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Fernanda Fragateiro: Em Bruto; Relações Comoventes

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Catarina Rosendo

As relações improváveis entre materiais e acontecimentos

—Entrevista a Fernanda Fragateiro

 

A exposição de Fernanda Fragateiro patente no Centro Cultural de Belém foi originalmente concebida para a Fundación Cerezales Antonino y Cinia, em Léon, de onde partiu o convite para a artista desenvolver uma obra de raiz. Na sua adaptação aos espaços expositivos em Belém, a instalação Em bruto: Relações comoventes conta com novas obras, a supressão de outras e a reorganização espacial de todo o conjunto, e é acompanhada, como já acontecia em Espanha, de Materials Lab, um trabalho em curso que, desde 2015, tem vindo a ser acrescentado de novos elementos. Os constantes cruzamentos entre as artes visuais e a arquitectura que a obra de Fragateiro cria têm por base uma investigação continuada do papel dos modernismos novecentistas na conversão da dimensão utópica das vanguardas em melhorias de facto das condições de vida das populações, sobretudo nos contextos dos pós-guerras mundiais, bem como uma reabilitação das propostas de mulheres artistas, designers e arquitectas cujo trabalho foi apagado da história ou insuficientemente valorizado. Os trabalhos agora apresentados prosseguem estes interesses há muito explorados pela artista, desenvolvidos a partir de uma atenção espacial aos lugares para onde as obras são feitas, a busca por um tipo de intervenção artística que busque soluções para problemas espaciais ou funcionais preexistentes, a criação de processos colaborativos com o espectador ou outras entidades e a realização de objectos que, apesar da sua aparência minimal e reificada, estão abertos a todas as alterações e recombinações consoante a sua nova circunstância de apresentação assim o sugerir. A artista falou, de todos estes aspectos, à Contemporânea, no pequeno jardim do seu amplo e claro atelier nos Olivais, em Lisboa, a cidade onde vive.

 

Catarina Rosendo (CR): A exposição que apresentas, neste momento, no Centro Cultural de Belém já tinha sido mostrada na Fundación Cerezales no ano passado. Tratou-se de um convite para desenvolveres um trabalho para lá ou apresentastes obras em que já estavas a trabalhar?

 

Fernanda Fragateiro (FF): A Fundación Cerezales interessou-se pela obra Materials Lab, que constitui o primeiro núcleo da exposição e que consiste num processo de transformação de uma série de materiais de pesquisa em obras de arte, coisas que eram materiais de arquivo, referências a outras obras, restos, materiais em bruto a partir dos quais eu encontrei uma forma de fazer o espectador entrar dentro da minha prática, de ver através das minhas obras.

 

CR: Esses materiais começaram por fazer parte de um workshop que fizeste na Universidade de Harvard, em 2015.

 

FF: Sim. E nasceram de forma muito espontânea, para resolver o problema de como falar da importância da pesquisa no meu trabalho como escultora, em contexto universitário. O seminário fazia parte de uma série de encontros que o Harvard Art Museums estava a organizar com vários artistas sobre a importância da pesquisa no seu trabalho. O mais normal seria ir com o meu ficheiro digital de diapositivos e falar sobre as minhas obras e sobre as referências importantes para mim.

 

CR: Porque é que não o fizeste?

 

FF: Porque achei essa ideia pouco estimulante. E também porque o meu seminário ia acontecer no Materials Lab de Harvard, um laboratório de materiais que pesquisa técnicas de restauro inovadoras e experimentais. Inventaram uma forma de restaurar as Harvard Paintings, umas pinturas murais do Rothko que tinham perdido a cor. Em vez de seguirem o processo tradicional de restauro, fizeram um trabalho com luz, em que a cor passou a ser projetada sobre as pinturas. Ou seja, não tocaram no original, que envelheceu e perdeu a cor e alterou-se. Aquela transformação operada pela luz devolve a cor original à obra, o que nos faz pensar sobre o que é verdadeiramente original ali. A partir desse restauro que é também uma pesquisa de materiais, pareceu-me importante levar qualquer coisa que fosse mais háptico, mais sensorial.

 

CR: Mais material?

