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Perfil: João Bragança Gil

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Paula Ferreira

 

Um filme seccionado se desenvolve diante do espectador, em uma sala onde os poucos focos de iluminação nascem junto às seções que o compõem. Nesse espaço retangular penumbroso, uma instalação tripartida se constitui por três sucessivos momentos: Paraíso, Paraíso Perdido e Paraísos Artificiais — o último, homônimo da segunda exposição individual de João Bragança Gil, realizada no Museu Nacional de História Natural e da Ciência. Em cada um, está rememorada a estrutura primordial do cinema: o diorama.

É nesse pequeno cosmo, permeado pela discreta presença da luz, que os dois primeiros momentos, Paraíso e Paraíso Perdido, inauguram uma dialética entre o artifício e a construção cultural de sentido. A partir dos títulos dados aos capítulos do último filme realizado por Murnau, Tabu, os dioramas são exemplares da metodologia empregue por João Gil. Nela, dificilmente se percebem acasos em relação à eleição por um suporte: quando, na obra Sem Escape, é desnudado o interior de um computador e o seu bastidor de servidor[1] serve de pedestal para um ecrã que reproduz, em loop, um vídeo de arquivo no qual se vê uma perseguição a duas zebras em uma savana, é proposital que imagem em movimento e aparato técnico, juntos, constituam uma mesma escultura instalativa. Nesse exemplo, a obra não se restringe à apropriação do filme de arquivo, mas é essencial, para o seu argumento, que os meios para a reprodução do mesmo sejam também visibilizados.

Talvez de maneira menos explícita, as duas obras que constituem o terceiro diorama também exercem a função de evidenciar os mecanismos que lhes permitem ser criadas. Ao centro da parede mais longínqua da sala retangular, uma projeção em loop de planos fixos seduzem o olhar expectante: por trás de uma nebulosa cortina de fumaça colorida, repousa abandonada no chão uma bola de discoteca construída por pequenos espelhos. A seguir, irrompem imagens de plantas tropicais que se iluminam por raios de luz azuis, vermelhos, verdes, roxos, em um jogo de cores que lhes empresta um caráter muito pouco natural, ao passo que o próximo plano surge como se fosse um zoom out e permite que se vejam os troncos das árvores que as sustentam, dentre os quais repousa, na terra, um ventilador metálico. A todo o momento, o sinestésico ambiente do vídeo é realçado pelo cenário pirotécnico. A filmagem acompanha uma “trilha sonora” composta por João Gil: uma desconstrução, ou um prolongamento na temporalidade, do poema sinfônico de Luís de Freitas, de 1913. Ao invés de posicionar discretamente os alto falantes que acompanham a projeção, o artista os repousa em frente à parede, em uma escolha deliberada por sublinhar que aquilo que se vê e se ouve é uma construção.

Há, discretamente presente, outra evidência da intenção do artista de deixar sobressair o artifício na obra. Por terem durações díspares entre si, o som do poema sinfônico e o vídeo completam ciclos anacrônicos — o que desloca Paraísos Artificiais em relação à tradição cinematográfica e permite que, no curso do tempo, infinitos encontros entre som e imagem sejam possíveis de se estabelecer pela demora do espectador diante do diorama e pela associação, em sua experiência individual, daquilo que se vê àquilo que se ouve. Tal oscilação de temporalidades, aliada à exibição do aparato tecnológico na escultura, vertem para um pensamento brechtiano, frequentemente presente no trabalho do artista, ao inibirem a possibilidade de interpretações acríticas ou catárticas do mesmo.

Esses exemplos se destacam por demonstrarem um especial poder de síntese de problemáticas presentes no cerne do trabalho de João Gil, as quais também acabam por caracterizar a sua produção para além da exposição Paraísos Artificiais. Ao debruçar sobre o percurso que Bragança Gil vem trilhando, é possível perceber como elas evoluem e, de certa forma, se apresentam enquanto preocupações constantes. Talvez sintomáticas de um trabalho que é tangencialmente referencial, algumas dessas questões são reminescentes e, em certa medida, integram debates já conhecidos pela arte contemporânea. O que importa destacar sobre João Gil, entretanto, não é aonde se propõe chegar ao debater tais ideias, mas antes os meandros dos caminhos que ele percorre ao longo de seu pensamento e de seu gesto artísticos.

 

 

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João Bragança Gil. Paraísos Artificiais” (2023) com Beatriz Medori. Curadoria de Sofia Marçal, no MUHNAC — Museu de História Natural e das Ciências. Fotos: João Bragança Gil. Cortesia do artista.

 

O Artista enquanto Arqueólogo de Ideias

 

João Gil é capaz de, em um livre vagar de ideias, discorrer linearmente sobre a reflexividade de seu trabalho. Em seu ateliê, livros se encontram com pesquisas e artigos acadêmicos impressos e organizados em pastas, fotografias de sua autoria catalogadas e mapas mentais presos às paredes como se à espera do momento em que lhe dirão algo. Está ali presente uma espécie de zeitgeist dos trabalhos já expostos, daqueles atualmente em desenvolvimento e de outros ainda em estágio embrionário. É esse o espaço que o artista utiliza para pensar as questões que o tocam: um mezanino em um ateliê coletivo em Marvila, de alguns metros quadrados, preenchido e organizado enquanto reflexo do seu próprio pensamento.

