29 / 32

Sarah Benslimane: New Works 2023

Sarah Benslimane-23.jpg
Cristina Sanchez-Kozyreva

Geometria lollipop

Relocalizada do bairro homónimo para a área alargada da freguesia da Estrela, a Galeria Madragoa ocupa agora um novo espaço com um pé-direito generoso e janelas arqueadas de pedra, numa atualização para um estilo mais circunspecto. Não obstante esta transição, a galeria continua empenhada na apresentação de práticas artísticas mais travessas e, em particular, das obras de jovens artistas. Em linha com este ponto, a exposição inaugural da nova Madragoa é New Works 2023, uma série de pinturas escultóricas da artista franco-argelino-suíça Sarah Benslimane, nascida em 1997 e atualmente radicada em Genebra. Para esta mostra, Benslimane homenageia — e tem como ponto de partida — as convenções da abstração geométrica, apresentando um conjunto de telas tridimensionais de grandes dimensões e cromática pop.

Jurassic Stars, de 2023 (tal como as restantes peças), é uma das obras de destaque de New Works 2023. Construída com madeira, acrílico, vidro, berloques, parafusos, pequenas pedras, relva artificial, laca glicerólea e plástico, esta pintura retangular de fundo pálido revela uma superfície declaradamente texturada, daí irrompendo um cor-de-rosa vivo que, à distância, poderá ser confundido com uma explosão de confetti. O impacto visual da peça é também inflacionado pelas margens, com um acabamento amarelo-vivo, moldando-se o formato da tela com três recortes incompletos em forma de estrela. Trata-se de uma obra arrojada e cativante, e acaba por lançar o mote para a exposição: qualquer artista pode assumir uma postura lúdica e, não obstante, fazer pinturas sérias, ousadas e de execução superior — mesmo que integre materiais mais baratos ou de qualidade inferior, ainda que aqui se encontrem tão descontextualizados que até se tornam demasiado evidentes. Com efeito, Benslimane implementa glitter ou bugigangas representacionais, de que são exemplo braceletes ou decorações baratas como plantas artificiais, em peças meticulosamente estruturadas a partir de uma abstração geométrica. Portanto, podemos pensar: será que estas bugigangas de plástico devem a sua presença numa obra de arte de qualidade a um qualquer valor artístico intrínseco? Ou será que a sua integração nestas peças se revela inevitável, tendo em conta a ubiquidade do plástico barato no mundo atual e o declínio da qualidade dos materiais que usamos nas nossas atividades quotidianas e recreativas?

Nas imediações de Jurassic Stars, Endless oferece mais sinais desta ambivalência. Para esta peça, Benslimane utiliza madeira, espelhos, fita gomada, papel adesivo, bandas de tecido, parafusos, missangas, relva artificial e pó fosforescente, colocando dois laços cor-de-rosa em torno de dois lençóis de autocolante esticado — laços a envolver um presente — sobre uma grelha de espelhos aparentemente intactos. Olhando de perto, porém, os espelhos estão estilhaçados sobre toda a superfície da obra: a festa ainda não terminou, e na verdade só os laços a mantêm viva.

Ao pé desta peça, Wedding Vibes, a obra de menor dimensão em New Works, num formato tendencialmente retangular, faz lembrar uma chave, quiçá digital, apresentando uma superfície branca ornamentada com pequenas missangas e folhas. Surge-nos a imagem de uma toalha de mesa de copo-d'água, um casamento de verão, nalgum jardim com relva recentemente cortada, provavelmente com crianças a correr (há muita energia pueril no trabalho de Benslimane), e com os embrulhos rasgados dos souvenires oferecidos.

 

Sarah Benslimane-4
Sarah Benslimane-3
Sarah Benslimane-24
Sarah Benslimane-25
Sarah Benslimane-5
Sarah Benslimane-7

 

Ainda assim, também existe estrutura no meio da frivolidade. Em toda esta série, a artista explora a importante função que a grelha desempenha no âmbito da abstração geométrica. A grelha, por um lado, assegura um sistema estruturado capaz de gerar arranjos geométricos metódicos e padrões rítmicos; e, por outro, através da estabilidade e do equilíbrio que proporciona, permite a criação e proliferação de composições arrojadas. Além disso, enquanto ferramenta conceptual, a grelha simboliza os fundamentos racionais e matemáticos da nossa realidade física, assim representando sistemas e estruturas que se encontram tanto na natureza como nas construções humanas. Como tal, a frivolidade daqueles detalhes e variações também pode ser vista como parte integrante do movimento geral da vida — sempre para a frente e em crescimento, até por entre quaisquer frestas, como um riacho que corre ininterruptamente.

