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Mariana Gomes: Neo-Pós-Neo

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José Marmeleira

 

Mariana Gomes apresenta a sua segunda exposição individual na galeria Cristina Guerra, em Lisboa, — Neo-Pós-Neo — que, segundo a própria, é uma referência a uma espécie de novo movimento que já não existe. A Contemporânea conversou com a artista sobre os seus vinte anos de actividade ao serviço da pintura e do desenho.

 

 

José Marmeleira (JM): Lembras-te de alguma epifania que te tenha levado à decisão de ser artista?

 

Mariana Gomes (MG): No meu percurso pessoal, o que eu mais queria era ter algum destaque nas artes plásticas, especialmente no desenho. Sempre fui uma desenhadora compulsiva. Tornou-se muito claro que era esse o percurso que ia e queria ter. Escolhi artes, depois tive contacto com o cinema, com a literatura. E comecei a investigar as coisas por mim própria.

 

JM: Depois chegaste à Faculdade de Belas-Artes de Lisboa.

 

MG: Sim, fui para pintura. Era o curso que queria, mas, passado pouco tempo, comecei a questionar um pouco a disciplina, a experimentar uma série de coisas. Vieram o vídeo, a instalação. Na verdade, não decidi nessa altura que queria ser pintora. Esse momento só surgiu no último ano da Faculdade e, mesmo assim, com algumas reticências. Só quando passo um ano inteiro a pintar, é que se verifica, digamos assim, esse afunilamento. Isto foi em 2008, precisamente o ano em que entro na Módulo. Acabo a universidade em 2007 e no final do ano já tinha participado numa colectiva. Em 2008 disse, para mim mesma, que era aquilo que queria fazer. Mas ainda tinha muito para aprender e ainda tenho...

 

JM: Continuavas a desenhar...

 

MG: Sim, continuava a desenhar. Curiosamente, o momento presente é aquele em que menos me encontro a desenhar.

 

JM: Porquê?

MG: Sempre fui uma desenhadora compulsiva, até de um modo um pouco aflitivo. Não conseguia estar numa esplanada sem estar a desenhar. Estava constantemente a desenhar. Tinha uma afinidade com o desenho que não tinha com a pintura. Mas quando termino a faculdade, fico praticamente um ano a pintar. Quase não desenho e é quando começo a trabalhar como assistente de bordo que volto ao desenho. De algum modo, era como se estivesse a levar a minha casa às costas. Levava o meu mundo comigo através do desenho. Essa compulsão voltava, assim, outra vez e a pintura tornava-se mais espaçada. Agora estou numa situação diferente. Talvez agora por estar tão focada na pintura, penso em voltar a trabalhar no desenho...

 

JM: Deixa-me voltar ao teu percurso na Faculdade de Belas-Artes. Podemos descrevê-lo como solitário ou estiveste envolvida em projectos e actividades de cariz colectivo?

 

MG: Não, o meu percurso foi sempre solitário. O que se fazia não era, na minha opinião, muito interessante e, por outro lado, não se fazia muita pintura. Houve pessoas da minha geração que têm hoje um trabalho conhecido, mas de facto trabalhei muito sozinha.

 

JM: Mais tarde, dez anos depois, envolveste-te no projecto do fanzine Canito...

 

MG: Sim, mas aí, e com o projecto do Sindicato dos Pintores, já fazia parte de uma equipa. Sozinha nunca estive envolvida num fanzine (ou no universo dos fanzines)​​​​. Nos dois casos, o que procurei, e quis fazer, foi tentar trabalhar criativamente com outras pessoas, conhecer melhor outros artistas. Precisamente porque sempre tive um caminho solitário.

 

JM: Fala-me do Canito. O que é?

 

MG: Para começar, é feito com várias pessoas. Quando pensei na publicação, não quis fazê-la sozinha. Mas voltando à tua pergunta, diria que é uma coisa entre uma revista de variedades e a TV Guia, com uma certa displicência em relação ao meio intelectual em que os artistas estão inseridos. A finalidade era permitir aos participantes partir a louça toda. O que é engraçado é que, de facto, tivemos participações engraçadas, mas ninguém partiu a louça verdadeiramente. A próxima edição vai sair em Outubro...

 

JM: No Canito, além de ti, estão...

 

MG: O Rodrigo Gomes, o Fábio de Carvalho, a Joana Leão. Somos um grupo bastante heterogéneo, o que acho bastante importante.

 

JM: Falemos agora um pouco da exposição Canhota, com a curadoria do Bruno Marchand na Fundação Carmona e Costa. Vimos nela uma série de referências extra-artísticas: do Béla Lugosi ao Lou Reed, passando pelo cinema de série B ou Z, pelo cantor português Marante ou pela imagem do Barbas [do homónimo restaurante na Costa da Caparica]. Ainda hoje penso nestas referências e não sei como as interpretar: elementos diarísticos, objectos de um gosto, coisas de uma vida?

 

MG: O meu desenho é muita coisa. Não foi exposto nem metade nessa exposição. A Canhota foi uma abordagem aproximada dessa faceta do meu trabalho, que nunca foi intencional. Essas personagens, desses universos mais populares, também se cruzam com os da alta cultura, mas estes últimos acabam por ficar mais escondidos. Tenho uma aversão a um certo snobismo (risos). E gosto de trazer esse lado popular para o meu trabalho, mas não enquanto choque. Identifico-me com essa coisa meio maldita da baixa cultura...

 

JM: Também são coisas que fazem parte de ti...

 

MG: Também é isso, do Barbas ao [Arthur] Rimbaud...