 

FF: Mais material. Com restos de peças, maquetes, páginas de revistas, livros inteiros que foram importantes para o meu trabalho. Isso tudo foi organizado de uma forma sintética, mas através de um processo de composição. De uma forma pragmática percebi qual era o volume que podia levar no avião, as dimensões máximas de uma caixa e quantas caixas poderia levar. Construi então um conjunto de caixas de madeira e cada caixa correspondia a uma obra sobre a qual iria falar, cada uma com diferentes conteúdos e materiais. Numa havia barro, noutra terra, folhas, papel, fragmentos de demolições… foi uma experiência. E foi uma coisa muito bonita, o que surgiu do abrir das caixas, os materiais passarem de pessoa para pessoa, de se manipularem as coisas, e depois, no fim, a conversa com os alunos. Ao seminário e à conversa juntaram-se, sem que eu o tivesse previsto, vários curadores e a então directora do museu, surpreendidos com esta artista que chegou com uma grande caixa de madeira que ninguém sabia o que continha. Senti que as pessoas tinham conseguido atravessar o meu trabalho e esse contacto com as obras tinha gerado qualquer coisa que me interessou muito, o perceberem quais eram os temas, as preocupações, as causas, porque é que surgia uma escultura, aparentemente hermética, monocromática, geométrica, abstracta, perceberem as referências directas a um trabalho, a uma pessoa, a um acontecimento ou a um evento. Aquilo possibilitava que no mesmo espaço e ao mesmo tempo se criassem relações improváveis entre materiais e acontecimentos diversos.

 

CR: Os Materials Lab são uma espécie de arquivo de várias memórias e de vários processos implicados nos teus trabalhos.

 

FF: É isso. São documentação e pesquisa. São presença e ausência.

 

CR: Que depois se transformam em obra também, não é?

 

FF: Sim, foram transformados em obra, a pedido do espectador. Os materiais são meticulosamente organizados, através de duplas composições no espaço. São revelados, mas também são ocultados, porque são apresentados em caixas meio abertas e meio fechadas, há coisas que não se vêem na sua totalidade, só se vê uma palavra do título de um livro, por exemplo. É também uma construção poética que joga com o fragmento e a ruína.

O convite da Fundación Cerezales partiu daí. A equipa curatorial, a curadora-chefe Rosa Yaguez Juárez e o Alfredo Puente, curador da minha exposição, não estão muito interessados em mostrar a arte contemporânea de um ponto de vista mais formal e preferem práticas artísticas que envolvam pesquisa e construam pensamento e conhecimento. No caso deles, trabalham em comunhão com a comunidade e com o território onde estão, com a paisagem e a natureza. Não queriam uma exposição ”redonda”, com princípio, meio e fim, mas algo que pudesse ser um processo. Eles falam muito da ideia de caminhar, de procurar, encontrar, questionar, relacionar, envolver as pessoas, sem que as obras precisem de ficar fechadas, e viram nos Materials Lab e na forma como são expostos uma espécie de mapa, de paisagem, de espaço aberto que permite entrar dentro.

Mas o espaço expositivo em Cerezales é grande e não chegava mostrar apenas os Materials Lab. Eu andava a trabalhar numas ideias ligadas a uma vertente mais pedagógica, que partia do trabalho do Bruno Munari, mas a guerra na Ucrânia fez-me repensar todo o projecto, por dois motivos. Um deles é a brutalidade desta guerra. Senti que podíamos voltar a uma situação que me é familiar por causa dos meus estudos dos períodos das guerras e pós-guerras no século XX e dos artistas perseguidos durante a Segunda Guerra Mundial. Foi um grande choque ver os primeiros bombardeamentos das cidades ucranianas, e isso fez-me pensar no que é que nós, artistas, podemos fazer num momento de colapso como este.

O outro motivo foi estar a trabalhar numa obra para o Liceu Camões, durante uma reabilitação que é sempre um momento de grande convulsão, está tudo em transformação, partem-se partes do edifício, reconstroem-se outras, há trabalhadores por todo o lado, materiais por todo o lado. Tudo muito performativo. Fiquei inspirada pelo estaleiro de obra do Camões. Pensei em como é que um artista pode organizar materiais e preparar um terreno onde depois alguém, ou o próprio artista mais tarde, pode vir a construir algo usando aqueles materiais que já estão de certo modo preparados. É assim que nasce a obra para Cerezales, que é um estaleiro, uma espécie de composição, até com um lado musical quando se olha para a maquete, em que uma série de barrotes de madeiras estão preparados para uma construção em aberto.

 

CR: Uma construção por vir. Este trabalho, ao contrário do que costumas fazer, não está bem acabado: a tinta não está uniforme, a superfície da madeira tem falhas, há sujidade... Porque é que isso acontece?

 

FF: Estou também a regressar aos meus primeiros trabalhos, que tinham muito que ver com essa crueza de que falas. E é uma espécie de libertação, quase como sentir que posso continuar uma coisa que, de certo modo, foi interrompida.

 

CR: Referes-te à exposição que fizeste na Sala do Veado em 1990?

