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Gisela Casimiro: Segundo Cérebro (II) / (III)

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Gisela Casimiro

 

Não, ao ovo quente do pequeno-almoço,

à sua perfeição,

não chego nem de longe.

Imaginem, mais do que o meu cérebro

dura a chave de parafusos.

Que belo seria

ter o coração fofo como um figo

e a abnegação de uma lâmpada eléctrica.

Lamento. Desculpai vinagre

e azeite, pimenta e sal,

que eu não seja

 como vocês

 indispensável.

[1]

 

Já sei andar de bicicleta, e isto merece o seu próprio parágrafo.

 

Um amigo em comum apresentou-nos. Ele pediu-me os óculos, observou que estavam tortos (haviam sofrido o segundo golpe apenas recentemente) e levou a mão ao bolso. Ri-me, pensando se teria um alicate escondido e mos endireitaria logo ali, em pleno Largo de São Domingos. Tirou um pequeno pano para o efeito e começou a limpá-los calmamente. Talvez não seja possível ver se alguém está a corar por trás da máscara. Sobretudo se for de noite e estivermos no meio de uma multidão. Queria dizer-lhe que não podia fazer isso porque, afinal, estávamos (estamos) numa pandemia e ele não me conhecia mas não disse nada. Escutara-lhe a voz no meio de outras tantas multidões, primeiro no início de Junho e agora no final de Julho, ambas sem saber quem era. Só agora eu lhe via a altura, o rosto, as mãos: metódico, insinuante, no seu próprio tempo. A limpar os meus óculos pela primeira de muitas vezes.

Voltei a tomar vitamina D. O título do último email que recebi é “Preparação para a Videocolonoscopia Total e Videoendoscopia Digestiva Alta sob sedação profunda”. A preparação depende apenas de si, diz o email. Obrigadinha. Agora que eu voltara a investir no meu antigo amor por brócolos e deixara o queijo, tenho de largar os primeiros e dedicar-me ao segundo. A app que me lembra ou, melhor, manda beber água mais vezes do que eu o faria por mim mesma, pergunta se eu iniciei o jejum, aponta quanto tempo decorreu desde o último. Estou no rácio budista, o 20:4. Faço mais chá, consigo finalmente beber umas quatro ou cinco chávenas por dia. Voltei a deixar de comprar café, porém ainda compro chapatas na Chaimite. Por duas vezes o funcionário me pede, com razão, que não me afaste porque estas raspadinhas têm prémio. Lamento que o precipitar do Outono leve consigo a magnífica copa da Ceiba speciosa, também conhecida por paineira, e o seu manto.

Acontece que, há três casas atrás (que é como quem diz: ainda agora, no Verão), passeava em frente ao MAAT quando uma mulher de bicicleta deixou cair o seu casaco. Hesitei em apanhá-lo, chamei-a e ela voltou-se, hesitou em pegar nele, levou-o e agradeceu-me. Pensei que a pandemia nos tirara também e sobretudo a gentileza. Meses depois, no final de Outubro, uma rapariga caiu como resultado de um solavanco maior. O autocarro virou uma tela em que ela, inclinada como um Cristo sorridente ainda na cruz, ficou a três pares de braços do chão, segurada por vários outros passageiros. Os braços arqueados e as pernas ainda juntas, esticadas, uma agradável visão renascentista em câmara lenta. Quotidiano e álcool gel sobre máscara.

 

Profecia

O amor chegará na bicicleta

em que nunca ninguém

te ensinou a andar

 

A vida é assim. Escrevemos um poema ao amor impossível e ela mostra-nos quem concretize esse poema, sem saber que o escrevêramos. Ela mostra-nos que o amor, para o ser de verdade, tem de ser possível, mesmo que demore a chegar e se engane demasiadas vezes no caminho. Há quem use óculos como eu e viva onde eu aprendi a andar de bicicleta. Quem ande de bicicleta por essas mesmas ruas. Há coincidências e há a letra T por duas vezes, embora alternadas. Há quem seja não um, mas dois poemas. Nenhum dos quais pode ficar.

 

Óculos

Dá-me, meu amor,

uma ponta da camisa

a que limpar o coração

e estes óculos tão sujos.

 

No escuro, uma folha nova se desprendeu da Monstera deliciosa (há lá nome melhor!), despertando-me. Acordei assim de uma das poucas noites em que não adormecera de cansaço e luz acesa. A folha nova não mudou a hora: 4h20, como ultimamente. Estava escuro e assustei-me um pouco. Talvez algo se desenrolasse também dentro de mim. De dia, quando está sol, encosto o rosto às folhas que são já maiores do que ele, e ficamos assim coladas e caladas durante muito tempo. Tive uns brincos com a forma de folhas douradas, esburacadas, muito antes de ter uma monstera de verdade. Agora uso menos os brincos, mas continuo a criar essas aberturas e, espero, a deixar apenas o que importa no lugar delas. Continuo a sobreviver, como as minhas plantas.