 

JM: Quando dizes que essa abordagem não é intencional, referes-te a um propósito conceptual prévio. Não está lá.

 

MG: Não. Diria que há um lado mais biográfico. E não tem que ver com o carácter crítico de uma certa apropriação. Não há o peso de querer melhorar o mundo ou de o denunciar...

 

JM: Essas referências estão menos presentes na pintura. Como distinguirias o teu desenho da tua pintura?

 

MG: São bastantes diferentes. O desenho está mais próximo desse lado autobiográfico, por causa dessa compulsão que referi. Há poucas pinturas que citam o universo desse desenho. Sempre trabalhei a pintura como pintura e não como universo de referências que têm de aparecer. Mesmo quando acabam por aparecer, misturo tudo. Talvez a exposição anterior a esta [Solilóquio na Galeria Cristina Guerra] estivesse associada a uma coisa mais pop, mais gráfica, a esse tipo de cultura. Mas acho que [a pintura no meu trabalho] tem mais que ver com desafios pictóricos do que com o discurso que se liga ao desenho. No texto da exposição Neo-Pós-Neo, escrito pelo Nuno Faria, as referências mencionadas vêm da conversa que tivemos no atelier. Creio que sempre estiveram lá, no meu trabalho, mas se calhar são mais óbvias nestas pinturas.

 

 

JM: Considerarias Neo-Pós-Neo um momento de passagem, de charneira, na tua produção pictórica?

 

MG: Sim, completamente. O meu trabalho já tem 20 anos, mas acho que agora alguma coisa mudou e eu ainda não entendi muito bem o quê.  Ainda não aterrei no atelier para perceber que folhas é que caíram. Foi uma exposição muito difícil, trabalhei muito o overpainting. Trabalhei sobre pinturas que tiveram expostas na exposição anterior e, ao mesmo tempo, hesitei entre guardar algumas e não ficar refém de outras, o que me impediria de construir novos trabalhos...

 

JM: As referências extra-pictóricas que encontramos no teu desenho vão continuar a aparecer ou ficarão em suspenso durante algum tempo?

 

MG: Vão continuar a aparecer. Entretanto, fiz outras incursões para tentar materializar essa parte do desenho. Fiz um vídeo que integrou a exposição Salada em Torres Vedras, em 2022 [com o Pedro Valdez Cardoso e o Rui Horta Pereira]. Foi a primeira vez que expus vídeo. É uma materialização desse universo entre o ridículo e o terror. E fiz recentemente com o meu irmão [Rodrigo Gomes] uma curta de terror de dois minutos para o MOTELX. Divirto-me a fazer isto.

 

JM: O teu trabalho na pintura tenderá a esbater essas referências exteriores? Elas continuarão presentes na tua obra?

 

MG: Continuam, mas seguindo próprio rumo. Não são uma bandeira do trabalho, mas, diria, antes um satélite. Neste momento, estou a fazer outro tipo de experiências e talvez, lá para frente, venham a aparecer noutro corpo de trabalho, não sei. Mas no desenho aparecerão sempre...

 

JM: A pintura é outro tipo de pesquisa....

 

MG: Sim, acho que sim. Obviamente, a mão é a mesma, a pessoa é a mesma. Essas coisas estão lá, mas de um modo diferenciado.

 

JM: De qual das duas retiras mais satisfação?

 

MG: É por fases. Neste momento, será, talvez, a pintura. Abriu-me uma porta em que me apeteceu entrar. A do desenho, comecei a abri-la, mas ainda não cheguei ao ponto de poder ou querer entrar já...

 

JM: Deixe-me fazer-te esta pergunta. Ao logo da tua vida artística, sentistes obstáculos que não existiriam ou que existiriam menos não fosse a tua condição de mulher artista?

 

MG: Sou simpatizante do feminismo, mas, sinceramente, as dificuldades que senti não tiveram que ver com essa condição. Senti dificuldades em ter alguma estabilidade para poder criar completamente. Mas isso talvez tenha acontecido porque não quis pertencer a um circuito que, no sentido social, me poderia trazer benefícios. Isso foi o mais difícil. Não podia pagar um atelier, o que sempre quis, e não podia ser independente para pagar as minhas contas. Tive, como vários artistas, de procurar vários trabalhos, para poder sustentar a minha actividade artística. Julgo que isso tem mais que ver com a construção de uma carreira na sociedade o que é sempre muito difícil. A minha carreira começou em 2008 quando ninguém comprava pintura. Recordo que o projecto do Sindicato dos Pintores só começa em 2020. Considerava que havia vários colegas pintores com trabalhos que mereciam ser vistos e lancei o projecto. Felizmente, as coisas mudaram, mas, seja como for, eu continuaria a pintar (risos)...

 

JM: Sentes afinidades com alguns desses pintores?

 

MG: Sim. Por exemplo, a Sara Mealha, o Luís Rocha, o Pedro O Novo, o Carlos Gaspar, têm trabalhos muito interessantes e não têm a visibilidade suficiente.

 

JM: Como chegaste ao título da presente exposição na Galeria Cristina Guerra; Neo-Pós-Neo?

 

MG: Queria fazer referência a uma espécie de novo movimento que já não existe. A vida e a produção de um artista encontram-se sempre nesta espécie de roda dentada e essa seria mais uma reentrância dessa roda. Mas não gosto de explicar muito, prefiro deixar as portas abertas...

 

 

Mariana Gomes

 

Cristina Guerra Contemporary Art

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 



Mariana Gomes: Neo-Pós-Neo. Vistas da exposição na Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa, 2023. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia da artista e Cristina Guerra Contemporary Art.

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