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Emily Wardill: Acrónica e à solta

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Estelle Nabeyrat

 

Após a inauguração de um novo projeto na Kunst-Werke Berlin (Identical, de 10 de junho a 10 de agosto), a artista e cineasta britânica Emily Wardill apresenta a sua obra em Hourless and at large, com curadoria de Barbara Piwowarska, patente na Casa São Roque durante o resto do verão. Fundada na intersecção entre o experimental e o retrospetivo, esta exposição apresenta-se como uma espécie de esclarecimento sobre o complexo e polimórfico trabalho da artista.

Wardill tem criado uma notável reputação com os seus projetos de instalação e filmes, três dos quais se encontram atualmente em apresentação na Casa São Roque: Game Keepers Without Game (2009), que lhe venceu o Jarman Award em 2010, I Gave My Love a Cherry that Had No Stone (2016) e Night for Day (2020). À semelhança de muitas das suas peças mais recentes, as suas obras cinematográficas, constituindo-se de diversas camadas imaginárias de sentido, retiram inspiração estética do "cinema expandido" — expressão cunhada na década de 1960 para descrever filmes que alargavam os limites do cinema e a condição do espectador.

Com Hourless and at large, a sua segunda exposição individual no Porto, a artista veicula a sua metodologia de fratura narrativa, recorrendo aqui também ao contexto expositivo. Partilhando as suas preocupações relativamente à autenticidade com que a realidade se revela, Emily Wardill está particularmente interessada na relação que se estabelece entre este mundo imaginário e o mundo concreto. Neste sentido, a exposição apresenta uma seleção meticulosa de obras realizadas nos últimos 14 anos. Trata-se de um espaço singular de imersão na obra de uma artista cuja prática atravessa o cinema, a fotografia, o desenho, a objetualidade, entre outros, e explora em permanência as complexidades e limitações da representação.

Com um conjunto considerável de obras que inclui os três filmes acima referidos, a exposição revela-se uma meditação introspetiva sobre uma particular seleção da qual fazem parte adereços vários dos seus filmes (um par de sapatos personalizados, uma pintura, mobília moderna, por aí adiante) que se afiguram componentes dos papéis desempenhados pelos atores mas também símbolos estatutários, provas de crime e vestígios fictícios. Esta seleção é exibida conjuntamente com outras peças da artista, o que gera uma certa confusão relativamente àquilo que se vê.

Orquestrado de forma admirável em colaboração com a curadora Barbara Piwowarska, o próprio espaço da Casa São Roque torna-se uma das potenciais ficções. Ainda que o espaço expositivo sirva de lembrança contextual, encerrando-se numa velha moradia que está estruturalmente vinculada a várias apresentações prévias do trabalho da artista, Hourless and at large não é de forma alguma depreciativo daquilo que a precedeu — longe disso. Se as suas obras Night for Day (exibida no contexto de Bassness, Rialto6, em Lisboa, de 11 de fevereiro a 29 de abril de 2022) e I Gave My Love a Cherry that Had No Stone (produzida especificamente para Mat Black and Rat, na Gulbenkian, em Lisboa, de 2 a 28 de junho de 2017) já foram apresentadas em Lisboa e não só, esta é a primeira vez que se reencontram em Portugal fora da capital. Trata-se de uma oportunidade de, a partir da lógica da encenação e no quadro de um espaço que revela uma saliente carga psicológica, se experimentarem formas específicas de interação também onde a exposição permite gerar ligações que desafiam a condição espaciotemporal da experiência site-specific.

Aqui, a artista optou por manter um diálogo particular com o espaço e a história da Casa São Roque. Construída em 1759, esta casa burguesa, cujo interior tem vindo a alterar-se ao longo do tempo em conformidade com os gostos dos residentes, dá início ao percurso expositivo na antiga sala de jantar. É aí que se encontra Sleep Patterns and Musical Chairs (2023), uma instalação de luz e som produzida especificamente para a ocasião e apresentada numa divisão novecentista modelada a partir do historicismo francês, que por si mesmo se inspira em glórias idas.

É através da relação com este ponderoso conservadorismo que Emily Wardill nos mergulha numa experiência sensível que contrasta com a arquitetura interior e a sua solene decoração: Sleep Patterns and Musical Chairs contraria o sentido de superioridade paternalista que prevalece sobre o espaço, remetendo-nos antes para uma atmosfera de distorção musical através do piano de Daniel Bernardes. Aqui, o espectador tem de se esforçar para conseguir reconhecer os hinos nacionais que tocam em dissonância; o teto dispersa raios de luz que aparentam provir dos faróis de algum carro a passar na rua de baixo; e assim se parece gerar um cenário. Apresentando-se em séries que vão da luz do dia ao chiaroscuro, este quarto acaba por promover a metáfora cinematográfica. A arquitetura materializa um plano-sequência do qual, sob a forma de uma fuga, surge uma ficção que se mostra alternativa ao imperialismo implícito do espaço e ao sinistro romantismo que o acompanha.

