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Nos Antrópicos — Notas sobre a exposição Eco-visionários: Arte e Arquitetura após o Antropoceno

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Joana Rafael

“Quem tem a maior probabilidade de sobreviver neste planeta: as águas-vivas ou os seres humanos?” pergunta uma voz na instalação da companhia de teatro alemã Rimini Protokoll. Esta e mais de 30 obras expostas na Galeria Principal do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa, pretendem chamar a atenção do público para as causas, mas também para soluções alternativas, relacionadas com os problemas induzidos pela conduta e sistema de relações entre humanos e o resto da natureza. São obras recentes e multidisciplinares, apresentadas em vários suportes que abrangem simples artefactos, instalações tecnológicas e audiovisuais. Reúnem um conjunto de dados relativos ao tempo, espaço e ação humana que incluem evidências de destruição global e estratigráfica, levantando questões relacionadas com o poder e o direito ambiental ou ecológico. 

Umas enunciam mudanças significativas e irreversíveis no funcionamento natural do planeta e colocam os seres humanos na mira de uma ameaça existencial, outras propõem cenários de superação dessas mudanças. Confrontam o visitante com imagens de natureza física, antrópica e antropogénica, oferecendo vislumbres de um futuro próximo e relacionando-nos com o período mais recente da vida do planeta terra, designado por antropoceno.

Este é um meme intelectual que cresceu das ciências naturais e da periodização científica da história da terra, e que tem vindo a ganhar crescente popularidade nas artes, humanidades e no movimento ambientalista.

Muitas das obras em exposição, além de uma sensibilidade aguda, demonstram também diferentes entendimentos dos problemas que ameaçam a sobrevivência da humanidade. 

Cruciais para promover mudanças de atitude e incentivar diferentes visões de organização do mundo. Têm um poder ativo e gerador de consciência sobre realidades sombrias e responsabilidades sociais futuras. Contudo, devem ser vistas como ilustrações, mais do que manifestações "eco-visionárias", como anuncia o título da exposição.

As evidências do impacto humano no meio ambiente têm sido objeto de sérias reflexões desde, pelo menos, meados do século XVIII. Estas deram origem a diferentes correntes de pensamento crítico ecológico, formas de ambientalismo e de conservacionismo que ao longo dos séculos XIX e XX acentuaram o reconhecimento de padrões de destruição e levaram à popularização de soluções para manter a vigilância do mundo. Nos anos 1960 e 1970, artistas, engenheiros e designers incorporaram uma visão crítica do mundo, que se estendia para lá da ética do desenvolvimento e da abundância, através de projetos utópicos, especulativos e radicais. Estes movimentos foram ignorados por sucessivas forças político-económicas nos últimos 40 anos.

Os curadores da exposição Eco-visionários: Arte e Arquitetura após o Antropoceno —Pedro Gadanho e Mariana Pestana — optaram por distribuir as obras por quatro secções temáticas: 'desastre', 'coexistência', 'extinção' e 'adaptação', opostas em tendência e qualidade distintiva. Por este motivo, exigem um confronto percetivo e intelectual que merecia ter sido explorado com mais rigor, detalhe e informação.

Em 'desastre', ao lado da simulação virtual realista de uma bandeira formada por jatos de fumo pretos, criada pelo artista irlandês John Gerrard para denunciar o aumento dos níveis de dióxido de carbono na atmosfera, estão expostas piscinas de evaporação de minas de lítio campos sujos de alimentação da nova revolução pela energia limpa, que o estúdio Unknown Field Division (Londres) documentou no Peru e na Bolívia.

Ainda na secção ‘desastre’, encontra-se a instalação digital interativa Sprawling Swamps (2016), da artista holandesa Femke Herregraven, que usa fotos de satélite e imagens geradas por computador para apresentar a sua pesquisa sobre sistemas de valor e realidades geográficas que as tecnologias e infraestruturas financeiras contemporâneas constroem em detrimento da natureza. E também, A Film Reclaimed (2015), um filme-montagem de Ana Vaz e Trestan Bera que apresenta uma leitura desta crise, com a ajuda de registos de imagens que atravessam a história do cinema. Não sendo visionárias, todas as obras expostas nesta secção conseguem ilustrar a extensão de tempo e a repetição de processos que sustentam o potencial perigo da ação humana sobre o ambiente.

A secção ‘coexistência’ apresenta uma pesquisa realizada na floresta equatorial, Forest Law (2016), de Paulo Tavares e Ursula Biemann, sobre uma série de conflitos históricos e casos jurídicos activados por populações indígenas contra a pressão de atividades de extração mineral e petrolífera. Um destes movimentos levou ao reconhecimento da natureza como sujeito dotado de direitos. Outra obra é o Museum of Oil (2016), dos Territorial Agency em colaboração com a Greenpeace, que arquiva documentação sobre o impacto da expansão da indústria petrolífera. Estão expostas também, na secção ‘coexistência’, as denúncias cartográficas de Carolina Caycedo que registam visões cosmopolíticas ameríndias sobre o impacto das grandes barragens nas paisagens naturais, e sociais, em várias regiões sul-americanas. A ênfase destas obras está na denúncia da dependência do Homem em relação ao seu meio ambiente, nomeadamente na exploração de recursos naturais dos quais depende o desenvolvimento económico, social e tecnológico, mesmo quando este produz conflitos intersociais.

