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Carta a um amigo

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Eduarda Neves

  Ficamos com as estrelas.

Chegará o frio.

  

Querido amigo, neste país que não é o teu, e do qual te escrevo, habituei-me às confidências. Sem elas não suportamos o rigor do cansaço, apesar de uma certa tragédia nos devolver um mundo optimista. Sem Sol.

Pensar deixou de ser um certo skandalon, um tropeço. Como pensar sem tropeçar? Como pensar sem desordenar e sem pecar? O pensamento é essa forma de jornal íntimo [1]; não que sirva para contar a nossa vida mas para afirmar a possibilidade de um desconcertante movimento, uma força de não resignação. E não é sempre o pensamento um incidente na sua dimensão de imprevisibilidade, de desencontro? Assegurou Longino que, apesar de o útil e o necessário estarem ao nosso alcance, é o inesperado que admiramos pois é ele que pode dar à audição a forma da visão.

Aprendemos com Hamlet que na existência tudo está debilitado pela pálida cor do pensamento. Já pouco há a esperar do Éden. Mergulhamos no claustrofóbico sonho comum, no qual o futuro é um incurável vestígio de juventude. Passamos a repousar na eterna espiral da realidade mas sem abandonar a ordem do impossível. O real. A nossa alucinação. O que não tem nome. Não pode ter. Há algo de indigesto sempre que nos querem fazer crer que não somos capazes de prosseguir a nossa viagem. A doutrina da obediência social, em todos os momentos e circunstâncias das nossas vidas, é sempre a mesma. Já a conhecemos. É como um rosto sem corpo, sempre aquém de si mesmo. Neste país, que não é o teu, as histórias com castelos estão povoadas de mortos. Até os fantasmas se dissolveram na sua própria imaterialidade. Fazer castelos no ar tornou-se uma espécie de maldição. Apenas as “grandes causas”, as que estão na moda, podem ser sonhadas. Vivemos, trabalhamos, pensamos e desejamos ao abrigo da mesma forma regulamentada. Podemos descansar pois até o sofrimento foi já integrado nas ditas políticas da identidade, assim se tornando produtivo. Deve ser isto o mundo sem fronteiras: a patologização global. Até ela abraçou as relações entre a filosofia e a empresa. Já nos esquecemos que a filosofia nasceu sob a forma de um poema. Ouvi dizer que agora são bastante procurados os cursos de filosofia para gerir emoções, aumentar a cultura geral de trabalhadores em horário pós-laboral ou equilibrar a dita inteligência emocional (a estas divisões administrativas talvez escape que a inteligência será, provavelmente, a mais surpreendente das emoções). Retomo as inspiradoras palavras de Deleuze, em torno do pensamento nietzschiano, lembrando-nos que o disparate e a baixeza são sempre as do nosso tempo, as dos nossos contemporâneos, o nosso disparate e a nossa baixeza.

Aproveitar o presente e todas as horas, não depender do amanhã, eram os conselhos de Séneca a Lucílio. Enquanto adiamos, tudo se vai, tudo teremos que recomeçar. Só o tempo é nosso. Talvez seja o que nos resta. Sábios conselhos estes, caro amigo. Ficamos com o escorregadio, as coisas fugazes que nascem e morrem. Ficamos com as estrelas. O que já não é coisa pouca. Enquanto o Sol não engolir a Terra e, dizem, se tornar numa gigante estrela vermelha, vamos adiando esse épico glorioso. Chegará o frio.

Neste país que não é o teu, há muito que a veneração financeira se tornou a grande musa da arte. Agora me recordo de que em 1974, entre 23 de Novembro e 14 de Dezembro, Werner Herzog caminhou até Paris, infindáveis quilómetros, entre novos fragmentos de vida, povoações, campos, animais, estrelas, tempestades de chuva, neve, vento e nevoeiro. O Sol, por fim. Poderia ter ido de avião mas foi a pé. Demorou três semanas pois não queria chegar rapidamente. Precisava do tempo. Repetia, como numa oração, que quanto mais demorasse mais tempo estaria a dar à sua grande amiga Lotte Eisner [2] para ficar melhor.

No livro que escreveu, Caminhar no gelo, uma espécie de diário no qual relata esta aventura que é, simultaneamente, a expressão de uma profunda amizade, Herzog diz acreditar que o pensamento introspectivo comporta a seguinte descoberta: o resto do mundo rima. Será preciso caminhar no gelo, fazer essa viagem interior em forma de sacrifício, como o fervoroso cineasta, para acreditar que a arte ainda pode viver. Não sabemos se o tempo que lhe resta é bastante para garantir a sua sobrevivência. Como repetia Herzog sobre Lotte, ela não pode morrer. Mais tarde talvez, quando nós o permitirmos. Agora não.

Era minha intenção falar-te sobre a condição da arte neste país que não é o teu mas, neste momento, que te poderia eu escrever sobre o assunto? Dizem que a arte está reduzida ao sector, uma área da actividade económica. Sector. Assim lhe chamam, neste país, frequentemente. Novas semânticas para localizar e organizar o funcionamento do desejo. Não foi Marx que nos ensinou que cada modo de produção constrói as formas de subjectivação de que precisa?

Porém, tal como quando corremos, algumas obras ainda nos fazem bater o coração. Há artistas que não abandonam a encruzilhada. São especialistas na luta a sangue-frio e não esquecem a sua própria história.

Sabem que nada há a perder. Sabem que a vida de um artista é como a vida filosófica sobre a qual, disse Michel Foucault, a propósito da constituição da subjectividade da vida dos filósofos na antiguidade, estar vinculada à relação entre o sujeito e a verdade, à forma como se vive. Assim, a existência que se leva, as nossas escolhas, renúncias, modos de vestir e falar, testemunham e cumprem, do princípio ao fim, a vida filosófica enquanto manifestação dessa verdade.

Aqui, ao meu lado, o livro Esculpir o Tempo. Leio-te Tarkovski: “uma obra-prima só adquire vida quando o artista é inteiramente sincero no tratamento que dá ao seu material. Os diamantes não são encontrados na terra negra; é preciso procurá-los próximo dos vulcões.”

Querido amigo, talvez ainda seja possível, neste fim de ano, alguma dignidade. Neste país, que não é o teu, também se escreve para fugir de um lugar vazio.

 

 

Eduarda Neves. Licenciada em Filosofia e Doutorada em Estética. Professora de teoria e crítica de arte contemporânea, área na qual tem vários trabalhos publicados. Curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria cruza os domínios da arte, filosofia e política. 

 

A autora escreve segundo a antiga ortografia. 

 


Notas:

[1] Como disse Nietzsche, toda a obra filosófica dissimula um jornal íntimo.

[2] Lotte Eisner - alemã, historiadora e crítica de cinema por quem Herzog tinha uma forte admiração.

 

Imagem:  

Clemens von Wedemeye, Sun Cinema, 2010. Projecto Unveiling My City. Mardin, Turquia. Cortesia do artista.

 

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