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Jonathas de Andrade: Olho – Faísca

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Catarina Rosendo

 

A rua e o desconhecido como lugar de criação

 

 

Olho-Faísca é a primeira grande exposição de Jonathas de Andrade (Maceió, Brasil, 1982) em Portugal e uma oportunidade para ver uma selecção de algumas das obras mais significativas deste artista que, em 2022, representou o Brasil na Bienal de Veneza. Fotografia, filme, vídeo, escultura e instalação são alguns dos meios que Andrade usa para trabalhar relações de poder, classe, raça e etnia, por vezes articulando imagens e textos na exploração do máximo efeito gráfico e comunicacional. A sua pesquisa assenta nos legados coloniais que auxiliam o desvendar dos mecanismos implicados na formação cultural da identidade do “homem nordestino” e da própria ideia de Brasil, implicando um essencial envolvimento de diversas comunidades ligadas às tradições nordestinas, à ruralidade e aos trabalhos de rua e averiguando o potencial da arte enquanto catalisador da mudança social. A apropriação de metodologias ligadas à antropologia e ao cinema documental, o diálogo e a negociação com os vários intervenientes na constituição das suas obras, a consciência das múltiplas leituras que a sua obra pode desencadear no público, e a mistura entre ficção e realidade servem a permanente reorganização da maneira de ver o mundo que o seu trabalho se propõe ser. A exposição, com curadoria de João Mourão e Luís Silva, procura realçar uma outra camada habitualmente presente no universo temático do artista mas poucas vezes abordada: a do homoerotismo masculino que perpassa as suas micro-narrativas assentes no encontro casual e no desejo clandestino, e que ajudam a situar sem ambiguidade o “lugar de fala” do artista no complexo contexto sociopolítico em que o Brasil tem estado mergulhado nos últimos anos. 

 

Catarina Rosendo (CR): Já tinhas feito uma exposição em Portugal, na Kunsthalle Lissabon, em 2013, mas esta é a primeira vez que apresentas um conjunto tão abrangente de trabalhos. Como foi pensar esta exposição para Lisboa?

 

Jonathas de Andrade (JA): É uma exposição muito especial. Celebra dez anos da obra comissionada para a Kunsthalle Lissabon, Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste. Ela veio a ser crucial no meu trabalho, porque a partir daí comecei a usar esse título, emprestado de um museu que existe, para questionar as contradições relacionadas à identidade, ao regionalismo, a relação entre o institucional, a própria história e uma espécie de romantismo com o passado colonial. Esta exposição trata também essas questões, mas aproxima-se mais de uma erótica que sempre esteve presente, aqui e ali, no meu trabalho e que nunca foi tomado como um assunto em si. 

 

CR: Nem sempre as obras aqui incluídas convocaram esse discurso tão directamente associado ao olhar gay, à homoerótica masculina, etc., nomeadamente em exposições anteriores e noutros contextos. De que forma é que tu e os curadores (João Mourão e Luís Silva) trabalharam essas questões?

 

JA: É um sinal dos tempos. Eu penso a ambiguidade como uma ferramenta, uma estratégia, um potencializador do meu trabalho. Sempre procurei combinar assuntos, olhares, e replicar a minha própria experiência de corpo. Minhas obras, vindas da cultura machista e homofóbica que é a brasileira e a dominante no mundo todo, sempre tomaram como estratégia serem e não serem sobre isso. Elas atravessam questões políticas e sociais e também o meu próprio corpo, um corpo que é desafiado, ameaçado, mas também movido pelo desejo. E falar disso explicitamente é tanto uma coragem que me desafia, me desconcerta e me desconstrói, como algo que é lançado para o público de formas às vezes mais explícitas, às vezes mais subliminares. 

No caso dos Cartazes do Museu do Homem do Nordeste, a ideia era levar o nome sexista do museu original ao limite de ser o museu da masculinidade e problematizar isso, através de um dos estereótipos do Nordeste, o trabalhador braçal, invisibilizado, mas que emana essa masculinidade que é tão exaltada no machismo dessa região. Levar esse machismo ao homoerotismo explicita contradições do museu original mas também desse museu segundo que é o meu, porque me desafia a encarar esses olhares da rua, uma coisa que eu aprendi desde criança a esconder, a evitar. Enfrentar o medo de receber um não homofóbico, agressivo, foi um processo bastante biográfico, e bastante intenso. Então essa peça é sobre o Nordeste, sobre o Brasil, sobre várias questões regionais, identitárias, sexuais, de género, mas é também muito pessoal. 

