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Anna Hulačová: Pheromones and Gentlemen

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Enzo Di Marino

 

No que toca à escultura, e especialmente quando a escultura representa o ser humano, a generalidade do discurso, hoje mais do que nunca, concentra-se inevitavelmente na função da estatuária, no significado intrínseco da peça que procura monumentalizar a temática representada, assim a votando à eternidade da história.

Como esta processualidade ainda hoje não é consensual, penso que o leitor não levará a mal que eu não sugira uma possível resposta à problemática. O debate em torno deste tópico, um pouco à semelhança de tudo o que acontece nos dias de hoje, parece polarizar-se em torno de duas posturas diametralmente opostas: de um lado, temos aqueles que ainda consideram fundamental a preservação — e talvez até a construção — de monumentos dedicados aos feitos e aos heróis da história; e, do outro, encontramos os que julgam necessário derrubar alguns dos monumentos (senão todos) nos quais se incluem homens brancos que, por via de uma estranha reinterpretação do passado a partir de um contexto contemporâneo, são acusados de diversos crimes intemporais.

Ora, Pheromones and Gentlemen é absolutamente uma exposição — a segunda de Anna Hulačová na Galeria Pedro Cera, em Lisboa — que, à primeira vista, pode ser qualificada como "estatuária"; porém, percebemos rapidamente que existe um pequeno curto-circuito na clássica oposição sujeito-objeto.

Ao entrar na galeria, chama-nos imediatamente a atenção um grupo de homens esculpidos em cimento. Estes cavalheiros, convocados a partir de um passado menos recente, parecem conversar e fumar com a maior tranquilidade, inteiramente alheios àquilo que os rodeia. (Até ao facto de que um deles está encostado a um ferro de engomar gigante! Mas já lá vamos.) Talvez a primeira característica que se evidencia seja a vigorosa materialidade das obras — todos os detalhes esculpidos em cimento irradiam um cinzento de uma anonímia ofuscante. É impossível ficar indiferente à forma como a artista manipula a matéria através de uma habilidosa articulação de volumes e texturas, assim atribuindo ao cimento uma plasticidade que normalmente se associa a materiais mais nobres. Até aqui, tudo parece normal; mas logo notamos que as cabeças acabam em superfícies planas, como se os rostos das figuras tivessem sido perfeitamente cortados na transversal. Em vez das feições típicas de um rosto humano, encontramos desenhos e serpenteados em grafite, quase como se tratassem de movimentos cósmicos de planetas distantes. Estas esculturas, que fazem lembrar algum brutalismo soviético, subvertem inteiramente a ideia da estatuária clássica; e, ao invés de "celebrarem" uma especificidade, parecem exaltar a anonímia. Monumentos a ninguém!

A esta complexidade, que poderíamos qualificar como puramente técnica, subjaz, no entanto, o que se esconde no seu interior: um conjunto de referências e símbolos que revelam uma nova narrativa. E, mal tomo consciência disto, uma série de contrastes começam a despontar na enorme instalação da primeira sala da galeria.

Um ferro de engomar gigantesco que quase parece uma nave espacial gera um contraste evidente no olhar do espetador. As suas formas metálicas e reluzentes remetem para um mundo que é particularmente distinto daquele do cimento, poroso e de remate imperfeito. Este novo elemento parece revelar-se uma homenagem à técnica, a tudo o que nasceu da mão e do engenho dos seres humanos. Ainda que se trate de uma entidade inanimada, e decididamente artificial, apresenta-se aqui uma nova ambiguidade. O cabo que, noutras circunstâncias, deveria fornecer eletricidade ao eletrodoméstico leva-nos antes para um terceiro plano escultórico através das suas linhas voluptuosas e curvas sinuosas. No fim da linha, uma abelha pousada ao centro de uma orquídea alimenta-se e, inadvertidamente, recolhe pólen que depois transportará para outras flores, assim possibilitando a continuidade da existência e a reprodução da flor. À semelhança dos restantes, este novo plano, que poderíamos designar como "natural", possui a sua própria especificidade material, que difere dos elementos técnicos e humanos. A contrastar com a entidade reproduzida, temos um azul sintético, quase plástico, e definitivamente artificial.