“Eu conheço a tua pele”. Ele faz muitas declarações deste género, e eu não o contrario. Às vezes, só. Gosto de lhe dizer que não, e gosto de ser impaciente com ele e do contraste da sua paciência para comigo. “You’re funny”, diz. Somos a primeira vez de algo muito particular em anos, para ambos. Pergunta-me sobre o que me dói a mim, mesmo que lhe doa tudo a ele. Atenta em cada suspiro. Diz-me o que os médicos disseram na semana em que tudo aconteceu. Oferece-me o escuro e as coisas que só nele vemos. Oferece-me o sol que sustenta os meus retratos, o trânsito, ficar cada vez mais tempo, o não querer ir embora. Eu faço-me mais pesada e ele ignora e puxa a cadeira ainda mais para junto de si. Oferece-me de tudo, desde um mini presépio a camisas suas lindíssimas, ao jantar e todas as outras refeições, a bolachas que levo na mala como se estivesse a sair de casa dos meus pais, a um dos muitos CD que ouvimos juntos. Não o Coltrane, não o Blue Train, mas o Black Messiah, de D’Angelo. Existe outra canção que não a Really Love? Eu nem tenho um leitor de CD, mas gostava. Conheço-lhe o livro sagrado que deixa sempre aberto à cabeceira da cama, os pijamas, as teimosias, as pantufas fofinhas, a raiva, o luto fresco (irmão), o luto de ainda agora (o Candé, que para ele e os irmãos era o colega de escola e nunca vai ser menos do que isso, ainda que o racismo) e o luto antigo (pai). Sempre tão composto. Conheço-lhe as persianas, o espelho, a parede enrugada, a orquídea, o seu prezado e invejável guarda-roupa, o riso e o choro. Conheço-lhe tudo aquilo que me irrita e as saudades que ficam.

Há cortes de que apenas nos apercebemos quando cicatrizados. Na mão direita trago dois. Descubro-os pouco antes de voltar a este texto que deixei a meio porque... PANDEMIC! A voz da comediante Elsa Majimbo é uma das mais inconfundíveis dos últimos tempos. Creio ainda que os fabricantes quer de batatas fritas quer de óculos de sol lhe devem parte do seu negócio desde Março. Eu continuo fascinada com a sua humildade e aquele pedaço de tinta azul-bebé a escamar do tecto do quarto, que ela teima em apanhar no seu monólogo de Instagram, para gáudio dos seus milhões de seguidores, ela que está na Forbes e em tantas outras revistas de renome. Há algo reconfortante nessa imperfeição visível e humilde. Há algo reconfortante numa jovem queniana a triunfar num ano como 2020 (ler vinte-vinte).

No início de tudo isto, preparando-me para assar tomates cereja a baixa temperatura e durante o maior tempo possível, para uma salada, desarrumei a bandeja e escrevi FUCK COVID usando os ditos. Foi absolutamente satisfatório. Take no remedy lightly, take no urging intently, take no separation leniently, beware of no lake and no larder. A change, a final change includes potatoes. This is no authority for the abuse of cheese. This is a result. There is no superposition and circumstance, there is hardness and a reason and the rest and remainder. There is no delight and no mathematics. [2]

Outro dia chamaram-me de gorda. Quero dizer, chamaram-me de gorda em duas ocasiões diferentes, como se uma não bastasse (em caso de dúvida, por favor quebrar novamente o vidro de emergência, se tiver restado algum pedaço). A primeira: Feira do Livro fora de tempo (máscara, sol no pino do meio-dia, multidão, álcool gel a rodos, perigos vários para a minha carteira); uma estranha acabada de tornar-se conhecida cometeu o clássico erro de me parabenizar pela minha suposta gravidez. Acontece a muitas mulheres. A mim, não acontecia há muitos anos. Dois meses mais tarde, depois de pagar a conta (imperiais e chamuças) e trocar dois dedos de conversa com quem nos atendera num conhecido restaurante, eu e a amiga que estava comigo preparávamo-nos para sair há já algum tempo, apesar da simpática insistência para que ficássemos. Queríamos continuar a nossa longa caminhada. Fazia eu muito bem, anuiu o senhor, porque não é que não fosse elegante (e com isto fez um gesto não de elegância e sim de arcabouço), mas podia ser muito mais. É a minha deixa, retorqui, e saí.

