimentos. Pois bem. Quem tem o poder de regular os que integram essa narrativa de Arte Global? Quem regula o que é ou não arte contemporânea? O Sul? Não me parece... Essa seria então uma das questões problemáticas do presente que o MAS tem necessariamente que enfrentar. A permanência do conflito nas relações inter-culturais.

Se o conflito permanece, quais formas estéticas esse conflito tem gerado na produção contemporânea? Acredito que todos os artistas participantes do projeto compartilham essa mesma experiência: resolver esteticamente a dimensão do conflito. As resoluções são muitas, diversas, mas todos se colocam como participantes de um "political struggle" que gera uma forma. Nesse sentido, o MAS, com o departamento do Estado do Mundo, procura imaginar de que forma exibir os aspectos ideológicos tanto quanto os estéticos do objeto criado pelo artista. Não é uma tarefa simples, para nenhum dos envolvidos. Muitas vezes, o aspecto ideológico não se resolve esteticamente, e o que era um objeto artístico se transforma em um pobre exercício de agitprop. E, do mesmo modo, na direção oposta. Um objeto se torna bem resolvido esteticamente, mas ideologicamente neutralizado. Uma peça de decoração, enfim. Bom, você pode exibir os quadros de Gustave Courbet como o artista que recusa o romantismo, o academicismo, e guia o realismo na pintura. Mas, você pode também se perguntar, curatorialmente, qual realidade era essa na qual ele participa. Por que, quando ele assume o papel de Delegado para as Artes e integra a Comissão para a Educação durante a Comuna de Paris [1870], Courbet pede o fim de premiações em salões de arte e o fechamento da École des Beaux-Arts? Talvez se possa então desrecalcar o aspecto ideológico de suas pinturas em meio a sua forma estética. Esse seria o Courbet a ser exibido no MAS. Um Courbet desrecalcado. Assim, a pesquisa dos artistas participantes se guiou por essas questões, e sobre de que forma, apesar de todas as suas diferenças, eles conseguiram esse refinado resultado entre os aspectos ideológicos e estéticos, ajudando assim o MAS a realizar suas intenções.

Tomando um dos artistas do grupo para exemplificar essas questões que descrevo, temos a escultora Jacira da Conceição. Uma jovem e tão talentosa artista de Cabo Verde, ela teve uma longa batalha para ser reconhecida como uma artista contemporânea, porque seus trabalhos estavam sendo enquadrados como artesanato [quem define o que e Arte Global?]; suas esculturas procuram a materialização dos elementos comuns entre todas as as diferenças, como o chão que se pisa, e que pertence a todos — independente da origem e classe social; ao mesmo tempo, sua experiência procura ressignificar o espaço e condição das mulheres na história e cultura cabo-verdiana [os aspectos ideológicos] e com uma profunda atenção pelos laços não discutidos entre Brasil e Cabo Verde, que passa por sua experiência em um quilombo no Maranhão [o programa original do MAS]. Tudo contido em suas formas estéticas.

 

RF: Esta é a primeira vez que você colabora com a Jacira, certo? Tendo em mente que alguns dos artistas da exposição estavam na edição que você curou da Bienal da Bahia, queria saber como se dá essa tua longa colaboração com alguns deles - como Juraci Dórea, Luísa Mota, Maxim Malhado, Tuti Minervino e Charbel-joseph H. Boutros

 

 

MR: Precisamente. Essa foi a primeira vez que tive a chance de poder colaborar com a Jacira, cujo trabalho pude conhecer pelo Centro Cultural de Cabo Verde em Lisboa, do mesmo modo que Marcelino Santos; outros nomes, como Marcio Carvalho e Gisela Casimiro & ROD, me foram apresentados pelo diretor das Galerias Municipais de Lisboa, Tobi Maier. Maier tem uma energia quase inesgotável em pesquisar, conhecer e trabalhar com os artistas em Portugal, o que é evidente no programa desenvolvido por ele nas Galerias. Quanto aos outros do grupo, são artistas que têm estado muito próximos de meu trabalho curatorial, eu diria, já há mais de uma década, alguns deles por um período ainda maior. Nesse sentido, eu os tenho acompanhado e eles me acompanham em diferentes projetos. Do ponto de vista da pesquisa, sempre me pareceu um pouco estranho quando muitas vezes o trabalho de um curador, num projeto, se resume a famosa "lista de artistas", que é um pouco um fetiche de exposições em larga escala, como bienais... como se a pesquisa curatorial se resolvesse nisso. O que me interessa é poder estar trabalhando regularmente com artistas, havendo exposição ou não, havendo ou não um projeto específico. Criar, enfim, um diálogo constante, no qual o pensamento de um e de outro vai se revelando. Deste modo, de certa maneira, o próprio pensamento curatorial vai sendo alimentado pelos artistas, e esse diálogo também vai se mostrando presente no trabalho dos próprios artistas. Mas, de todo modo, nunca é um grupo fechado. A experiência é um pouco como as "exposições avalanche" na Rússia soviética dos anos 1920: deve ser continuamente aumentado.

