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Histórias de uma Coleção: Arte Moderna e Contemporânea do CAM

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Shahd Wadi

Histórias dos corpos de uma coleção

 

“Começar, assim, não por um continente, por um país ou por uma casa, mas pela geografia mais próxima — o corpo”.

 Adrienne Rich



Fora das suas fronteiras e ainda antes de me encaixar no espaço dedicado à exposição Histórias de uma Coleção: Arte Moderna e Contemporânea do CAM [Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian], observo os corpos dos públicos visíveis por detrás do vidro. De fora, parecem esbater-se com outros corpos que habitam as obras estendidas no azul do mural que abre a porta desta exposição. Entrelaçam-se com o corpo de uma Rapariga com manjerico (1930), de Paulo Ferreira, o corpo de Salvador Dalí (1975), na fotografia de Pape Diniz, o corpo de uma bailarina (1954), captado por Victor Palla, e o corpo no trabalho de Karel Appel realizado em 1970 que parece uma tradução do gesto corporal do próprio artista a espalhar as cores, como se tratasse de um espetáculo de arte marcial.[i]

Ao empurrar as minhas pálpebras para cima para ver o meio corpo em movimento na obra da série Whatever-Legs (2003-2004), de Bruno Pacheco, apercebo-me de algo que não é muito habitual: nem todas as obras estão à altura do meu olhar, nem todas aconchegam o meu corpo. Nesta parede, os objetos artísticos existem como existem, sem organização específica, cronológica ou temática, como se fossem uma multidão de corpos nesta vida.

O corpo nu, em Le repôs du modèle (1924), de Henri Matisse, salta à vista como se fosse um lembrete para um questionamento clássico ao estilo da Guerrilla Girls: as mulheres (ainda) precisam de estar nuas para entrar nos museus? As formas-mundos no trabalho (1998) de Sofia Areal respondem perguntando: será que somos a trajetória de um corpo? Há um desequilíbrio de representação: a maioria das obras é de artistas homens brancos, algo que a instituição identificou e que tem vindo a tentar alterar nos últimos anos, como refere num dos painéis.

Uma luva que carrega um cigarro sai muro fora! É o Assalto (2021), de Fernão Cruz. Ao ocultar o resto do corpo, esta mão sugere a existência do mesmo. Torna-se, em si, uma pergunta sobre os corpos, todos, incluindo aqueles que navegam na exposição: que corpos são? Que corpo somos ao experienciá-los?

Esta exposição, patente na Fundação Calouste Gulbenkian, com curadoria de Ana Vasconcelos, Leonor Nazaré, Patrícia Rosas e Rita Fabiana, é organizada em torno dos momentos-chave da constituição da coleção do CAM. Uma abordagem interessante, mas escolho continuar a viajar pelas salas, como se esta exposição fosse, em si, um corpo.

A passagem do meu corpo para o espaço expositivo é anunciada pelo assobio do dispositivo que lê o meu bilhete. Enfrento a tal parede-que-não-é observada antes de entrar. As suas ripas azuis criam um véu transparente, através do qual transbordam os corpos das obras que habitam a primeira sala. O corpo no Retrato de Fernando Pessoa (1964), de José de Almada Negreiros, parece protegido pelo andrógino Arcanjo (1962), de João Cuteleiro, androgenia essa que podia bem lembrar-nos de todas as que permanecem fora do mundo hegemónico da arte. Sigo observando o meu reflexo no pequeno espelho ao lado do corpo na pintura (c. 1917) de Amadeo de Souza-Cardoso e sinto o cheiro do perfume Coty nas cores da obra. Quase não reconheço as pinceladas de Paula Rego no Retrato de Grimau (c.1964-1965). Esta primeira obra adquirida à artista conta, sem contar, a história do prisioneiro político, torturado, atirado da janela e silenciado através de uma sentença da morte. Um corpo que apesar de desmembrado nesta pintura, permanece belo.

Ao acariciar a exposição sala a sala, sinto um constante encontro entre os corpos dos espetadores e os outros imensos nas obras como, por exemplo, os do Atelier (1956), de Maria Beatriz, artista que só pintava o corpo que conhecia melhor, o seu. Nas minhas deambulações, é quase impossível ficar indiferente à luz na obra de José Escada (1965). Ao aproximar-me dela, vejo o que aparentam ser pequenos corpos, como se se tratasse de um manifesto político cifrado a apelar à liberdade da expressão da orientação sexual contra a ditadura.