 

 

Continuando a visita, os três filmes previamente referidos são apresentados no rés-do-chão, cada um na sua divisão, conseguindo o visitante deslocar-se facilmente entre cada ambiente. Percebemos então que, pela própria estrutura da exposição, o percurso se abre à narrativa dos filmes. Elaborada enquanto seguimento lógico e sensível de apresentações prévias, esta nova exposição opera diversas formas de sobreposição e de mise-en-abyme que se sugerem nalguns dos espaços revelados em determinadas cenas dos filmes. Por via da sua proximidade, as imagens contaminam-se umas às outras, assim dando continuidade à expansão do seu cinema.

I Gave My Love a Cherry that Had No Stone e Night for Day são duas das grandes obras cinematográficas que Emily Wardill realizou em território português. A primeira foi filmada no foyer do Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. Acompanhando a performance de um dançarino, o filme explora a relação performativa entre o corpo e o espaço, bem como a contaminação mútua destas entidades. Tanto a construção do filme como a forma de apresentação — com o ecrã inclinado, aparentemente instável — suscitam a desestabilização da posição do espectador. O segundo filme, por outro lado, parte de uma relação fabricada entre mãe e filho através da qual se imagina o que aconteceria se uma mãe com uma visão utópica comunista, na figura de Isabel do Carmo — combatente revolucionária contra o regime fascista português —, desse à luz um filho de tendências tecno-utópicas. Neste caso, a artista instala um ecrã de grandes dimensões diante de um volumoso banco constituído por dois materiais distintos. Mais parece que este banco foi feito para os visitantes o contemplarem do que para se sentarem.

O filme Game Keepers Without Game traz para o contexto britânico contemporâneo a peça de Calderón de la Barca. Escrita no século XVII, esta obra conta a história de uma rapariga que é entregue para adoção em tenra idade, traçando o penoso retorno à vida familiar após o seu abandono. A peça, por sua vez, está instalada também diante de um outro banco, numa configuração frontal clássica, como que acompanhando a genealogia imersiva que a artista propõe que experimentemos.

Emily Wardill é uma artista que recorre a uma variedade de processualidades de desconstrução, que forja narrativas a partir de conteúdos estruturais e que questiona não apenas a realidade mas também os modos de construção do real. Neste âmbito, mais do que propor-se enquanto objeto de observação do espectador — mais do que configurar outra oportunidade de alcançar um público cada vez mais alargado —, Hourless and at large questiona a sua relação com o visível e transporta o visitante para o centro do processo da receção.

O resto da exposição compõe-se de instalações e objetos pendurados fundados numa subtil amálgama de géneros: instaladas ao mesmo nível, as obras previamente mencionadas são expostas em conjunto com uma variedade de adereços provenientes dos filmes. Em toda a instalação, com uma organização meticulosa, os títulos dos objetos apresentam tanta diversidade como as suas materializações, incluindo elementos readymade e peças produzidas pela artista, assim promovendo uma confusão deliberadamente orquestrada no que concerne à condição estatutária dos elementos patentes. Assumindo ou não um carácter artístico, só o testemunho da presença de um dado elemento no filme confirma o seu estatuto, ainda mais tendo em consideração que tal ilusão é suscitada através de adereços que são réplicas de determinadas obras. Disto é exemplo a reprodução de uma pintura do artista cubano Wifredo Lam — ainda que não tão idêntica à original, aparentando ter sido vandalizada —, pendurada na base de uma escadaria, como se fizesse parte da decoração original da Casa São Roque.

Também entre o rés-do-chão e o segundo andar da casa aparecem várias obras, por vezes como se, da mesma forma, integrassem a decoração do interior e por outras como se convocassem os fantasmas do passado. Aqui encontramos, como exemplo, Through the walls (2016), uma série de esculturas em relevo que, na verdade, são camisas dobradas que se fundem com o estuque, cada uma delas intitulada a partir de designações de esculturas de origami. Porém, o motivo da camisa também surge num dos filmes, assim desdobrando novamente a leitura do espectador através da ação recíproca de todos os sentidos e da oscilação das suas fronteiras.

 

Emily Wardill 

Casa São Roque Centro de Arte

 

Estelle Nabeyrat é curadora e crítica de arte (membro da AICA) vivendo entre a França e a Espanha, atualmente leciona no departamento de design da ENS-Paris-Saclay. Recentemente foi curadora de Langages tissés, Isabel Carvalho no Centre d’art Le Lait, Albi, Falso sol, Falsos Olhos, Elisa Pône nas Galerias Municipais de Lisboa. Com Pedro De Llano, recentemente liderou uma pesquisa sobre artistas no exílio (América Latina e Caribe) para o Cnap, Coleção Nacional da França em Paris. Ela é a co-organizadora com a artista Eva Barto do ForTune, programa sobre condições de trabalho de artistas na webrádio DUUU*.Escreve regularmente para Le Quotidien de l’art (fr), Camera austria (aut), Texte zur Kunst (de).

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro.

 

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Emily Wardill, Acrónica e à solta. Vistas da exposição na Casa São Roque, Porto, 2023. Fotos: Filipe Braga. Cortesia da artista e  Casa São Roque Centro de Arte.

 

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