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Perfil: Musa paradisiaca

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Paula Ferreira

           

Desde um Sol artificial, uma fonte de luz e calor concentrados, o tempo dentro da sala escura é marcado por um cíclico apagar e reacender — uma simulação da natureza intermitente do curso de um dia. Ao redor, qualquer materialidade se dissipa, abandonando o corpo em um negro vácuo e, assim, tornando esse Sol a única referência espacial possível. Como se presenciássemos um momento para além do futuro, no qual poucos resquícios de humanidade persistiram, tal Sol se transmuta em uma estrutura metálica de presença opressora e divide a origem de sua luz, antes única, em pequenas esferas, como réplicas de si mesma. No fundo oposto da sala onde o novo Sol ostensivamente se faz presente, três objetos feitos para a escuta e reprodução sonoras possibilitam a perturbação do sepulcral silêncio. Pela primeira vez desde que adentramos o espaço, alguma presença familiar é reconhecível: um adulto e uma criança engajam em uma conversa sem perceptível linearidade ou nexo, mas que, entretanto, possui um evidente caráter dialógico. Imersos no soturno vazio desse espaço espetacularmente construído, perdemos a capacidade de distinguir o início do fim, o surgimento do desaparecimento da linguagem, o passado do presente e o presente do futuro.

A ambiguidade desse estado não é fruto do acaso, mas característica desenvolvida ao longo de todo um percurso e fulcral ao ímpeto criador da dupla que tem assinado trabalhos sob a insígnia de Musa paradisiaca desde 2010. Em Solar, exposição inaugurada no último mês de Maio na Appleton [Box], ela é, entretanto, levada a certo extremo. Talvez seja essa uma consequência de processos que, costumeiramente, envolvem a participação ativa de muitas pessoas que colaboram com a dupla composta por Eduardo Guerra e Miguel Ferrão. Especificamente nessa exposição, a curadora Claudia Pestana foi uma peça fundamental ao puzzle criativo responsável pela reapropriação de Solar Boat — uma experiência limítrofe entre performance e happening realizada no âmbito da bienal BoCA, em 2021, na qual a mesma instalação sonora foi apresentada ao longo de uma viagem em um barco movido à energia solar por uma lagoa em Ria Formosa, em Faro, Algarve.

No percurso de deslocamento físico e conceitual da obra, desde a ampla e idílica paisagem algarvia até o white cube da galeria, a representação da presença solar — assim como o próprio entendimento dessa palavra — se transmutou do abstracionismo à materialidade; ao passo que a espacialidade seguiu a contramão, se desprendendo por completo de qualquer referencial figurativo ou material e encontrando no negro vácuo uma nova maneira de existir. Em Solar, as únicas imagens que se revelam são aquelas que o pensamento, em conversa com a instalação sonora, forja no imaginário — tendo  elas lastro em uma percepção dialógica da obra ou não. Tal interação que assim se cria configura uma hipótese, intrinsicamente relacionada à prática da Musa paradisiaca: a de uma protolinguagem nascida nos interstícios dos sentidos, das palavras, das imagens e de tudo aquilo que configura o sensível.

Esse exercício, ao qual poderíamos referenciar enquanto uma espécie de abstração, reavaliação ou, ainda, desarticulação da linguagem e da fala, tem sido recorrente no percurso da dupla de artistas. Junto à ideia de colaboração no processo criativo, talvez seja aquilo que mais caracteriza o seu trabalho — mesmo quando as imagens o povoavam com mais veemência, principalmente através da escultura, mas também do vídeo, eram as palavras a aparente preocupação primária e, especificamente, o que acontecia quando elas encontravam umas às outras.

Como é sugerido no texto Silogismos em Movimento, escrito por Sofia Lemos e publicado a propósito do catálogo Visões do Mal-entendido, sobre o trabalho da dupla, parte daquilo que é objeto de estudo do campo da linguística (a origem da linguagem) pode facilmente ser mal-interpretada e subjugada quando analisada sob uma perspectiva que privilegie demasiadamente uma visão de mundo pautada pelo racionalismo europeu. Contra tal subjugação, podemos pensar que a valorização, ainda que antes no campo artístico do que na teoria linguística, do sensível na concepção da linguagem possa emergir como uma possibilidade. O que, talvez, significaria compreender a linguagem a partir das relações capazes de gerar subjetividades, sejam elas entre uma pessoa e outra ou entre o humano e o não-humano. Tal ideia irrompe com uma força sutil no trabalho da Musa, mesmo quando ainda em um estágio embrionário, e permeia a sua produção de maneira constante.