 

CR: Que relações é que estes cartazes estabelecem com outros projectos do teu Museu do homem do Nordeste, nomeadamente o projecto Caravana, que aglutina outras obras tuas e a participação directa de pessoas sem um acesso imediato a propostas artísticas contemporâneas? 

 

JA: O projecto Caravana tem a ver com sentir que estava a trabalhar sobre e a partir daquele lugar, o Nordeste brasileiro e o Brasil, mas a expor muito mais em São Paulo, o grande centro económico do Brasil, e fora do país. Então consegui um financiamento do governo de Pernambuco para uma itinerância das minhas obras, que teve um fôlego mais popular. A Caravana incluía obras como Educação para adultos, 40 nego bom é um real, e filmes como O caseiro, que é feito a partir de um filme histórico do Gilberto Freyre. Para evitar questões de seguros e condições de temperatura e de humidade, criámos cópias que pudessem ser mostradas em corredores de escolas, por exemplo, e os cartazes foram impressos em tecido para serem pendurados nas árvores. Criámos uma experiência muito mais espontânea, em que tocar nas obras podia não ser uma grande questão, e pedagógica, expandindo esse Museu do Homem do Nordeste para uma coisa para além dessa paródia do museu original.

Muitos museus chegam apenas a circuitos muito específicos, acabam tendo um público mais elitizado e urbano, e a relação dos grandes museus com o acesso por parte de classes com menor poder aquisitivo é um grande desafio. As escolas públicas são um caminho para chegar a isso e “Caravana” foi uma tentativa de trazer para mais perto esse público, de ver esse público se vendo, de perceber como a arte contemporânea é sentida por um público que não a tem como parte do seu quotidiano. 

 

CR: E qual é a relação que o verdadeiro Museu do Homem do Nordeste, no Recife, tem com este teu trabalho? 

 

JA: Num primeiro momento fiz o trabalho sem o comunicar, sem pedir uma espécie de licença. Para mim era mais potente esse Museu aparecer de supetão, como uma espécie de duplo, de fake. Eu queria que o Museu estranhasse uma imagem de si próprio. De repente ele está existindo há trinta anos, olha para a rua e encontra alguém que é igual a ele, mas com um cabelo diferente... dá uma distorção. Na hora que reconhece a diferença, ele pode olhar para si. Então pensava muito mais essa conversa como uma conversa histórica com o legado do Gilberto Freyre, uma conversa entre entidades históricas.

Num segundo momento, quando fiz a exposição no Museu de Arte do Rio em 2015, os curadores Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz quiseram incluir peças do Museu do Homem do Nordeste e eu tive uma reunião com as pessoas do museu. Eles riram e disseram, “Então é a reunião do Museu do Homem do Nordeste com o Museu do Homem do Nordeste?” e eu disse, “Mais ou menos, sim.” E foi muito legal, ver o museu com espírito para esse diálogo, que era um diálogo artístico, de missões, de legados, que repensava a imagem institucional. Senti o museu aberto. 

 

CR: Os Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste contêm, para além dos próprios cartazes, que em termos visuais são a parte mais impactante da obra, dois outros dispositivos, mais discretos, referentes a um anúncio nos classificados do jornal para escolher as pessoas a serem fotografadas e uma amostra do casting telefónico que daí resulta. No entanto, as pessoas que estão representadas nos cartazes foram interpeladas na rua. 

 

JA: Os classificados foram um ponto de partida. Deles surgiram conversas por telefone de possíveis interessados nesse cartaz. Geralmente eu recebia telefonemas muito cedo na manhã, quando os trabalhadores estavam indo para o trabalho, e fui me dando conta de que as pessoas queriam era saber quanto iriam ganhar. O cenário era óbvio: pessoas com subempregos, com empregos que pagam mal numa economia que explora uma classe que não teve acesso a educação, a moradia. Isso é um eco desse Brasil-colónia, de uma população que vem de um processo de escravização e de não adaptação para um sistema mais igualitário. O projecto fala sobre isso mas não poderia se aproveitar disso. Eu me senti desconfortável, eticamente. Achei que não cabia fazer esses encontros com quem estava precisando de emprego. Abandonei essa ideia, mas ela virou uma documentação ficcionada que sugere que tudo partiu dali, desse chamado. 

