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Entrevista com Ana Anacleto

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José Marmeleira

 

 

José Marmeleira (JM): És licenciada em Artes Plásticas – Escultura, pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa [2000], facto que anunciaria um percurso enquanto artista. Porquê a curadoria?

 

Ana Anacleto (AA): Quando estava a estudar na Faculdade de Belas-Artes [da Universidade de Lisboa] e a desenvolver as minhas investigações na área da escultura, o meu trabalho artístico já tinha muito presente a pesquisa, a investigação. Encontrava-se, também, muito mais ligado a uma preocupação em torno dos mecanismos e dispositivos de apresentação do que às questões mais tradicionais do campo da escultura. Aos poucos fui-me aproximando de certas questões: como se apresenta uma obra? Como se mostra? O que estamos a dizer, quando apresentamos uma peça de uma determinada maneira? Que tipo de discurso podemos produzir a partir da aproximação física entre dois objectos? Como operam esses mecanismos discursivos?

Quando acabei a licenciatura, concorri a um programa de estágios e comecei a trabalhar no Instituto de Arte Contemporânea [IAC]. Fui colaborando e fiquei no IAC até à sua extinção em 2003. Com esta experiência percebi que certas actividades faziam também parte intrinsecamente do meu trabalho artístico: a pesquisa, a reflexão sobre aquilo que se está a produzir, sobre a maneira como se pensa uma exposição, sobre o que se está a construir em termos de discurso a partir da relação entre os objectos. Nessa altura, beneficiei de uma experiência prática directa, ao colaborar na produção e montagem de exposições um bocadinho por todo o país. Depois, quando saí do IAC, comecei a colaborar com o Julião Sarmento e, ao mesmo tempo, iniciei o meu mestrado em estudos curatoriais [na FBAUL/Fundação Calouste Gulbenkian]. Aí percebi, muito claramente, que me interessava pensar as questões da curadoria. Não sabia ainda se para ser curadora, mas certamente a fim de reflectir sobre as estratégias de pensamento que lhe estão associadas.

 

JM: Quais eram as tuas referências exteriores, internacionais, em termos de curadoria? Já as havia? 

 

AA: Sim. Tive a sorte de poder viajar com os meus pais desde cedo e depois sozinha e com amigos. Essas viagens permitiram o acesso aos museus internacionais mais referenciais [tanto a nível da Arte, quanto da História ou da Ciência]. Visitar museus fez sempre parte da minha formação. No entanto, houve um momento muito transformador para mim em 1997: fui, pela primeira vez, à Bienal de Veneza, à Documenta de Kassel [a Documenta X da Catherine David] e ao Skulptur Projekte Münster. Nesse ano, esses três eventos contribuíram para que o meu percurso se fosse encaminhando cada vez mais neste sentido.  

 

JM: Presumo que o trabalho com o Julião Sarmento também tenha sido importante...

 

AA: Absolutamente. Determinante, na formação sobretudo, do meu olhar. Parte do meu dia era passado a trabalhar directamente com ele no atelier. A outra parte era ocupada com actividades ligadas à curadoria. Comecei a fazer curadoria independente nessa altura, em 2003 ou 2004. Foi um processo muito natural. Segui o que eram os meus impulsos, curiosidades e necessidades. Queria perceber determinado tipo de coisas.

 

JM: E gostavas de pensar e mostrar o trabalho dos outros artistas...

 

AA: Claro. Nesse aspecto, a experiência de trabalhar com o Julião foi muito formadora. Ele era também o curador dos seus próprios trabalhos, ainda que trabalhasse com outros curadores. A sua própria forma de trabalhar surgia de questões como: que tipo de vida aqueles objectos vão ter no espaço expositivo? O que vão dizer no espaço expositivo? Eram intrínsecas à sua maneira de trabalhar, às suas metodologias de trabalho, ao seu pensamento. 

 

JM: Começaste, portanto, a fazer curadoria em 2004...

 

AA: Sim, por aí. No início ainda com os colegas da faculdade. Lembro-me que fizemos uma exposição nos jardins do Palácio do Monteiro-Mor, no Lumiar. Fui, entretanto, tendo outras experiências. Mais tarde, fui convidada pelo Museu de Serralves no âmbito da 5ª edição do programa de apoio e lançamento de novos curadores Antena. E realizei, em 2011, uma dessas exposições, no Museu de Arte Contemporânea de Elvas, com obras da colecção de Serralves e da colecção António Cachola. Na sequência do mestrado em estudos curatoriais, também colaborei com estruturas institucionais, ao mesmo tempo que realizava projectos em espaços independentes e escrevia. 

Hugo Canoilas. Cortesia CAV — Centro de Artes Visuais.

 

JM: Como distinguirias a actividade do artista da actividade do curador?

 

AA: Tenho dificuldade em distingui-las. Para mim o trabalho curatorial é intrinsecamente um trabalho autoral, de enorme liberdade, às vezes a raiar a utopia. Haverá outras formas de trabalhar e pensar a curadoria, mas a forma como eu a penso e trabalho situa-se assumidamente nesse território.

