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O Armário Móvel

Von Calhau! 1 - © Nikolai Nech.jpg
Carolina Pelletier Fontes

 

 

— conversa com Benedita Pestana

 

O Armário é uma proposta expositiva que surge em Abril de 2014, provido de um carácter intimista e ancorado em vários outros projectos que o antecedem — o ciclo expositivo 5 estrelas e a Montra, que coabitaram sempre no número 128 da Calçada da Estrela, em Lisboa. Estes projectos relacionavam-se de forma independente, cada um detentor das suas próprias características expositivas. O factor comum: Benedita Pestana, a curadora destas iniciativas.

No tempo d’A Montra, em 2013, Benedita desafiava artistas a criarem obras para serem vistas somente do exterior (a rua). Uma das primeiras propostas foi de Catarina Botelho, com Inventário, uma montra que distinguia uma seleção de lojas Lisboetas encerradas devido à instabilidade económica vivida na altura. Benedita relembra que grande parte das montras foram realizadas sob o signo da Troika, num momento inusitado e fortemente político para a comunidade artística.

Por essa mesma altura, cruzou-se com O Armário que hoje conhecemos. Inicialmente, achou que este poderia servir o propósito de expor múltiplos e edições como uma extensão das participações n’A Montra. De uma forma muito orgânica, O Armário transfigurou-se nas mãos dos próprios artistas. Evocando esta transição, Benedita destaca o momento em que Armanda Duarte propôs uma instalação de tal forma completa para O Armário, com Baínha, que este revelou o seu potencial como ele próprio um espaço expositivo. Assim, em Junho de 2014, nasce este projecto de site specific e inicia-se o percurso que nos traz até ao dia de hoje. Nas palavras da curadora, convoca sem pudor a La Boîte-en-Valise de Marcel Duchamp ou a Galerie Légitime de Robert Filliou.

 

António Jío Duarte e Sandro Aguilar � ©Bruno Lopes
Sara Mealha � © Bruno Lopes
Sara & André � ©Raquel Melgue
Jeremy Panjeac � © Raquel Melgue
Nuno Henrique � © Raquel Melgue
Catarina Leitão � © Raquel Melgue

 

No sentido em que tudo é volátil, Benedita fala com fascínio das coisas que vão aparecendo e desaparecendo. Luísa Cunha não é uma figura nova para O Armário, uma vez que já foi desafiada diversas vezes para expor aqui o seu trabalho. Nomeadamente, com a peça de som Untitled (Do Nothing), que integrou o ciclo de exposições 5 estrelas, e actualmente faz parte da sua primeira exposição retrospectiva “HELLO! ARE YOU THERE?”, no MAAT, com curadoria de Isabel Carlos. Posteriormente, apresentou também no âmbito da Montra uma mise en abyme, com apenas uma fotografia de uma loja fechada, intitulada I’ll be Back!.

É principalmente pela imediatez e eficácia no seu diálogo que Benedita admira e atribui relevância ao trabalho de Luísa Cunha. Let’s Start Again! é um registo sonoro (ao qual temos vindo a ser habituados) que Luísa Cunha propõe para o seu primeiro Armário inaugurado no passado dia 24 de Junho. Nas palavras da artista “Chegado o fim da itinerância d’O Armário, fazemos um ‘start again’. Olhando para o projeto, deu-nos vontade de dizer ‘Vamos começar de novo’, num novo ou mesmo formato, em espírito de fim ou reinício. Esta obra é um registo de um loop de ações que se repetiram durante um ano. Desmontar montar desmontar montar desmontar montar. (...)”.

Esta exposição encerra um ciclo — O Armário Móvel — uma viagem de exposições que durou cerca de um ano. Ao fazer uma candidatura para um apoio da DGArtes em 2022, Benedita viu-se obrigada a elaborar uma planificação de exposições mais alargada. Nesse sentido, achou que poderia ser interessante levar O Armário a várias geografias e, por sua vez, colocá-lo em diálogo com diferentes espaços envolventes. Considerando que a mobilidade está na génese do próprio armário como objecto, na medida em que é um corpo em movimento, entre 2022 e 2023 O Armário Móvel assumiu por completo o seu carácter itinerante.

O périplo fora de portas iniciou-se em Coimbra, a 13 de Maio, no átrio do Colégio das Artes, onde apresentou com uma instalação de Gisela Casimiro, musicada por Odete. De seguida foi até Almada, com Alexandre Estrela; Porto, com Inês Brites; Caldas da Rainha, com Von Calhau!; Évora, com Belén Uriel. Por fim, voltou à sua origem com Luísa Cunha.

O Armário é, neste contexto, um corpo que está desprovido da sua funcionalidade principal. Vive numa permanente dualidade entre ser um dispositivo expositivo, mas também um protagonista que integra as exposições. Tradicionalmente, a função de um armário é a de guardar o que está no seu interior. A singularidade deste armário torna-se inconfundível por, invertidamente, querer mostrar o seu interior. Benedita reflete sobre a neutralidade que o Armário como modelo expositivo fixo apresenta em comparação com O Armário Móvel. Conclui que a envolvência contempla uma logística de adaptação mais complexa, o que por sua vez aumenta o grau do desafio para a criação. Neste sentido, é importante mencionar que não teria seria possível (tanto para os artistas como para a produção) a realização deste projecto fora de portas sem o apoio essencial da DGArtes.