As fotografias acontecem encontrando os homens na rua, trabalhando ou voltando do trabalho, “Você gostaria de aparecer nos cartazes do museu do homem do nordeste?” E aí teve toda uma negociação, uma construção de como a imagem acontece, “Olha para a câmara com essa confiança”. A minha vontade era fazer do desejo uma metodologia desse museu fictício. Esse olhar, junto com o texto das fotos, dá um curto-circuito por conta da pretensão de neutralidade dos olhares institucionais, como que vulgarizando, maculando um nome protegido historicamente. Para mim isso era um barato, porque o próprio Gilberto Freyre abordou o papel da sexualidade na formação do Brasil e eu queria que a arte fosse esse lugar da ousadia.

Anos depois, a gente salta para uma espécie de pós-apocalipse que é o Brasil de Bolsonaro, e tudo endureceu, a extrema direita ganhou muita auto-estima. Deixou de ter Ministério da Cultura, os direitos trabalhistas foram esvaziados, as populações mais frágeis foram deixadas de lado e os indígenas estão morrendo de fome. Nesse cenário, definir de onde cada um fala passou a ser uma necessidade. Como ser histórico que sou, eu falo a partir de um lugar cheio de contradições e fui entendendo que não queria que a minha ambiguidade fosse mal interpretada, como se pertencesse a uma geração que ainda não conseguiu sair do armário. Passei a fazer projectos que explicitassem o desejo como assunto, como Achados e Perdidos, que parte de sungas encontradas em vestiários e que eu vinha coleccionando sem saber como falar sobre isso sem ser explícito demais ou com o tipo de ambiguidade social que eu gosto. 

 

 

CR: Os expositores desta obra foram feitos por escultores populares que trabalham o barro, certo? 

 

JA: Sim. São artesãos da cidade de Tracunhaém, no Recife, com uma tradição de panelas, potes, santos, presépios em tamanho real, tudo em barro. Os tempos de secagem são longos e isso implicou toda uma conversa com eles, técnica e não só, sobre aquelas peças tão diferentes das que eles habitualmente faziam. Foi muito interessante. 

 

CR: Na tua obra incorporas muitas vezes o trabalho, ou os ofícios, de outras pessoas, sempre do sexo masculino. Nos Cartazes é o trabalhador de rua, em Suar a Camisa as profissões mais desconsideradas socialmente e mais duras, no filme O Peixe são os pescadores. Como é trabalhar a partir do trabalho destes outros trabalhadores? 

 

JA: Olha, é tão espontâneo... São processos que eu fui entendendo ao longo dos vários projectos que fui fazendo e que formam uma ideia de comunidade. Por um lado, tenho amigos designers, arquitectos, artistas que colaboram comigo. Depois há os artesãos, os marceneiros, os trabalhadores da matéria que pertencem aos grandes circuitos dos fazeres manuais, das grandes sabedorias. Num outro nível, há outras comunidades com quem já trabalhei, os moradores de rua, uma comunidade de surdos no interior do Piauí, a comunidade Caiapó... Estes processos são pretexto para encontros de uma intensidade gigante, que possibilita uma experiência subjectiva, sensorial, emocional, afectiva, que me transforma. Essa energia, eu tento que esses trabalhos a carreguem para os museus e para as colecções para onde vão. E também para as comunidades com que trabalho. Ver as comunidades dos moradores de rua, ou dos surdos, ou as mulheres caiapó, vendo as suas próprias imagens é de uma força gigante.

Por outro lado, os trabalhos manuais, tradicionais, que atravessam gerações, me interessam muito, são manifestações da cultura que tocam em questões de identidade regional e de mitificações da ideia de Brasil. Repensar o que é o Nordeste é uma coisa que me interessa. Faço isso através do masculino, esse masculino destrutivo implicado em projectos de extractivismo financeiro, urbano e ambiental, mas também o masculino que me embaraça do lado afectivo, através do desejo, por conta do desconforto da ameaça.