 

RF: Sabendo que você tem vivido os últimos anos na Alemanha — que também passa por um processo de revisão de seus discursos colonialistas, tal qual em Portugal e no mundo como um todo —, fico curioso em saber: como você enxerga as diferenças de propostas e modus operandi entre esse circuito europeu de instituições e aquilo que você pode apreender e experimentar no Brasil? Ou seja - de quais formas o desejo pela "decolonialidade" se opera de maneira contrastante entre esses dois lados do Atlântico?

 

MR: Essa é uma questão extremamente interessante...como você mesmo indica, o que posso te responder tem essa limitação do quanto eu posso acompanhar da cena brasileira. Então, a partir desse contexto, eu diria, bom, tem essa "diferença básica", de início, que é sobre como todo esse processo se opera [a decolonialidade no sistema de arte] nas esferas do colonizador e do colonizado, e como poderíamos problematizar essa diferença, notando talvez que a diferença é repleta de similaridades, e nada é tão básico quanto parece...

Acredito que na Europa há uma grande diferença na reflexão sobre o passado colonial entre as nações que foram potências coloniais [França, Inglaterra, Portugal, Espanha etc.] e outras que tiveram a intenção de ser, mas com uma atuação menos presente [ainda que violenta e exploratória, também], como é o caso da Alemanha. Essas potências coloniais têm vivido desde o pós-Segunda Guerra um conflito permanente na sociedade, pela presença da população imigrante e a reivindicação, por parte desses grupos, de um reconhecimento do capítulo colonial na história nacional; o que é interessante perceber, nesses casos, é de que modo os museus, instituições culturais, permaneceram imunes a esse conflito, e hoje procuram sincronizar suas atuações com essa demanda de reparação feita pela sociedade.

Temos então, como resultado, a presença de artistas e projetos curatoriais que incorporam esse debate nas instituições, com a intenção de tornar a diversidade cultural parte de uma política de Estado, com a presença de profissionais de diferentes origens nas instituições etc. Isso tanto nas antigas potências coloniais quanto na Alemanha. Mas a questão de fundo é: o que isso significa, e o que isso produz? As formas de pensar a cultura tem mudado? Eu diria que não; e, uma das razões, vem do fato de que o pensamento continua colonizado, por assim dizer. Isto é, as instituições e seus profissionais ainda se colocam na posição de reguladores do processo de decolonialidade, determinando de que maneira isso deve se dar, quais os limites etc.; então, para participar desse admirável mundo novo da decolonização, é necessário aceitar essas mesmas regras. O resultado disso, como falamos antes, é o risco de que essa luta [política] se transforme em um estilo: arte decolonial, curadorias decoloniais, etc, como estilo, porque a questão central foi despolitizada; logo, neutralizada. Boas intenções, claro que existem, mas o inferno é repleto de boas intenções, como sabemos.

No caso do Brasil... O Brasil é sempre esse caso de amor complicado, mas que a gente insiste que vai dar certo. A questão da despolitização, da transformação de um debate necessário em estilo se repete lá, e no final nos defrontamos com arte, artistas, curadorias que parecem feitas para serem aceitas pelas regras criadas no Norte Global sobre como o processo decolonial deve ser; enfim, arte para [literalmente] inglês ver. Esse é um risco, um perigo enorme, porque neutraliza uma demanda crucial para restabelecer um projeto brasileiro de nação, para assim poder [como anunciado por Agostinho da Silva em seu Museu do Atlântico Sul] representar o que tem sido até agora sub-representado. O decolonial, pensado a partir do contexto brasileiro, necessitaria colocar no centro da questão de que forma a manutenção da ordem escravocrata foi articulada pelo Brasil independente, e por setores da sociedade brasileira, por exemplo; em uma nação independente que replica a ordem colonial no seu processo de modernização não pode bastar a repetição de ações e discursos em nome do decolonial vindo de outras partes, como se fosse um conceito neutro, aplicado da mesma forma em qualquer parte.