É mediante a vertente corpo-espaço que os artistas se relacionam com O Armário, sendo que são infinitas as possibilidades que este tem vindo a assumir. Podemos observar o exemplo de Von Calhau!, que transformaram por completo a sua disposição para o colocarem em diálogo com uma peça de som. Ou, também, o exemplo de Jéremy Panjeac, quando trabalhou questões relacionadas com fronteiras e converteu estruturalmente o armário numa alusão a barreiras; ainda num outro momento, Nuno Henrique revestiu as costas d’O Armário todas em vidro. Por tudo isto, Benedita realça as capacidades de engenho e transformação dos artistas que tem vindo a observar em cada exposição ao longo dos anos.

Por norma, há apenas um impedimento que coloca em cada exposição: o de remover O Armário da sala onde se encontra. No entanto, e devido à sua estrutura em encaixe de madeira, este pode até ser totalmente desmontado. Let’s Start Again!, O Armário de Luísa Cunha, foge à regra na medida em que o próprio armário está ausente. No entanto, o som de um armário a ser desmontado vindo de uma coluna assume a materialidade, e imediatamente O Armário faz-se presente.

Realça que, para continuar a gerir este espaço num formato independente, é essencial não ter de estar submetida a um programa expositivo estabelecido a longo prazo. Considera importante a liberdade temporal de parar quando quer, sem ter de “institucionalizar” o projecto. São diversos os artistas que integram o seu imaginário de exposições, tanto consagrados quanto emergentes, e é com base nisso que vai construindo uma programação.

O Armário tem um historial que ultrapassa as 40 exposições. Inúmeros artistas já se relacionaram com o projecto e diversos públicos passaram pela Calçada da Estrela para o visitar. No âmbito d’O Armário Móvel, está neste momento a ser produzido um livro pela designer Ana Baliza que será publicado pela editora independente Sistema Solar. Esta publicação reúne todos os armários dos últimos 8 anos, e é sobretudo um gesto de agradecimento a todos os artistas que, de uma forma colaborativa, têm vindo a construir este projecto. O livro irá contemplar registos fotográficos muito distintos entre si, assim como contributos de várias figuras da comunidade artística sobre questões relacionadas com a gestão de um espaço independente. Em Setembro, O Armário vai desafiar Marco Franco a dialogar num formato diferente do que se fez ver até então.

 

O ArmárioLet’s Start Again! de Luísa Cunha pode ser visitada até ao dia 31 de Julho, todas as quartas, das 14h00 às 19h00 e por marcação.

 

 

Carolina Pelletier Fontes (Lisboa, 1995). Concluiu, em 2016, a Licenciatura em Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, na qual se especializou em práticas de conservação e restauro, o que mais tarde lhe permitiu estagiar no Museu Nacional de Arqueologia. Em 2019 realizou a Pós-Graduação em Estudos de Arte Contemporânea e Curadoria na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em 2020 concluiu o Mestrado em Curating and Collections na Chelsea College of Arts, em Londres. Vive e trabalha em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia,

 

 

Gisela Casimiro 1© VitorGarcia
Gisela Casimiro 5© VitorGarcia
Gisela Casimiro 6© VitorGarcia
Gisela Casimiro 3© VitorGarcia
INês Brites 1 - © Rui Pineiro
Inês Brites 2- © Rui Pinheiro
Inês Brites 3 - © Rui Pinheiro
Von Calhau! 1 - © Nikolai Nech
Von Calhau! 2 - © Nikolai Nech
Von Calhau! 3 - © Nikolai Nech
Alexandre Estrela 3 - © Nikolai Nech
Alexandre Estrela 2 - © Nikolai Nech
Alexandre Estrela 1 - © Nikolai Nech
Belén Uriel 3 - ©Nikolai Nekh
Belén Uriel 4 - ©Nikolai Nekh
Belén Uriel 1 - ©Nikolai Nekh
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Imagem de capa: Armário móvel. Intervenção de Von Calhau! no Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.  Foto: © Nikolai Nekh.

Segunda foto: Armanda Duarte, Baínha, 2014. Foto © Raquel Melgue. Imagens a seguir:  António Júlio Duarte e Sandro Aguilar, Criatura, 2021. Foto © Bruno Lopes; Sara Mealha, Tango, 2019. Foto © Bruno Lopes; Sara & André, Bum! Pum! Fogo! Crac! Bang, 2017. Foto © Raquel Melgue; Jérémy Pajeanc, MER Deurope / MERDEurope, 2016. Foto © Raquel Melgue; Nuno Henrique, Senciente, 2018. Foto © Raquel Melgue; Catarina Leitão, Biblioteca Natural, 2016. Foto © Raquel Melgue. 

Slideshows Armário Móvel: Gisela Casimiro, Em memória de mim. Átrio do Colégio das Artes, Coimbra. Fotos: © Victor Garcia;  Inês Brites, Com Licença, Maus Hábitos, Porto. Fotos © Rui Pinheiro;  Von Calhau!, PARTE DO MESMO DENTRO DO PRÓPRIO, Museu José Malhoa, Caldas da Rainha. Fotos © Nikolai Nekh ; Alexandre Estrela, Transparente ao som. Capela da Casa da Cerca, Almada. Fotos: © Nikolai Nekh; Belén Uriel, Panóplias. Museu Frei Manuel do Cenáculo, Évora. Fotos: © Nikolai Nekh. Luisa Cunha, Let’s start again. Regresso do Armário à casa mãe, Lisboa. Fotos: © Nikolai Nekh.

 

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