Foi a partir de Educação para Adultos [de 2010], que eu ganhei um fôlego para falar sobre o social a partir do masculino. “2 em 1”, que é sobre fazer duas camas de solteiro virar uma cama de casal, vem com essa metáfora de construção passo-a-passo de uma relação amorosa. Aí são dois marceneiros e a peça é como uma aula de marcenaria, um do it yourself. Em Achados e Perdidos tem os artesãos, Suar a Camisa, além de toda uma parte gráfica que sempre me interessa, que está nos Cartazes também, resulta de ter começado a trocar camisetas com os trabalhadores que encontrava na rua. Interpelava eles voltando ou indo para o trabalho, e a gente falava disso através da camiseta, do meu trabalho enquanto artista, do trabalho dele como empregado, alguém que trabalhava para um negócio, ou para uma fábrica, ou para um serviço qualquer, de entregas, de venda de coco, no posto de gasolina, mecânicos, carteiros...

 

CR: Pessoas cujo trabalho é na rua, que andam na rua o dia todo. 

 

JA: Pessoas que fazem essa paisagem da rua, mas são invisibilizadas por essa economia bastante informal ou precária. As camisetas falavam sobre a sujeira e o suor, e tornavam aquela invisibilização uma paisagem potente sobre uma economia atravessada pelo suor e pelo corpo que é ausência e desejo, criando também aí uma perturbação, porque reunir essas camisetas era um coleccionismo muito particular, digamos assim. A peça sobrepunha desejo e política, e essa junção é interessante, porque é como a vida se dá, a gente é atravessada por relações que implicam poderes e contradições o tempo todo. Eu me sinto atravessado, todo o tempo, pelo desejo, pelo magnetismo dos olhares e pelos desafios que daí vêm. Um dos estereótipos de brasilidade é o da sensualidade, do corpo, do calor, do carnaval. É o Brasil sexualizado, o que é problemático, redutor, mas é também um poder, uma força. Encarar de frente esses estereótipos, era algo que eu queria explorar. 

Os curadores me convidaram a sair do terreno da ambiguidade e mostrar a potência colectiva desses trabalhos. De sala para sala, cada um deles fala de coisas diferentes, mas tem uma unidade que é esse pulso do desejo e da política, ou simplesmente do desejo e de uma intimidade biográfica. “Olho-Faísca”, a peça nova, é uma colecção de cuecas de amantes que eu tive, é a peça mais pessoal, mas quem está ali não sou eu. Este é um passo novo para mim, num Brasil que tem, agora, pouco espaço para a ambiguidade, politicamente falando. E acho que é importante experimentar esse exercício de transparência, nem que seja para voltar para os terrenos que eu já passei e ir em outro lugar. 

 

 

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CR: O filme O Peixe é um trabalho um pouco diferente, atípico, dos outros mostrados na exposição, apesar de recorrer a dispositivos comuns a O Levante e Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste, que é misturar ficção e realidade e tornar essas duas dimensões indistintas. Neste filme, o afagar dos peixes pelos pescadores parece um acto de amor, mas a folha de sala diz-nos que aquelas peixes são afagados até morrerem nos braços dos pescadores. São imagens muito íntimas que estão no limite entre o cuidar e o destruir, entre o amor e a violência, suspensas na indefinição. Correspondem a um momento de tensão e apontam para uma ambiguidade muito sugestiva. 

 

JA: É isso tudo. O filme O Peixe é um projecto que equilibrou de maneira muito particular a relação entre erotismo e comentário social, identitário. Há uma ambiguidade limite, sim, porque eu estava pensando sobre tradições inventadas a partir de forças que reconhecia na cultura. Queria imaginar o gestual que molda os corpos através do fazer, da vida, do trabalho. Sonhei com essa situação anos atrás, a de um peixe a ser abraçado, e demorei até entender como realizar isso. Propus a um grupo de pescadores que abraçassem um peixe pela primeira vez nas suas vidas e trabalhei com dez deles que toparam fazer isso. O filme é realmente ambíguo entre ficção e realidade, pois não teve ensaio. Então passa a ser um documento da primeira vez que aquele pescador abraça um peixe. É documental, mas a maneira de filmar se inspira no cinema etnográfico de Jean Rouch e no modo como o seu cinema-verdade pretende documentar rituais de forma neutra e passiva mas, na realidade, propõe situações que as comunidades fazem perante a câmara. É nítida a explosão de força que assim acontece. Inspirado nesse cinema, propus o que eles iriam fazer e trouxe a estética do cinema etnográfico, o uso da película de 16 mm, a maneira documental de filmar daquela época. Construi essa história em repetição, fazendo com que o filme mesmo fosse uma permanência desse ritual. Na hora que o filme não pára e os rituais são feitos da repetição, ele passa a existir. 