           

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Ao olhar para os últimos treze anos de trabalho desenvolvido pela dupla de artistas e por seus colaboradores, tal interação entre sensibilidades parecia quase sempre exigir ser manifestada em forma de imagens. Nos projetos anteriores e até a exposição The I of the Beeholder (2020), na Fundação Carmona e Costa, havia uma predominância da escultura aliada ao som e o vídeo como veículos para essa prolongada conversa. Entretanto, em certa altura, tais componentes plásticas pareceram mais tímidas, por vezes quase ausentes. Essa impressão era capaz de sugerir uma mudança na atitude artística da dupla, ou então uma espécie de fechamento de ciclo — como se as suas ideias nascessem a demandar serem plasticamente materializadas e, ao longo do tempo, fossem se abstraindo até que sobrasse de si apenas uma memória sonora. Ao menos era esse o engano, até ouvir Miguel e Eduardo a planejarem um futuro para o seu trabalho, no qual as imagens voltam a reivindicar um papel fundamental.

Do privilégio de poder, pela primeira vez, trabalhar ao seu próprio ritmo e sem a obrigação de cumprir com datas para um projeto específico, os dois artistas dividem comigo aquilo que está a se formar em seus horizontes e que tem feito parte de suas rotinas de trabalho ao longo dos últimos dois anos. À procura de pessoas cuja prática diária envolva o conhecimento de algum ofício — e, por tal, se entendem as atividades que exigem uma especialização e que, de alguma forma, envolvam um sentido de mecanização do corpo —, a dupla inaugurou uma investigação imagética por aquilo que acontece quando a tecnologia é percebida como uma extensão do humano, como se referem ao discorrerem sobre o assunto. Por uma metodologia quase literal, tal investigação envolve imagens cuja captura depende de dispositivos de filmagem que simulam esse prolongamento do corpo humano. Em certa medida, a própria escolha por tais meios de captura de imagem se relaciona com a conotação mecanicista do termo “ofício”. Para além disso, as pessoas envolvidas nessa nova jornada da dupla têm trabalhos que necessariamente envolvem o cuidado ou a proximidade com outres (sendo esses humanos ou não-humanos).

Ouvi-los em suas especulações ainda dispersas sobre o futuro dessa pesquisa proporcionou o vislumbre de dois pontos que são passíveis de serem identificados enquanto centrais em sua prática artística: a ideia de um novo trabalho ser, na verdade, uma espécie de vida dupla daquilo que foi realizado anteriormente — como se a obra fosse sempre uma obra em aberto, seguindo uma definição feita por Luigi Ghirri —; e a importância da ambiguidade para uma prática que é sempre limítrofe: que anuvia as fronteiras de autoria, renega a necessidade institucional de categorização dentro da arte contemporânea e afirma a vontade de existir e se bastar em si mesma.

Sobre a obra aberta, é sempre instigante testemunhar um trabalho que encontra em si mesmo a razão para as suas metamorfoses. Que permanece flexível e passível de mudanças, e avança trazendo em si resquícios do que fora anteriormente. Que existe à mercê dos caminhos que o atravessam. E, sobre a ambiguidade, há certa graça em se ver diante daquilo que não se permite definir ou revelar por inteiro. Do que constantemente serpenteia entre as categorias criadas pela necessidade humana de catalogação. Do que é fugidio.

Contínua e indisciplinada, assim se pode caracterizar a prática da Musa paradisiaca.

 

Musa paradisiaca

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Seu trabalho se desenvolve maioritariamente em uma pesquisa sobre formas de criação de espaços de diálogos e debates.

 

Este texto foi escrito em português do Brasil.

 

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Musa paradisiaca, Solar. Vistas da exposição na Appleton Square, Lisboa, 2023. Fotos: Pedro Tropa. Cortesia Appleton Square e Musa paradisiaca. 

Musa paradisiaca, Solar Boat. Vistas da intervenção na BoCA Bienal, 2021. Fotos: Boris Dmytruk. Cortesia BoCA Bienal e Musa paradisiaca. 

Musa paradisiaca, The I of the Beeholder. Vistas da exposição na Fundação Carmona e Costa, Lisboa, 2020. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia Fundação Carmona e Costa e Musa paradisiaca. 

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