Vida e trabalho: Não como antes mas de novo
No livro A Week on the Concord and Merrimack Rivers (Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack na edição portuguesa da Antígona), em grande parte dedicado ao irmão do autor que morre em 1842, Thoreau relata uma emotiva viagem de barco que haviam feito juntos dois anos antes do trágico acontecimento. É deste livro que sai uma das frases mais citadas do autor que glosa acerca do tema da amizade:
“The language of Friendship is not words, but meanings. It is an intelligence above language. One imagines endless conversations with his Friend, in which the tongue shall be loosed, and thoughts be spoken without hesitancy or end; but the experience is commonly far otherwise.”
Não consigo imaginar uma melhor forma de entrar na presente exposição da Susana Mendes Silva senão através daquilo que o título da exposição aponta, e que é a principal característica da sua prática artística, — a relação profunda que existe entre o seu trabalho e a sua vida, entre o trabalho e a vida.
Para que essa complexa afinidade fosse posta a descoberto, a Amiga Antonia Gaeta foi chamada a curar (e aqui o significado é mesmo o original, do latim curare ou mais precisamente cuidar, porque é convocada uma ética relacional que é da esfera privada e que aqui se vai cruzar tão eficazmente com o exercício profissional da organização dos materiais e conteúdos que compõem a exposição) a exposição de obras e materiais documentais que estavam espalhados por vinte anos de carreira. Amiga no sentido dado por Thoreau à amizade, porque espelha uma inteligência que se manifesta acima da linguagem e onde por essa mesma razão, as palavras perdem para os significados. E são esses significados, disseminados sob a forma de palavras, imagens, objetos, acontecimentos, encontros e diálogos, e até agora dispersos pelo mundo em que Susana tem vivido, que nos são dados a redescobrir pela mão cuidadora da Amiga e curadora Antonia. Vida e trabalho, não como antes mas de novo espelha justamente essa noção redentora que o olhar externo, mas próximo, pode imprimir à obra de um artista.
A receber-nos, no negro acolhedor e evocativo da Sala Cinzeiro 8, uma frase projetada de um diapositivo — a central funcionou pela ultima vez quando eu nasci — envia-nos para o não muito distante ano de 1972, ano do nascimento da artista e da cessação de funções da central, local onde agora nos encontramos. Esta peça funciona perfeitamente como abertura da exposição porque com uma enorme simplicidade arruma o grande postulado da mesma — a justaposição da vida da autora com a vida coletiva enquanto metodologia de encontro e diálogo para a formação de (re)conhecimento mútuo.
Nesta projeção, a frase sucede a uma outra anotação (p.160) uma advertência enigmática que, como veremos, se refere à página do livro que nos servirá de guia e que assim passa a ser integrado nesta exposição como um objeto de mediação dupla: os seus conteúdos remetem os objetos da exposição para a sua proximidade ao mundo exterior, e indicia futuros espaços e acontecimentos que irão integrar estes grupos de materiais em diálogo.
A partir desta projeção somos livres de circular espontaneamente pela exposição, cujo desenho de circulação deixa em aberto o rumo a tomar: à esquerda uma pequena sala confinada, à direita o acesso ao corredor que nos leva a um espaço mais amplo onde convivem algumas projeções.
Aqui estamos numa ampla sala que abre caminho à exposição (enunciando-a aliás, pois esta é uma exposição acima de tudo de carácter documental) num enredo de vitrinas, projeções sobre cortinas, corredores, colunas, recantos e na continuidade desta parede, um importante objeto que pode funcionar como guia para a experiência da exposição: logo à entrada, num banco de parede, à direita da peça de abertura, estão alguns exemplares do livro que Susana e Antonia editaram para consubstanciar as articulações que se avançam nesta exposição.