Eu nunca tinha experimentado uma reverberação tão grande num projecto de arte. Há uma contradição entre um gesto romântico e a violência, e há o erotismo dessa metáfora da devoração, uma devoração que é da fome e do desejo mas é também da violência. Mas só depois é que eu entendi, pois tive essa reacção de muitas pessoas, que a relação entre amor e morte, entre romantismo e perversidade ou dominação, é uma metáfora de relações abusivas, tóxicas, de machismo. O filme foi estreado na Bienal de São Paulo, em 2016, e nos primeiros dias fiquei na sala sentindo a temperatura do público. Uma mulher saiu chorando e perguntou se eu era o autor. Ela me abraçou e disse “eu fui violentada numa relação e para mim esse filme é absolutamente sobre isso”. Claro, fazia muito sentido, começa com um abraço, termina com a morte... 

 

CR: Além disso, o filme convoca também a acção predatória dos humanos sobre os animais. 

 

JA: Para mim, o filme era isso. O projecto lembra o quanto somos espécie, o quanto somos animal. A grande contradição que a gente vive historicamente é esse colapso da natureza, de que somos responsáveis. Se a acção humana no planeta é de destruição e transformação, ao mesmo tempo a gente não consegue articular isso. Temos empatia para com o sofrimento animal e terceirizamos a morte, porque adoramos comer carne e isso é a nossa existência histórica enquanto espécie. Ser humano é também sentir amor, sentir compaixão. O filme explicita uma contradição inevitável e entra no coração dessas questões muito sensíveis. Num outro nível, há também as pessoas que olham o artista como responsável pela morte daqueles peixes, pela exploração da imagem do animal, e eu tive também de parar e pensar nisso. 

 

CR: Esse é uma problema interessante: como abordar estas questões sem de algum modo cair no gesto, que pode ser abusivo, de as mostrar? 

 

JA: É muito delicado, porque eu passei a entender a dimensão pública do que estou fazendo e de mim mesmo enquanto alguém que vai receber essas críticas, ou processar elas. É uma grande oportunidade de crescer, me adaptar, me transformar e reafirmar o que é o papel da arte. Escolhi ser artista porque é um lugar onde eu cresço e me emociono, que me desafia. É também onde lanço os meus sonhos e as minhas inspirações, onde repenso minhas responsabilidades e meus delírios. Batalho por esse ser um lugar possível, apesar dessas questões tão cruciais de quem está vivo nesse momento histórico tão perverso. 

 

CR: Para a tua obra O Levante, inventaste uma “1.ª Corrida de Carroças no Centro da Cidade do Recife”. O vídeo parte de uma ficção que se transforma em realidade. É como se o teu trabalho, ao provocar uma acção, tivesse esse poder de catalisar a mudança. Gostava que falasses desse processo, como foi lidar com a Prefeitura do Recife e negociar a situação com os carroceiros que fazem parte da obra. 

 

JA: O Recife é uma cidade que contém milhões de pessoas, com uma história e uma complexidade urbana que carregam o passado rural da região, as contradições sociais trazidas pela cultura do campo: o cavalo, o plantio, a relação com os animais. Os próprios bairros são semi-rurais, tem carroças passando levando mercadorias, carregando coisas. Tem uma beleza incrível nessa paisagem sonora, o barulho da pata do cavalo que passa no meio de uma conversa em qualquer lugar ou, quando a carroça está fazendo uma manobra, o caos e o trânsito que isso cria. Mas há também a herança de uma história de subdesenvolvimento e de falta de oportunidades, porque a cidade que deveria ser para todos não o é. As carroças estão ali, convivendo com os carros, mas oficialmente são proibidas por uma lei que autorizou a remoção dos carroceiros para o interior do estado. Essa lei baseava-se nos maus-tratos animais e eu achei isso muito perverso, porque usava uma pauta muito cara aos cidadãos para, na verdade, fazer uma higienização social. Essa é a altura do Brasil da Copa do Mundo, das Olimpíadas, tinha toda uma vontade de maquiar os problemas nacionais. 