Foi também nesse espaço, que uma imagem se revelou clarividente: em sua prática, o artista se dedica a, pacientemente, tecer as poucas “franjas da tapeçaria da existência, tal como o esquecimento a teceu”[2] — pegando emprestada tão poética e pictórica passagem descrita por Walter Benjamin. É, portanto, tal tapeçaria o início de toda trama que possa nascer do seu trabalho. E, com o pensamento afiado, se vão desfazendo os nós das linhas, organizando o emaranhado de ideias e conceitos que pairam sobre o mundo social dos homens — apenas para depois voltar a desorganizá-los. O artista enquanto arqueólogo é aquele que se dedica a esse ofício. Que, no cerne de seu trabalho, cultiva o empenho em desvelar todas as camadas de interpretação e significação que uma ideia acumula sobre si através do Tempo e da História.

Também não por acaso, frequentemente o meio escolhido para essa “escavação” das ideias é através das imagens fotográficas e da utilização dos elementos que constituem o cinema, ainda que desconstruídos (a trilha sonora e a imagem em movimento, tal qual está explícito em Paraísos Artificiais). Ao elucubrar sobre essa predileção, é curioso que o artista a situe em um ponto de convergência entre duas teses antagônicas: por um lado, há uma crença na objetividade desse meio que quase daria razão ao realismo fotográfico de André Bazin[3], e, por outro, é uma escolha feita com plena consciência da subjetividade inerente à imagem fotográfica e da sua apropriação da realidade, como definida por Susan Sontag[4]. O que deriva desse entendimento ambíguo sobre a natureza da Fotografia é bastante singular e acrescenta um véu de fascínio para interpretar trabalhos seus, como, por exemplo, Ways of Remembering (2022) e Anticline (2020).

No primeiro, cinco planos fotográficos se alinham na esquina de uma parede. Nas imagens, o movimento que forma uma onda no mar está registrado sequencialmente — quase a transpor visualmente aquilo que Walter Benjamin chamaria de “inconsciente ótico” da Fotografia. Como diria o filósofo, podemos perceber a onda a bater nas pedras, “ainda que em grandes traços”, mas não percebemos a natureza do seu movimento “na exata fração de segundo” em que ela bate nas pedras[5]. Um olhar menos atencioso poderia enxergar no exercício sequencial realizado por João Gil uma certa ameaça de tropeçar no início da exploração fotográfica de Muybridges. Porém, é preciso criar relações entre essa obra e o resto do seu corpo de trabalho para perceber que, antes da mera observação e fragmentação de um movimento, a sua atenção está principalmente dedicada àquilo que ocorre entre uma imagem e a outra — como se o vazio daquilo que acontece entre dois momentos visíveis tivesse mais a nos confessar do que aquilo que está evidentemente presente nas imagens.

Já em Anticline, uma fabricada objetividade da câmera se apresenta no momento em que o artista escolhe filmar uma narrativa situada ao redor de uma pedreira no Alentejo a partir de uma perspectiva a qual ele próprio chama “pós-humana”. Trata-se de posicionar o referente na pedra, no maquinário e na paisagem, destituindo o privilégio do olhar humano enquanto referência na criação das imagens. Curiosamente, o que se sobressai nesse processo são justamente as ideias que só fazem sentido a partir da experiência humana: a violência contida na exploração da terra e dos recursos naturais, que é análoga àquela contida na exploração da mão de obra e dos recursos humanos.

Por fim, sobre o trabalho de João Bragança Gil é preciso sublinhar que há uma inegável força poética em, propositalmente, perseguir caminhos tão ambíguos. Em imergir-se em pensamentos reflexivos e procurar, nos interstícios das ideias, o seu desnudar. Como se, em contínuas ondulações, brotasse do chão de seu pensamento imagens que chamam por outras, e depois por outras, e depois por outras — naquilo que, talvez, seja uma mesma obra a transmutar-se em muitas.

 

João Bragança Gil

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Seu trabalho se desenvolve maioritariamente em uma pesquisa sobre formas de criação de espaços de diálogos e debates.

 

O texto foi escrito em português do Brasil. 

 



Primeira imagem: João Bragança Gil. Ways of Remembering. CODA (2022) com Francisca Aires Mateus, no Buraco, Lisboa. Foto: Photodocumenta. Cortesia do artista.

As duas imagens seguintes: João Bragança Gil. AnticlineEstudo do Meio (2023), Exposição Coletiva organizada pela PURGA com curadoria de Isabel Cordovil e Rudi Brito nas Carpintarias de S. Lázaro, Lisboa. Fotos: João Bragança Gil. Cortesia do artista.


 

 Notas:

[1] Um bastidor de servidor é uma estrutura metálica projetada para acomodar e organizar equipamentos de tecnologia, como servidores, switches de rede, unidades de armazenamento, entre outros dispositivos relacionados.

[2] Walter Benjamin, “A Imagem de Proust”, 1929.

[3] André Bazin, “Ontologia da Imagem Fotográfica”, 1945-1958.

[4] Susan Sontag, “Sobre a Fotografia”, 1977.

[5] Adaptação do trecho: “Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo.”, de Walter Benjamin em “Pequena História da Fotografia”.

 

João Bragança Gil. Academy Winning Geographies 1927—202X (First Fragments of Imaginary Landscapes), 2021. Dip me in the river, drop me in the water! (2021) com curadoria de Carolina Trigueiros, na Galeria Pedro Cera, Lisboa. Foto: Bruno Lopes. Cortesia do artista.

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