A colocação deste objeto nesta posição anfitriã pode servir justamente para que o visitante perceba de antemão as peculiaridades da exposição, pois as obras escolhidas apresentam um olhar quase retrospetivo da obra de Mendes Silva, indo atrás até 1997 e articulando tudo o que foi surgindo no seu rasto até ao presente. A seleção das obras, que numa exposição de formato retrospetivo seguiriam associações acima de tudo cronológicas e uma montagem apropriada a descrever essa narrativa, aqui assume o registo de uma estrutura rizomática, alheia a convenções estruturais e muito mais preocupada com a familiaridade de géneros que ao longo dos tempos têm subsistido na obra da autora. Rizomática porque, como explica Deleuze e Guattari:
“Um rizoma não tem começo nem fim; está sempre no meio, entre coisas, entre-ser, intermezzo. (...) o tecido do rizoma é a conjunção "e ... e ... e..." Essa conjunção carrega força suficiente para agitar e arrancar o verbo "ser". Onde vais? De onde vens? Ao que vais? Estas perguntas são totalmente inúteis. Fazer tábua rasa, começar ou recomeçar do zero, procurar um começo ou uma constituição — todos implicam uma falsa conceção de viagem e movimento (uma conceção que é metódica, pedagógica, iniciática, simbólica ...).“
Este livro (e esta exposição) não têm começo nem fim, ou melhor, começam pelo fim mas o fim é o início, a última obra (a mais recente) marca o início da biografia da autora e o fim da utilização do espaço como local de produção e eventualmente o início do processo que o traz à sua atual utilização, numa espécie de ourobouros muito operante, porque se aproxima desta conjunção “e...e...e” que nos dá conta de uma mediação da vida, que as obras e toda a documentação que as constitui ou representa, testemunham.
O livro é pois a imagem perfeita dessa mediação pois “ao contrário de uma crença profundamente enraizada, o livro não é uma imagem do mundo. Forma um rizoma com o mundo, há uma evolução paralela do livro e do mundo; o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo efetua uma reterritorialização do livro, que por sua vez se desterritorializa no mundo (se for capaz, se conseguir)” para numa fase muito posterior da sua navegação sentenciarem que “É agora o livro, a mais desterritorializada das coisas, que fixa territórios e genealogias. O último é o que o livro diz, e o primeiro o lugar a que o livro se refere.”
E este livro serve aqui esse propósito, é um A a Z da exposição, mas também, ou acima de tudo, um guia psicogeográfico da obra que a artista desenvolveu, e desses “lugares” a que se refere, que baralha os dados e nos obriga a entrar no mundo da Susana.
Optamos por entrar na sala pequena onde uma grande da imagem de uma orelha (da artista) está projetada num dos cantos da sala, é parte integrante de Audio Description (2013). Ao lado, no conforto da meia-luz que a projeção nos oferece, uns degraus negros assumem-se num pequeno auditório onde nos podemos sentar e ouvir a peça de som Words in my mind (2005). A imagem de Audio description será ativada durante a exposição, numa performance em colaboração com Abdul Moimême, na qual se relatam acontecimentos ficcionais a partir de uma novela do Repórter X, figura que a artista já trabalhou noutras obras. Esta peça faz-nos viajar até outro tempo da cidade de Lisboa, e é paradigmática para a elaboração que aqui se tenta colocar em funcionamento, no sentido em que uma “descrição auditiva” é um tipo de descrição adaptada a pessoas com incapacidade visual, feita com o objetivo de as permitir aceder auditivamente, e o mais fielmente possível, a acontecimentos inteiramente oculares. É um jogo de aparentes contrassenso(s), que nos colocam em linha com o carácter performativo da obra de Susana, que se estende à três vitrinas desta sala com documentação alusiva a várias peças — textos, desenhos, mensagens escritas, esboços, materiais gráficos de divulgação e documentação visual: da série de desenhos Words in my mind (2005), outros feitos para a video-performance Ritual (2006), memorabilia vária dos projetos Square disorder (2008) e X de 2009, desenhos resultantes da performance Tu & eu (2015) e trocas escritas entre a autora e vários interlocutores para o projeto Penfriend (2002).
Esta sala agrupa projetos de várias tipologias, mas a condição introspetiva e interpessoal é o denominador comum.
Voltamos à sala central e as vitrinas dão continuidade à conversação; a concentração de materiais de proveniências e valores distintos dentro da obra e vida de Susana fazem imaginar as teias de relações entre tempos, e será redundante dizer, entre projetos e pessoas.