 

FF: Sim. Aí era uma coisa bastante bruta, embora também tivesse a delicadeza do desenho. Usei madeira e gesso em construções de grandes dimensões, tudo construído por mim porque trabalhava sozinha. Ou a minha primeira exposição, Instalação, que foi na Galeria Monumental em 1987, onde tudo foi construído com sobras de madeiras que fui buscar às Carpintarias de São Lázaro, que era uma carpintaria lindíssima. Já na altura essas construções, toscas e delicadas, eram muito arquitectónicas. Aliás, chumbei no terceiro ano do curso de Belas-Artes, porque já estava chumbada a Geometria Descritiva e não podia chumbar a mais nenhuma cadeira, mas o professor de Tecnologia de Madeiras, depois de eu ter feito essa instalação, achou-a muito mal feita porque não tinha encaixes de madeira, tinha pregos, e recusou-se a aceitá-la para a avaliação final. Eu não tinha usado encaixes porque queria uma coisa bruta que tivesse que ver com a ideia de autoconstrução de uma casa, em que se usam os materiais que existem e se constrói um abrigo com aquilo que se tem à mão.

O projecto feito para Cerezales retoma formas de fazer e ideias que ficaram interrompidas no meu trabalho durante muito tempo, contra a minha vontade, porque era impossível continuar a fazer aquele tipo de obras de grandes dimensões e efémeras. Nós, artistas mulheres, naquela altura não tínhamos qualquer hipótese.

 



 

CR: Já por várias vezes falaste da dificuldade que tiveste em abrir um espaço para poder fazer escultura.

 

FF: Era muito difícil. Quase impossível. Depois do tremendo esforço que foi produzir as duas exposições, na Monumental e na Faculdade de Ciências, foi muito difícil continuar. Não era convidada praticamente para nada. Tinha gasto todo o dinheiro que tinha e que não tinha nessas duas exposições, não tinha meios, fiquei grávida... Não havia museus, nem galerias, nem coleccionadores, nem curadores interessados no meu trabalho. A primeira pessoa que me convidou para fazer qualquer coisa onde eu pudesse voltar àquela escala foi a Isabel Carlos, para a Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura. Aí fiz um muro de 30 metros, também em madeira, com a linguagem dos tapumes, mas muito bem construído, havia verbas para a produção. Esse trabalho permitiu-me fazer o que eu queria fazer. Infelizmente, foi muito mal documentado. Portanto, em Cerezales acontece uma mistura, juntam-se muitas coisas que me interessam desde sempre: uma forte relação com as questões do espaço, em todas as suas dimensões.

 

CR: O título, Em Bruto: Relações Comoventes, vem de um capítulo do Vers une architecture de Le Corbusier e chama a atenção por causa do contraste entre as duas palavras, “bruto” e “comovente”. Porque o escolheste?

 

FF: O título vem do texto “Comum e Luminoso” que o arquitecto Joaquim Moreno escreveu sobre a exposição Processo que fiz para o Museu Internacional de Escultura de Santo Tirso, em 2018. Uma das obras produzidas para essa exposição foi feita durante a demolição do Bairro 6 de Maio, com os restos das demolições e em homenagem ao bairro. No seu texto, Moreno cita Le Corbusier: “L’architecture c’est, avec des matériaux bruts, établir des rapports émouvants”. É daqui que surge o meu título.

 

CR: E como foi adaptar a peça à sala do CCB, que é mais pequena e sem janelas? Como é que pensas a colocação das tuas obras noutros lugares que não aqueles para onde foram feitos originalmente?

 

FF: A Fundación Cerezales, embora não se veja, é uma construção toda em madeira, muito sustentável. Só perto das janelas é que se percebe a estrutura do edifício e a minha instalação brinca com isso. A paisagem entra pela sala, reflecte-se no chão e domina completamente o espaço. Por isso, em Cerezales, a instalação era muito mais etérea e fluida, convidava a um deambular mais doce, como se tudo estivesse suspenso.