Partindo de uma perspetiva espiritual e simbólica, desvela-se nitidamente uma primeira interpretação: já desde a Grécia Antiga que a abelha é vista como uma representação de imortalidade e fertilidade, mas também daquilo que existe para lá da vida. Anna Hulačová, uma vez mais, confronta-nos com símbolos e elementos contrastantes — vida e morte, artificial e natural, masculino e feminino. Afinal, independentemente de quão anacrónico possa ser, a ideia de conflito sempre foi fulcral para gerar equilíbrios políticos e sociais, ou até apenas novas ideias, se pensarmos nela como um debate entre posições opostas. O trabalho da artista checa parece centrar-se — e esta é a chave para o compreender — na possibilidade de criar novas e diferentes narrativas através da convocação e hibridação de posições que muito facilmente são vistas como polos opostos de uma dada problemática.

Hoje, mais do que nunca, lemos tendencialmente a contemporaneidade através de um conjunto de dicotomias — entidades que existem em planos paralelos e que, por vezes, se cruzam, mas que, pensamos nós, sempre permanecerão divididas. Pensando naquela que será a mais clássica de todas as divisões, e que parece estar nas bocas de toda a gente, a resposta surge-me com facilidade: existe uma definição cristalina daquilo que é natural, que se opõe radicalmente à noção daquilo que é artificial. E a enorme instalação que dá à exposição o seu título parece berrar para nós quando, na nossa teimosia, nos enganamos a esse respeito. Aí, os três elementos (o natural, o humano e o tecnológico) fundem-se num só corpo, remetendo-nos para uma interligação que agora se revela inevitável, e que talvez nos transporte para um futuro no qual as fronteiras entre diferentes categorias se tornarão cada vez mais indistintas e indefiníveis. No entanto, a artista não se limita ao clássico desfecho distópico que é tão querido das narrativas (cinemáticas, sobretudo) da ficção científica contemporânea. Pelo contrário, Hulačová parece falar-nos de futuros possíveis: em particular, neste futuro utópico e distópico, a artista suplanta certas relações e certos modelos de poder que, como qualquer ruína, estão condenados à letal imortalidade da história.

Abraçando estas convicções, os elementos que inicialmente me pareciam contrastar entre si afiguram-se agora muito mais harmoniosos; e, olhando para as outras peças da exposição, também começo a perceber a fluidez material e narrativa que desponta das esculturas. Com esta consciência, ao entrar na segunda sala da galeria, a obra Stuck in a Bush configura a melhor das conclusões dramáticas. Com os seus ramos espinhosos, estas silvas, numa tonalidade de azul "muito natural", envolvem um par de elementos em cimento — ruínas de um mundo passado —, entre os quais se inclui, por exemplo, uma máquina de barbear elétrica com corpo de inseto.

Uma vez mais, Anna Hulačová apresenta-nos elementos e materiais que parecem provir de diferentes épocas, estilhaçando desta forma a convenção de que a história é cíclica e de que o progresso é linear. E assim nos oferece visões possíveis de Days of a Future Past!

 

Anna Hulačová

Galeria Pedro Cera

 

 

Enzo di Marino [Vincenzo Di Marino] é um curador Italiano, sediado em Nápoles. Em 2018, co-fundou o projecto curatorial Bite The Saurus. Colaborou com a Fundação Prada, Milão; Museu Madre, Nápoles, entre outras. Em 2019-2020 foi curador assistente no MAAT. 

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro.

 

 





Anna Hulačová: Pheromones and Gentlemen. Vistas da exposição na Galeria Pedro Cera, Lisboa, 2023. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e  Galeria Pedro Cera. 

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