Algures no livro (págs. 12 e 13) um desenho diagramático sublinha a forma como a artista e a curadora cozinharam este intercâmbio — origens e satélites, ligações, pontes, fluxos, e poucos (ou nenhuns) becos-sem-saída. Muitos “e...e...e” como na teoria de Deleuze e Guattari, a obrigar cada obra, na sua singularidade, a olhar para todas as outras, a reconhecê-las e a falar com elas, a sujeitar-se a uma motivadora interação. Nestas vitrinas estão materiais referentes a peças importantes e que estão no centro da obra da artista: Phantasia (2007), cabelo e textos de Square disorder (2008), uma T-shirt com estampagem alusiva à performance Live Art (2005), material documental acerca do Repórter X de Reinaldo Ferreira ou a peça Público (Centerfold) 2001, entre outras.
O espírito indicial continua presente ao continuarmos: mais uma vitrina com documentação das peças A obra que fiz para ti (2016), X de 2009, Uma história (2008), Le Trésor (2013) e Ana (2016); à esquerda uma projeção onde aparecem fragmentos de várias das obras catalogadas, com separadores que apenas remetem para a página do livro na qual as peças estão arquivadas e descritas. Muitas das peças, por serem time-based e de grande sensibilidade contextual, apenas podem ser mostradas assim. Esta é uma das principais características do trabalho de Susana Mendes Silva que o foque expositivo na documentação mostrada articula.
Na sala seguinte, várias projeções de diapositivos (a sala é muito escura e somos obrigados a navegar em direção à luz de cada projeção) apresentam peças em torno da grande projeção central com textos sobre o Repórter X. Outra vitrina com materiais referentes à peça Quando o meu pai trouxe estes panos ainda não me conhecia (2015/17), cadernos de notas abertos e documentação de trabalho da autora (desenhos, rabiscos, excertos de textos, montagens e planos para possíveis peças), que remetem para obras que são evocadas na exposição e planos para a própria exposição.
A última peça é TR-2018-L (2018), uma fotografia da mãe da artista enquanto criança a bordo de um navio petroleiro, onde o avô da artista trabalhava, acompanhada por uma narração e excertos de uma conversa entre a artista e a mãe, onde estas falam acerca das travessias que realizavam até à Trafaria. Esta peça é a materialização expositiva de uma performance que trabalha precisamente as memórias de família, tendo em conta este cenário da travessia do rio Tejo.
De regresso vislumbramos um slide invertido projetado na enorme cortina negra que separa esta sala da sala de abertura, Rádio Susana (2018) que projeta a imagem do avesso para que possa ser vista e lida na primeira sala e que é de resto uma imagem que avança um dos acontecimentos exteriores da exposição e ainda uma peça de som que para ouvir nuns auscultadores. Esta peça sonora, Arco-íris, tem um código qr que remete para um texto que explica como foi criada (para a exposição MONO — monocromia e polissemia, em 2010). Este trabalho relata uma lista de doenças, com nomes associados a cores como o albinismo, o pano branco, a peste negra, a febre amarela ou a escarlatina.
De volta à sala inicial, depois da habitual divagação que uma exposição documental propicia, observamos um cartaz que anuncia uma festa (ocorrida na noite da inauguração), um acontecimento de cariz performativo incluído no contexto desta exposição. Ao lado, uma agenda de outros acontecimentos exteriores que fazem parte da programação regular de eventos paralelos, que pela sua natureza contextual e de proximidade ao tecido social, não podem ter lugar no espaço da exposição. São convocados na documentação, em materiais de divulgação que fulguram na comunicação do Museu, e em circuitos de proximidade como redes sociais e obviamente as redes íntimas da autora. A Rádio Susana, com programação regular até ao final da exposição, inclui conversas com outros artistas, performances ou oficinas e faz desta exposição um momento para repensar a arte do encontro.
MAAT - Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia
João Seguro (1979), vive e trabalha em Lisboa. É artista e professor. Tem mostrado o seu trabalho em exposições, individuais e coletivas, nacionais e internacionais, estando representado em diversas coleções particulares. Lecionou desde 2006 as cadeiras de Estética, Estudos de Arte, Teoria e Crítica da Imagem, Pintura e Seminários de Arte Contemporânea no Instituto Politécnico de Tomar e na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
Susana Mendes Silva, Vistas da exposição Vida e trabalho: Não como antes mas de novo. MAAT: Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia. Fotos: © Bruno Lopes. Cortesia da artista e Fundação EDP.