Queria fazer um projecto com os carroceiros, e pensei nessa situação: fazer um filme que tinha uma cena que era uma corrida de carroças no centro da cidade. Consegui uma autorização da Prefeitura, porque, entendido como ficção, era possível: se é um filme, é arte; se é arte, é ficção; se não é verdade, pode ser feito. A produção foi muito trabalhosa porque envolvia muitas delicadezas, nãos-ditos. Eu não podia falar que a motivação maior não era o filme mas a corrida, que era o filme que fazia a corrida existir, mas consegui apoio de uma série de pessoas que entendia, apoios silenciosos. Com os carroceiros, distribui panfletos que anunciavam essa corrida e fiz algumas parcerias mais directas com alguns deles que dariam credibilidade aos amigos acerca do projecto. Aos poucos, fui entendendo como o projecto era arriscado, e fiquei muito tenso, podia haver um acidente... Tive que assinar termos de responsabilidade. 

 

CR: Quanto tempo levaste a implementar o projecto?

 

JA: Acho que uns seis meses. Comecei a perguntar “Quando é que eu posso fazer a filmagem?”, e a Prefeitura não respondia. Até que disse, “Olha, o filme tem de acontecer nessa data, por causa da nossa agenda.” Precisei de ficcionalizar a necessidade de uma data para a corrida senão a prefeitura não levava a sério. E aí a coisa aconteceu. Nesse domingo, apareceram uns cinquenta carroceiros e as suas famílias, umas duzentas e cinquenta pessoas, e foi uma loucura. Demoraram uma hora e meia para começar a aparecer. A polícia de trânsito queria fechar a rua e perguntava, “Cadê os actores?” e eu, “Estão vindo.” Me dei conta que estava tão apaixonado pelo projecto que tinha a certeza que ele ia acontecer, mas não tinha garantia nenhuma disso. 

Convidei umas quinze pessoas do cinema independente do Recife, todos com a sua câmara espalhados pelo percurso da corrida. O vídeo tem essa carga documental, de que gosto. Recebi trechos muito curtos, muito dinâmicos. Vi que eram imagens difíceis de trabalhar. Estava exausto da organização e só um ano depois é que encarei a edição. É um projecto feito meio na guerrilha, a edição é toda picotada. O filme começa com o João Aboiador a improvisar versos sobre as imagens super caóticas da corrida. O aboiador é uma figura do interior, bastante tradicional. Ele apareceu espontaneamente na corrida e eu passei o megafone para ele e a voz dele tomou conta do cortejo. Depois convidei ele para gravar em estúdio e desafiei-o a entender a corrida como uma revolução dos carroceiros que chegaram e tomaram a cidade. Tem uma cena com os caboclos de lança, que trabalham no corta-cana e têm toda uma dança folclórica. Ver o Levante nessa exposição é reconhecer que aquele é um universo bastante masculino, embora uma das ganhadoras seja uma mulher carroceira. Tem também uma diferença de classe; eu não sou daquela classe social. O filme fala de urbanidade, de diferença social. O Recife é uma cidade que, dentro das suas contradições, explode de manifestações culturais populares. É impressionante, é uma cidade que pulsa isso. 

 

CR: o que significa Olho-faísca?

 

JA: Olho-faísca para mim é estar no presente, é ir para a rua, é encontrar no olho do outro essa faísca que muitas vezes desconcerta e é risco, uma pólvora para o desencontro. Acho que se há uma tónica que atravessa esse projecto é a aposta no encontro como uma possibilidade que enche o peito de oxigénio para encarar a coragem de receber um não. De receber um “chega para lá”. Então na verdade esses são os projectos que acontecem porque o “sim” aconteceu e porque o manejo do “não” foi possível. Então “olho-faísca” é esse acreditar na rua e no desconhecido como um lugar da criação. 

 

 

Jonathas de Andrade

MAAT

 

Catarina Rosendo [Lisboa, 1972] Historiadora da arte. Investigadora Integrada do Instituto de História da Arte [FCSH-UNL]. Desenvolveu, entre 2014 e 2017, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea [Almada]. Co-autora do filme sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar [2008]. Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio [ex aequo] da Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 [2007]. Actualmente, lecciona no Mestrado em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes — Universidade de Coimbra.

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico. 

 

 

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Jonathas de Andrade: Olho – Faísca, vistas da exposição no MAAT. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e MAAT, Fundação EDP.

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