É então este substrato que permite a Benslimane subverter a previsibilidade da grelha e, ao invés, introduzir variações, disrupções e irregularidades nas suas composições. Esta tendência é visível em Before Last Sunset, na qual uma grelha de azulejos e mosaicos em vidro espelhado se apresenta como um todo — padrões cruzados em tonalidades azuladas sobre um fundo pálido —, ainda que cada azulejo revele variações idiossincráticas. Nalguns destes, a artista pintou pregos; noutros, pintou um número (estamos a jogar bingo ou a planear os lugares das mesas do casamento?); e momentos há em que acrescenta folhas artificiais ou erupções cor-de-rosa. Com isto, a artista injeta na obra um dinamismo particular, uma tensão percetível e o seu toque pessoal, inspirando nos espectadores um maior envolvimento com a peça.

A postura lúdica e esdrúxula da artista inculca nas obras uma afetividade contagiante, assim convidando os espectadores a envolver-se na exposição como se de um abraço reconfortante se tratasse — como se uma obra de arte pudesse ser um refúgio, o que, já de si, é uma ideia maravilhosa. Além disso, a inovadora abordagem de Benslimane evidencia uma fusão harmoniosa da geometria e da abstração através de uma variedade de técnicas manuais. Esta conjugação demonstra um quê de irreverência, num sentido inovador, e pode revelar-se particularmente significativa para uma geração que cresceu em estreita relação com a internet, as redes sociais e os animes — onde as fronteiras entre as imagens e relações físicas e virtuais se revelam cada vez mais indistintas, mas também onde o gesto de reivindicar novas e diferentes leituras e interpretações da história da arte se aplica de forma mais recorrente e natural. A obra de Benslimane interliga diversos âmbitos, navegando pelos mundos das belas artes, do design de mobiliário, da arte de embrulhar presentes e inclusivamente da banda desenhada, sempre em relação, sem embargo, com uma linhagem consagrada da abstração pictórica. Ainda que promova a inclusão de elementos representacionais e de celebrações exuberantes, a artista firma-se na tradição e na investigação das formas e dos padrões geométricos, gerando desta forma uma linguagem multidimensional que alarga os limites convencionais deste género de pintura.

A exploração artística da abstração geométrica que Benslimane leva a cabo ultrapassa os limites tradicionais da prática, imprimindo na sua pintura um conjunto de elementos de celebração, uma particular capacidade técnica e as suas ligações pessoais. Recorrendo à grelha, a artista percorre a fronteira entre estrutura e desvio, estabilidade e dinamismo, racionalidade e expressão pessoal. A inovadora abordagem de Benslimane abre novas portas nesta nossa era digital, em que de facto existem ligações pessoais e em que as grelhas já não podem ser anónimas, assim convidando os espetadores a tomarem parte ativa num envolvimento alargado com a sua obra. Estas peças, vibrantes e multidimensionais, cativam-nos pela execução meticulosa, pela postura lúdica e pela fusão de diversas referências da arte erudita e popular, relacionando-se com uma linguagem universal e criando um espaço dinâmico onde a abstração geométrica, em coexistência com as ligações pessoais da artista, se mostra terna e convidativa.

 

Sarah Benslimane

Galeria Madragoa | NOVA LOCALIZAÇÂO: Rua dos Navegantes 53A | 1200-730 Lisboa

 

Cristina Sanchez-Kozyreva é uma autora com experiência em relações internacionais e estratégia. Viveu 15 anos na Ásia. Foi cofundadora e editora-chefe da revista de arte Pipeline, com sede em Hong Kong (impressão de 2011-2016). Contribui regularmente para várias publicações na Ásia, Europa e Estados Unidos, como Artforum, Frieze e Hyperallergic.

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro.

 

Sarah Benslimane-26
Sarah Benslimane-46
Sarah Benslimane-42
Sarah Benslimane-44
Sarah Benslimane-14
Sarah Benslimane-11
Sarah Benslimane-9
Sarah Benslimane-19
Sarah Benslimane-21
Sarah Benslimane-18
Sarah Benslimane-17
Sarah Benslimane-15

Sarah Benslimane: New Works 2023. Vistas gerais da exposição na galeria Madragoa, Lisboa 2023. Fotos: cortesia da artista e Galeria Madragoa.

Voltar ao topo