 

 

Na secção ‘extinção’ destaca-se a instalação da companhia de teatro alemã Rimini Protokoll, intitulada Win < > Win. Esta oferece uma experiência que ilustra um jogo de  controlo do ecossistema, entre o ser humano e as águas-vivas (Aurelia auritas). Conhecidas como espécie predadora e invasora, as águas-vivas reduzem o número de peixes nos mares e causam estragos, ou problemas de segurança, em muitas centrais elétricas e nucleares costeiras — como tem vindo a acontecer na Escócia, Suécia, Israel, Estados Unidos e Japão. São também a espécie com melhores credenciais para sobreviver na crise climática, pela sua capacidade de prosperar em condições oceânicas inóspitas e, portanto, de serem “os últimos em pé, num mundo que se está a desintegrar” (Gershwin, 2013). Utilizando a técnica ilusionista conhecida como Fantasma de Pepper, os Rimini Protokoll colocam-nos como voyeurs do sacrifício das Aurelia auritas e da sua aniquilação pela humanidade. Dentro de um aquário, o dispositivo criador do fantasma humano, revolve um espetáculo de bioluminescência, produzido pelas águas-vivas; um espetáculo mantido (artificialmente) vivo por um mecanismo oculto que força a circulação da água, levando o movimento centrífugo das águas-vivas a perder a vida. Um efeito que introduz, ironicamente, as propostas para um futuro biotecnológico amigável e de completa artificialização do mundo, apresentadas também na secção seguinte: ‘adaptação’.

‘Adaptação’ é a secção que propõe futuros comuns, não necessariamente melhores, mas certamente capazes de mudar a nossa vida (e estilos de vida). Apresenta vários paradigmas de transformação, instigadas pelo desejo de mudança, através de Usinas de Biogás (2017), obra dos SKREI, ou de projetos mais sofisticados, como os de Dunne e Raby ou de Philippe Rahm. Os primeiros usam, em Designs para um Planeta Superpovoado (2009), uma combinação de biologia sintética e novos dispositivos digestivos inspirados nos sistemas digestivos de outros mamíferos, aves, peixes e insectos, para abraçar o poder de nos modificarmos fisiologicamente. O segundo, apoia-se numa abordagem estética que propõe novas formas de habitação, estendendo-se ao campo da arquitetura e da meteorologia, entre outros.

Num momento em que o futuro se apresenta, pelo menos no imaginário popular, como um espaço distópico de insegurança e indefinição devido a uma torrente de crises interligadas e, por isso, também de difícil resolução (i.e competição por recursos escassos, o número cada vez maior de catástrofes naturais, aumento das disparidades sociais, o reaparecimento de novas diásporas, instabilidade económica, conflitos geopolíticos e consequente ameaças de guerras, nomeadamente nucleares), o problema seria permanecer no sonho sobre o que o futuro poderá ser, sem dar promessas de esperança a quem enfrenta um futuro frágil e incerto.

Tornarmo-nos, criativamente, mais aptos pode ser uma boa ideia, especialmente quando não temos a certeza dos problemas mais prementes a resolver. Afinal, como nos relembra a obra já mencionada Sprawling Swamps (2016) de Femke Herregraven: “é só preciso um grão de areia para nos tirar o sono, e riscar o i-phone”.

MAAT-Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia 

Joana Rafael (n. 1979) é arquiteta e investigadora. Com um MA do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, um MRes e um PhD da Goldsmiths, Universidade de Londres, no seu projeto de doutoramento investiga causas e soluções para as crises ambientais e como estas se manifestam num repertório de formas e de ações problemáticas. Obteve uma bolsa de investigação de doutoramento da FCT, contribuiu para revistas como San Rocco, E.R.O.S Press e Cartha, deu aulas na Escola Central Saint Martins (Londres) e na Universidade de Arquitetura de Canterbury. Foi também diretora criativa do escritório de arquitetura de Andrea Caputo e da galeria Plus Design, em Milão. Atualmente leciona Cultura Contemporânea e Homogeneização da Perceção e Tecnologia, no departamento de Multimédia do ISCE Douro, para além de estar a desenvolver uma pesquisa sobre arquiteturas de gestão de resíduos.

 

notas:

Gershwin, Lisa-Ann, 2013, Stung! On Jellyfish Blooms and the Future of the Ocean, Chicago: University of Chicago Press.

 

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Vistas da exposição Eco-visionários: Arte e Arquitetura após o Antropoceno. Fotos: © Paulo Alexandre Coelho / Fundação EDP. Cortesia da Fundação EDP.

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