 

JM: Há um modelo de exposição que prefiras enquanto curadora?

 

AA: Gosto particularmente das exposições colectivas. Implicam, às vezes, o trabalho com artistas que podem não estar vivos. Ou seja, tenho que trabalhar a partir de obras e não propriamente de artistas. Isso é o que mais gosto de fazer. 

 

JM: Também tens feito muitas exposições apenas com um artista...

 

AA: Sim, muitas exposições individuais também, tanto no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia [MAAT]/Fundação EDP onde fui, entre 2015 e 2018, curadora e coordenadora curatorial, como no Centro de Artes Visuais de Coimbra. No MAAT havia uma tipologia definida. Fiz a curadoria de algumas exposições e, noutros casos, houve um curador externo, convidado. Nessas circunstâncias, os artistas tinham a liberdade de trabalhar com quem queriam. Não tinha de ser obrigatoriamente um curador interno ligado à estrutura do MAAT. 

Em Coimbra, nas colaborações anteriores que tinha tido com o CAV, comecei por pensar exposições colectivas a partir de um determinado assunto que me inquietava ou de um conjunto de obras que, para mim, poderiam construir um discurso. Queria aprender qualquer coisa com esse processo. Quando fui desafiada a conceber uma programação expositiva para dois anos decidi trabalhar noutro sentido. O que não tinha feito tanto até aí eram, de facto, exposições individuais, com a possibilidade de poder mergulhar no trabalho de uma forma mais transversal, de olhar em profundidade para a carreira de um determinado artista. E, eventualmente, de poder trabalhar no sentido de permitir a produção de uma peça nova.

 

JM: Isso aconteceu mais no CAV: Centro de Artes Visuais de Coimbra do que na EDP...

 

AA: Sim. Era um território que queria explorar. Estabelecer essa relação vis a vis com o artista, poder aprofundar um conhecimento sobre o seu trabalho. Trabalhar em diálogo permanente com tempo e não aceleradamente. Prescrutar-lhe a carreira. Isso pressupunha um acompanhamento durante um ou dois anos do trabalho e, como mencionei, a possibilidade de se pensar numa peça nova concebida especificamente para o contexto.

 

JM: Mencionaste que querias aprender algo no e do processo de curadoria. Porquê?

 

AA: Porque os artistas pensam, sobretudo, plasticamente. É uma forma que não é traduzível. Podemos pensar numa questão que possa ser transversal a todas as áreas, isto é, todas as áreas podem pensá-la, mas nas artes visuais isso acontece de uma maneira que para mim é muito inquietante e desafiadora. Trata-se de perceber que há outras formas de pensar, de refletir que não são científicas ou teóricas ou poéticas, embora também possam ser isso tudo. Não têm um nome e têm que ver com outras dimensões da cognição, com muitas outras formas de relação.

 

 

Tiago Baptista. Cortesia CAV — Centro de Artes Visuais.

 

 

 

JM: Como surgiu o Ciclo “Museu das Obsessões” que desenvolveste no Centro de Artes Visuais (CAV) de Coimbra?

 

AA: O Albano da Silva Pereira convidou-me para pensar um programa de exposições para dois anos que acabou por se prolongar devido à pandemia. Comecei a pensar no facto de o Centro de Arte Visuais decorrer dessa instituição anterior que foram os Encontros de Fotografia de Coimbra que, precisamente, fariam 40 anos em 2020. Lembrei-me de algumas exposições que vi no CAV, ao longo dos tempos, e que extravasavam a questão da fotografia e considerei que seria mais interessante pensar a questão da imagem, trabalhar à volta das suas margens e fonteiras. Concebi um ciclo de exposições que reuniu um conjunto de artistas que me interessam, que me desafiam, que me apaixonam, e que me iriam criar dificuldades e obstáculos e desafios e estimular no sentido do trabalho partilhado.  E seleccionei aqueles que, na minha perspectiva, mais directa ou indirectamente, pensam a questão da imagem a partir de modelos que são os seus próprios, idiossincraticamente.

 

JM: Não é um conjunto muito homogéneo em termos geracionais, estéticos, temáticos...

 

A ideia não foi homogeneizar, mas, justamente, trabalhar com as idiossincrasias de cada artista e inscrever as suas reflexões num ciclo. Parti do conceito “Museu das Obsessões” criado pelo Harald Szeemann que albergava esta ideia de transversalidade e liberdade entre as práticas, sem hierarquias. Permitiu-me pensar modelos de apresentação fora daquilo que eram os modelos institucionais, e trabalhar um território mais utópico, ilimitado ...

 

 

Diana Policarpo. Cortesia CAV — Centro de Artes Visuais.

 

 

JM: Os nomes dos artistas já tinham sido pensados antecipadamente?