Berra a vizinha: “Diz lá, já fizeste merda, não foi? Eu não percebo nada disto, e tu parece que ainda percebes menos. Também és mais velha do que eu, devias ser mais inteligente. Estou-te a dizer adeus azul. Que menina tão linda...Tens de lhe cortar a franja. Tomou um Xanax... Dormiu a noite toda. Vocês aí já têm ordem para sair à rua?“ 

O que a vulgaridade sabe bem! O que a matéria sabe bem. (...) E uma pena da vida! Uma saudade da vida! Uma tristeza de não poder misturar-me à vida! A vida —  e um cantinho do lume, a vida banal, a vida comezinha.... Tenho saudades do muro a que costumava queixar-me. Tu és a nuvem, tu és a árvore. Enche a consciência de todas estas coisas, porque não tardarás a perdê-la. [3]

Sonhei que um dos meus anéis se partia e, ao partir-se, ficava maior. Tenho dois anéis iguais, oferecidos pela minha mãe. São reguláveis, a única forma de me servirem porque tenho as mãos grandes e os dedos grossos. Podem ser usados juntos ou separados. Tenho duas marcas à volta do anelar e do indicador esquerdos. Protegida mesmo quando não os trago postos. Uma vez julguei ter perdido um durante uma das minhas muitas mudanças de casa e, então, receando perder o outro, deixei de usar anéis. Muito mais tarde, reencontrei-o e, desde então, raramente os tiro, embora se prendam na roupa e no cabelo e em todo o lado. São anéis de voltar atrás. Dão-me balanço para avançar.

Os maiores dramas passam-se porém no silêncio [4]. Talvez por isso me custe tanto ser obrigada a deixar de falar com alguém. Fotografo obsessivamente a evolução da bancada e do lava-loiça, em substituição da série que fiz com a mesa e a janela da cozinha há cinco casas atrás. Finjo que sou William Eggleston. Fotografo a minha sombra na perna da Vanda num dia tranquilo, sentadas a apanhar sol; ela ri-se ao ver as fotografias. Finjo que sou Vivian Maier. Vi a minha mãe pela primeira vez em onze meses. Não vejo a minha irmã nem o meu pai há onze meses. Ele reage com corações a uma foto minha e manda-me fotos suas. Está na Bélgica. Repito o que escrevi há alguns anos, quando a minha irmã foi viver para Londres: Natal é quando a minha irmã vier.

Ondjaki cortou o cabelo, adiou um tapete, leu-me Eduardo White pelo WhatsApp. Inscrevi-me de novo num ginásio. Fiz três foccacias e duas acabaram no lixo após o forno. A terceira, mais trabalhosa, com uma receita diferente, como se a diferença estivesse na receita que antes me serviu tão bem, a mim e a tantos outros. Porque é que eu me ponho a fazer receitas que implicam as tarefas de que menos gosto? Como ralar cenouras, descascar maçãs ou mexer pacientemente coisas que requerem a minha atenção, enquanto descuro as coisas que realmente precisam da minha atenção, vulgo eu mesma. Antes ser a manteiguinha que desliza batata-doce laranja abaixo. Voltaram as breakfast pizzas em pão naan, o apple crisp com gelado de nata, a mousse de aquafaba e chocolate com chantilly, croquetes de grão, o risotto de cogumelos, o pudim de chocolate, um bolo de ricotta, o bolo de curcuma e limão da Joana Barrios, as torradas com manteiga e shiitake em alho e pimenta preta. Vivo para as receitas de Rachel Alice Roddy para o Guardian, para o seu instagram de comidas reais, sem filtro, a lembrar still life painting. Encontro muita beleza em tudo o que a Filipa Castro fotografa, e por vezes são só as cascas dos legumes. Melhor do que tirar fotos, só ver fotos. Por vezes não precisamos de comer, apenas de cozinhar e dar a alguém para provar.

Um pássaro foi de encontro à janela do meu quarto, fez ricochete no dia cinzento e nos meus pensamentos onde continua a embater. E eu sem saber o significado. Do pássaro, dos meus sonhos, por vezes da minha vida. O pássaro não se prendeu. A janela permanece intacta. E eu? Fui promovida a pessoa que corrige os outros constantemente, lembrando-lhes o que fizeram bem mas, sobretudo (e parece que é isso o que mais importa) o que fizeram de errado. E eu?

“Perguntara à empregada da loja: «Nenhuma gabardina permanece sempre impermeável. À prova de água, sim.»”