Para te dar um exemplo sobre tudo o que te disse antes: na semana da abertura do "Estado do Mundo" em Lisboa, tivemos entre as visitas, duas oficiais, do governo de Cabo-Verde. No primeiro, organizamos uma visita guiada com o Ministro da Cultura daquele país, que é um artista. No percurso, ele nos disse o quanto o deixava infeliz que todas as vezes em que ele visitava projetos lidando com o decolonial, todo o discurso era sempre em torno do sofrimento, da historizacao do sofrimento, da desigualdade, da exploração, e ele se perguntava por qual razão um artista negro, de uma ex-colônia, não poderia falar da felicidade, da beleza e do futuro, no lugar de apenas estar na posição de reivindicar reparação. Logo, submetido à expectativa europeia sobre o que o discurso decolonial deve ser. Em certo sentido, ele reivindicava um mundo pós-pós-colonial; no mesmo dia, recebemos a Primeira Dama de Cabo-Verde, e ela manifestou uma ideia oposta: as exposições sobre as questões decoloniais deveriam historicizar o drama, o embate, em nome da memória, porque o colonizador, culturalmente falando, faz uso de uma memória seletiva dos fatos, e amnésias de ocasião. O fato é que o Ministro e a Primeira Dama, ainda que em oposição, estão rigorosamente corretos, e a nós (curadores, artistas, instituições) resta o dever de imaginar um campo de trabalho a partir do atrito entre essas perspectivas.

 

RF: Marcelo, agora voltando essa reflexão para a sua prática curatorial e, claro, para as questões existenciais que te interessam — olhar para possibilidades de futuro com esperança ou recodificar os passados traumáticos? O que você julga te interessar mais como pesquisador e curador? Eu suspeitaria que te interessa mais uma dança entre ambos os lados...

 

MR: A ideia da dança me parece excelente. São dois pra cá, dois pra lá, no final. Na verdade, essas questões sobre o passado e o contemporâneo são sempre mais complicadas, menos evidentes do que parecem no início. Quando eu estava na Universidade de São Paulo, nos estudos de filosofia, me lembro de uma das professoras (Olgária Matos) nos explicando que, conceitualmente falando, o passado sempre muda; na verdade não para de mudar nunca, mas o futuro é estático. E por quê? Porque sempre olhamos o passado a partir das nossas lentes do presente, o que muda o nosso entendimento, a nossa compreensão das coisas. O futuro, bem, quando chegarmos no futuro ele será o nosso presente, a gente não o toca jamais... então, essa ideia de progresso, de evolução, quando pensamos na sociedade e nos capítulos da história da arte, é algo à espera de ser problematizado. Muitas vezes, avant-garde implica em dar um passo para trás, e não o contrário. Então, voltamos ao Museu do Atlântico Sul não como um capítulo encerrado, mas como um projeto em potência, para citar um caso, que é a razão de nossa conversa aqui. Do ponto de vista curatorial, me parece hoje urgente imaginar estratégias que possibilitem desdobrar, sempre, as questões que o curatorial pretende tratar. Se essa problematização é ausente, há o risco de cairmos nessa lógica da celebração: celebrar o artista [nas exposições monográficas], celebrar um grupo ou movimento [nas exposições temáticas], celebrar o mercado [nos museus e exposições de arte contemporânea], celebrar o político etc. O curatorial, sem uma pesquisa real alimentada por uma posição crítica, está sempre nesse flerte com a celebração, ainda que isso possa ocorrer de forma involuntária.

 

 

 

O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul

 

Galerias Municipais de Lisboa 

 

 

 

Raphael Fonseca é pesquisador nas áreas de história da arte, crítica, curadoria e educação. Doutor em História e Crítica de Arte pela UERJ. É o primeiro curador associado de arte latino-americana moderna e contemporânea no Denver Art Museum, nos Estados Unidos. Trabalhou como curador do MAC Niterói entre 2017 e 2020. Tem interesse especial pelas relações entre arte, cultura visual e história em suas diversas concepções. A justaposição de diferentes temporalidades e a forma como isso pode suscitar reflexões contemporâneas para o público é de grande importância em sua prática. Entre suas exposições recentes estão Who tells a tale adds a tail [Denver Art Museum, 2022], Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil [Sesc 24 de Maio, 2022], The silence of tired tongues [Framer Framed, Amsterdã, Holanda, 2022], Sweat [Haus der Kunst, Munique, Alemanha, 2021-2022], Vaivém [Centro Cultural Banco do Brasil — São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, 2019-2020], Lost and found [ICA Singapore, 2019] e The sun teaches us that history is not everything [Osage Art Foundation, Hong Kong, 2018].

 

o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-capa
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-04
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-01
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-02-scaled
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-03
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-10
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-11
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-09-scaled
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-08-scaled
o-estado-do-mundo-museu-do-atlantico-sul-galerias-municipais-07

O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul [2022]. Vistas de exposição, Pavilhão Branco. Fotografia: Mercês Tomaz Gomes. Cortesia Galerias Municipais de Lisboa.

 

 

 

 

 

Voltar ao topo