 

AA: Sim. Assim que defini conceptualmente o ciclo, essa selecção de nomes apareceu logo à partida. A totalidade do programa estava definida antes da primeira inauguração. A ideia era poder trabalhar cada um dos artistas como uma ilha isolada. Isto é, cada exposição era pensada isoladamente, embora em comum entre todas houvesse a questão da imagem. Surgiram de novo uma série de perguntas: como é que o Noé Sendas, ou a Tatiana Macedo, ou os Von Calhau!, ou o Tris Vonna-Michell, ou o Hugo Canoilas ou o Christian Andersson trabalham a questão da imagem? Como é que a Diana Policarpo, ou o Horácio Frutuoso, ou a Ana Santos trabalham a questão da imagem? Como pode a pintura pensar a sua dimensão imagética? Como pode a imagem pensar e estender as dimensões temporais? Como pode o espaço ser um território de pensamento sobre a imagem?

 

 

Ana Santos. Cortesia CAV — Centro de Artes Visuais.

 

 

 

JM: Que balanço fazes do ciclo em termos de trabalho com o Centro de Artes Visuais?

 

AA: Trabalhar com o CAV foi extraordinário. Tinha feito lá uma exposição com parte da colecção da Fundação Calouste Gulbenkian e outra exposição em co-curadoria com o Delfim Sardo. Sabia muito bem com que estrutura e recursos contava. A equipa é pequeníssima, mas muito dedicada e profissional. Isso permitiu sempre uma relação de enorme cumplicidade. O trabalho formativo que desenvolvem paralelamente às exposições, com as escolas e os ateliers para crianças é absolutamente necessário e acredito que estrutural para a formação de novos públicos.

 

JM: Imagino também que te tenhas confrontado com uma realidade que a escritora e dramaturga Eduarda Dionísio assinala no livro Portugal: 20 anos de democracia [1993]1 e que parece persistir até hoje: a macrocefalia cultural de Lisboa e do Porto...

 

AA: Surpreendentemente, a expectativa das instituições que existem, por exemplo, fora de Lisboa é a de que venham pessoas de Lisboa ver as exposições. Há uma valorização daquele público especialista dos macrocentros que são Lisboa e Porto. Isto para mim é bastante incompreensível. 

Coimbra constitui uma situação particular. Desde sempre teve produção cultural e consumos culturais. Mesmo durante o período da ditadura era uma cidade culturalmente activa. Sendo uma cidade universitária por excelência, pensaríamos todos que haveria mais massa crítica, mais curiosidade natural, mais interesse por parte dos jovens. Na verdade, fui sentindo que é uma cidade bastante conservadora, que mantém os seus pilares conservadores desde os tempos da ditadura. A reabertura do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, o nascimento do CAV, em 2003, provocaram um ressurgimento cultural tanto ao nível da produção como da recepção. Ora, parece-me que esse ressurgimento se tem vindo a fragilizar. E é pena porque, sobretudo, com a actividade do Colégio das Artes, em particular no âmbito dos seus cursos de mestrado e doutoramento, algo devia ter mudado. Onde estão esses alunos? Porque não vão às exposições? Surpreende-me ...

 

JM: Volto ao teu trabalho de três anos no Centro de Artes visuais. O que retiraste dessa experiência para tua actividade enquanto curadora?

 

AA: Ainda estou reflectir sobre ela e, ao mesmo tempo, já estou envolvida noutras coisas. Diria que me encontro num processo de passagem. Mas durante esses três anos de trabalho houve uma série de coisas que fui ganhando, apetências que acrescentaram algo para lá da prática curatorial. Refiro-me às relações com os artistas e à forma como se constroem do ponto de vista da cumplicidade e da confiança. Isso foi muito interessante. Poder aprofundar essas ferramentas de sociabilização, esses encontros, a empatia. E depois uma reflexão, a cada momento, sempre com a convicção de que cada exposição que apresentas é a melhor que podias fazer. Sempre com o sentimento de que te entregaste ao trabalho e aos artistas e que, da parte dos artistas, também houve essa entrega. Se não for para nos enriquecer, para aprendermos ou descobrirmos coisas novas em nós, não vale a pena.

 

 

Mariana Caló e Francisco Queimadela. Cortesia CAV — Centro de Artes Visuais.

 

 

Ana Anacleto

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

 

 

O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.

 

 

Horácio Frutuoso
Christian Andersson
Pedro Henriques
Tris Vonna-Michell
Tatiana Macedo
Von Calhau!
Noé Sendas
Hugo Canoilas
VERTIGO
SPECTRUM
Henrique Pavão
Catarina de Oliveira
Ana de Almeida
Catarina Botelho
Bernardo Simões Correia

 

Horácio Frutuoso, Christian Andersson, Pedro Henriques, Tris Vonna-Michell, Tatiana Macedo, Von Calhau!, Noé Sendas, Hugo Canoilas, vista de exposição de VERTIGO, vista de exposição de SPECTRUM, Henrique Pavão, Catarina de Oliveira, Ana de Almeida, Catarina Botelho, Bernardo Simões Correia. Cortesia CAV — Centro de Artes Visuais.

 


Sara & André. Cortesia CAV — Centro de Artes Visuais.


 

Nota:

 

1«Práticas culturais» in REIS, António(coord.). Portugal: 20 anos de democracia. Lisboa : Temas e Debates, 1996, onde traça uma evolução das práticas culturais em Portugal desde a Revolução do 25 de Abril até 1993.

 

 

 

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