Senhora! (2010), de Luisa Cunha, parece não se limitar a uma sala só. Atravessa o corpo inteiro desta exposição dizendo: “Senhora! Toda a gente sabe”. A própria voz da artista é o seu corpo, que, sem autorização, entranha-se no nosso. Lembra que o privado é público e que o pessoal, nesse corpo, é político. Volta a lembrar, repetindo infinitamente: “Senhora! Toda a gente sabe”.

Após um recuo e avanço do corpo nesta exposição, volto àquela que para mim é a sala-centro-corpo. A sua janela sob o jardim cria ainda mais intimidade entre os corpos viajantes na sala, como se fosse ela própria uma obra de arte que reflete um relvado de corpos deitados fora — só para alguns deles é aceite estarem de tronco nu.

De repente, o verde deste jardim foge para a obra de Fernando Calhau, Espaço Verde (1974), até chegar ao vestido de Natália Correia na obra de Nikias Skapinakis, Encontro de Natália Correia com Fernanda Botelho e Maria João Pires. A lucidez dos olhares que brilha dos corpos destas três mulheres enche a sala, recebendo quem nela pise. Não são apenas corpos. São corpos inteiros de mulheres inteiras. São corpos que fazem histórias de vida de uma escritora, uma poeta e uma pianista. Não é por acaso que foi a última da série Para o estudo da Melancolia em Portugal. A data desta obra, 1974 — o mesmo ano do 25 de Abril — é refletida num olhar comum que já anunciava o futuro. Estes três corpos dizem-nos: revolução.

Curiosamente, a obra ao lado, a de Ana Vieira, foi criada um ano depois. O título Objecto-Porta (1975) anuncia que não é apenas pintura nem escultura, é uma passagem do corpo, é, mesmo, um Objecto-Porta. Para experienciar esta obra é preciso envolver o próprio corpo numa dança à sua volta. Algumas partes só se tornam visíveis durante este ato performativo à volta da obra. Encontro o reflexo das nuvens pintadas na porta de outro canto completamente coberto e, a um certo momento, vejo o meu corpo tornar-se parte da própria obra, refletido no seu espelho, assumindo-se como fragmento deste Objecto-Porta. Participo no seu jogo constante que, ao mesmo tempo, afirma e nega as dicotomias fora/dentro, janela/porta, privado/público, encobrir/descobrir e, sobretudo, corpo observador/corpo obra.

Durante o meu baile de ocultação e desocultação à volta do azul de Ana Vieira, deparo-me com a mesma cor e o mesmo exercício na obra viva de Helena Almeida Pintura habitada (1976). Um azul particular muito presente nas obras da artista, que a própria associava à energia e ao espaço. Duas ideias que remetem para o corpo, tal como o verbo habitar. Um verbo que é, em si, um corpo.

A obra apresenta-se como pintura, apesar da existência da fotografia habitada pelo corpo da artista a pintar e a ser pintado. Deixa-me sem saber se o corpo cria a pintura ou se a pintura faz do corpo corpo. A artista empurra a arte com o seu próprio corpo, metamorfoseando-se contra um “patriarquivo”, uma afirmação, ainda atual, perante todos os desequilíbrios e ausências na história da arte e dentro desta coleção.

A tela torna-se numa performance que nesta exposição não envolve apenas o corpo de Helena Almeida, mas também o do público. Por detrás da parede de ripas onde a obra está colocada, aparecem as sombras dos corpos que passam como se estivessem a fundir-se com a sua obra e o seu corpo. A frase da artista “a minha pintura é o meu corpo, a minha obra é o meu corpo” transforma-se num poema que vai escrevendo o momento.

Em Volatile Bodies Towards a Corporeal Feminism (1994), Elizabeth Grosz sugere que os corpos e o lugar se constroem mutuamente. Da mesma forma, em Gender Trouble. Feminism and The Subversion of Identity (1990), Judith Butler procura entender a construção das identidades e dos próprios corpos de acordo com os códigos no contexto cultural e social. Mas o que acontece quando estes corpos inventam uma exposição e, mutuamente, pela própria arte são inventados? Então, esta deambulação corporal transforma-se numa pergunta e num desejo visceral por uma exposição sobre e a partir do corpo, incluindo o nosso.

 

CAM: Fundação Calouste Gulbenkian

 

Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro "Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio" (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers (ERD). Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada "Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências" (2010). Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua.

 

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©Pedro Pina
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Histórias de uma Coleção: Arte Moderna e Contemporânea do CAM. Vistas da exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2023. Fotos: Pedro Pina. Cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian.

 

 


Nota: 

[i] O corpo do artista a pintar pode ser visto no filme de Jan Vrijman, The Reality of Karel Appel (1962).

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