E quando lhe perguntei o que significava ser à prova de água, respondeu-me que era melhor comprar um chapéu-de-chuva. Mas não tinha dinheiro que chegasse para um chapéu-de-chuva. [5]

‘Tá e vou sair, vou abandonar, tenho uma consulta agora às cinco, não posso ‘tar aqui. Escrevi estas palavras a giz nas paredes do 59 da ZDB, há muitos anos. Diz-me a Lia que faleceu o senhor que as disse (e disse-as piscando o olho), um dos icónicos fazedores de cultura portuguesa, dos Apanhados TVI e RTP, uma língua em que muitos dos meus amigos são fluentes. Uma língua que talvez seja condição para ser meu amigo. Continuamos sem saber o seu nome, mas nunca o esqueceremos. Mesmo se com um fogo a dez metros de nossa casa.

Acredito no meu secador de salada, no removedor de borbotos que comprei em promoção quando regressei da ilha de Armona, em chocolate quente caseiro com marshmallows não-caseiros em cima e no gel de aloe vera. Sou sobrevivente dos senhorios loucos, das baratas e dos fados simultâneos triplamente deprimentes de Alfama. Sobrevivente de um único coração, partido muitas vezes. Confesso que cheguei até aqui sem instalar o Co-Star nem o Pattern. Na verdade, deixei completamente de ler o horóscopo. Tornei-me discípula de Karen Kardasha. Cheguei atrasada à aula de I-Cycle outro dia e, to my dismay (queria tanto que esta expressão funcionasse em português), o instrutor fez questão de que toda a gente soubesse o meu nome. Os meus pensamentos durante esta aula vão desde “estou tão gorda” a “quem inventou isto?” a “porque é que aquela bitch continua a pedalar se já estamos nos alongamentos?” a “tenho de pedalar mais rápido” a “certo, fui eu que não só me inscrevi como ainda compareci” a “este pessoal não está a brincar” a “este gajo aproveita tão bem os minutos” a “como é que isto ainda não acabou se eu ainda por cima me atrasei” a “ainda bem que fiz isto”. Vem-me muitas vezes à cabeça a frase “My tranquility needs to be refurbished” dita pela personagem Alma Wheatley, para mim a mais icónica de The Queen's Gambit.

Vou ao supermercado e o Filipe ao cemitério. Cada um faz o que tem a fazer até ao recolher obrigatório. Passa-me para a mão o avental bordado com o seu nome. A noite passada, atirou a máquina do tabaco para o chão da cozinha. Aterrou no tapete. É uma táctica não milenar mas millennial de estragar algo e tentar repará-lo usando o mesmo método. Ele diz, “Acordei a sentir-me um saquinho de lixo”. E eu respondo: “Espero que seja um saquinho de lixo dourado.” Rimos e ele sai para ir comprar pão. Ora vem abraçar-me, ora diz que preciso de endireitar as costas, ora lhe mando uma foto da porta que ele deixou mal fechada e agora se abre sozinha. EU COMPREI PÃO./ ENTÃO EU DOU-TE COM O SACO DO PÃO NA CARA. Diz que estou ao computador quando se vai deitar e que já estou ao computador quando se levanta. Porque é que os meus amigos atiram com as coisas quando se enfurecem? Ainda bem que a Black Friday não calha em Mercúrio Retrógrado. “PUTA QUE NOS PARIU A TODOS. Põe isso num poema, Gisela.”

Sou pior do que Penélope, bem sei. Mas urdi este texto durante tempo suficiente para que a minha amiga Ana pudesse, finalmente, mudar-se para o Japão, o que era para ter acontecido, como tantas coisas, em Março. Também me atrasei o suficiente para Margaret Keenan, de 90 anos, receber a primeira vacina para a covid-19. Casaco cinzento às bolinhas e camisola natalícia com um pinguim, sorriso no rosto, tão cedo não a esqueceremos. Quanto a mim, conto ir visitar a Ana assim que possível. Respirei fundo e ouvi o bater do meu coração. Estou viva, estou viva, estou viva. (...) Todos os olhos e rostos se voltaram em direcção a mim e, guiando-me por eles, como por um fio mágico, entrei na sala. [6]

 

Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984) é escritora, artista e activista. É autora de Erosão e colabora regularmente com diversas publicações. Participou da mostra colectiva A/A8 no Museu Nacional de Etnologia (2019). Em 2020 inaugurou n' O Armário a exposição individual de poesia visual "O que perdi em estômago, ganhei em coração", sob curadoria de Ana Cristina Cachola (projecto "quéréla"). 

 

 

Foto: William Eggleston, Untitled, c. 1883-1986. Cortesia do artista. 

 


 

Notas:

 

[1] Hans Magnus Enzensberger, 66 Poemas - Escolhidos e traduzidos por Alberto Pimenta 

 

[2] Gertrude Stein, Food  

 

[3] Raul Brandão, Húmus

 

[4] Ibidem​​​​​​​

 

[5] Sylvia Plath, A Campânula de Vidro 

[6] Ibidem

 

 

 

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