No CCB, fui eu que escolhi aquele espaço, que é muito duro e sem beleza nenhuma. Gostei imenso de ver a exposição ali. Toda a obra se torna mais seca e crua, o espectador concentra-se mais nela e deslumbra-se menos com o espaço em redor. Aqui, foi importante abrir as clarabóias, que estavam tapadas. Esta era uma condição! A luz natural muda completamente o espaço e, neste caso, quando incide nas vigas de madeira criam-se linhas muito luminosas que se espalham e fazem aparecer um segundo desenho no espaço. Alterei a orientação dos cavaletes, que em Cerezales estavam paralelos uns aos outros e perpendiculares à janela do fundo, enquanto que, no CCB, crio linhas diagonais, que se torcem e geram uma tensão. Precisei também de lidar com o enorme pé direito e isso fez-me criar novas peças verticais que se agarram à parede. Por outro lado, não utilizei uma peça de parede que tinha mostrado lá, duas linhas diagonais feitas com pedra de talco. Na região existem muitas minas de talco, hoje desactivadas, que trouxerem muito emprego, mas também muita destruição àquele território. Visitei uma fábrica de talco abandonada, que está tal como quando foi encerrada e, hoje, passados 20 anos, está tudo coberto de pó de talco, o chão, as paredes, as vigas, os montinhos de pedras, os sacos com pós. Entrar naquele espaço todo branco foi uma experiência muito forte e esta floresta branca que eu trouxe para dentro da sala de exposições tem também um pouco que ver com essa experiência de caminhar entre o branco.

De qualquer modo, grande parte das minhas obras têm a condição de serem flexíveis, isso interessa-me imenso. Mesmo as esculturas mais pequenas estão sempre em processo, podem ser encolhidas, esticadas, penduradas, ficar no chão, horizontais, verticais. Trabalho muito com a possibilidade de alterar as peças. Para esta exposição tinha a ideia, desde o princípio, de que se a voltasse a mostrar, iria usar aqueles mesmos materiais e construir outras formas.

Na verdade, a ideia deste projecto é, um dia, transformar todo este material numa peça que gostaria de doar à escola do Bairro 6 de Maio. Quando o bairro foi demolido, só ficou activo o Centro Social, que funciona como escola pré-primária e dá apoio à população. Ficou a promessa de se construir uma escola nova para o bairro. Esta peça está fora do circuito comercial, não é para ser vendida. Quero reutilizar aquele material: pode ser para construir uma outra obra, que pode ser uma casa na árvore, pode ser um chão, um palco, uma parede, depende do que a escola precisar.

 

CR: Qualquer coisa que possa ser usado?

 

FF: Que possa ser usado e que seja útil. Até poderá resultar de uma colaboração. Esta é uma ideia ainda em aberto. Os materiais da obra vão ficar em depósito no CCB, para estarem salvaguardados até poderem ser reutilizados, um dia. De certo modo, isso fecha o ciclo da ideia de uma obra que é um estaleiro de materiais que está expectante até nova utilização.

Tenho sempre vontade de trabalhar de modo a que as minhas esculturas possam resolver um problema. Simplesmente, faço-o da forma que os artistas fazem, não como um arquitecto ou um designer fariam. Gosto de pensar que uma obra pode resolver um problema, ao contrário da maior parte dos artistas, que acham que a arte não serve para nada. Passo todos os dias no Vale de Chelas, que tem um descampado ao lado de um centro para os sem-abrigo. É um sítio tremendo, com as pessoas sentadas e deitadas no chão à espera que o centro abra, a meio da tarde. E sempre que lá passo penso como é que eu podia actuar naquele lugar de forma a torná-lo digno para as pessoas. Não seria mobiliário urbano, seria uma escultura que as pessoas pudessem usar. Tenho este desejo quase incontrolável, sobretudo na cidade, de querer resolver problemas. É por isso que poder reutilizar todo o material desta peça me interessa imenso.

 

CR: O teu interesse pela arquitectura modernista, sobretudo a do pós-guerra, entronca também nessa dimensão mais social, de intervenção directa no tecido da cidade, nos modos de circular e de viver.

 

FF: Sim. E nós, artistas, temos uma liberdade para fazer e intervir sem os constrangimentos e sem as normas que os arquitectos e os designers são obrigados a seguir. Quando nos sentamos num banco, o utilitário não é só sentar e descarregar o peso do corpo nele. É também como é que a pessoa se senta, para onde é que olha, quem se senta ao seu lado, como é que o corpo se relaciona com os materiais, com a dimensão do banco. Na Caixa para guardar o vazio [de 2005], isso foi muito importante: como é que uma obra de arte consegue também construir uma experiência de comunidade? E aí vamos outra vez às raízes do modernismo, que é a do desejo de construir um mundo melhor. Embora se diga que há uma falência do modernismo, eu acho que ainda há muita coisa por cumprir, com todas as revisões necessárias. Há muita coisa que foi pensada, mas que não foi feita, muitos problemas identificados que não foram solucionados.

 

CR: A dimensão projectiva, de se pensar em relação a um futuro, é uma das características do modernismo. E tu trabalhas muito a ideia de projecto. Fazes muitas maquetas, por exemplo, e esta obra que agora mostras no CCB é também a seu modo um projecto, é qualquer coisa que pode ainda vir a acontecer.

 

FF: Pensar o futuro encaixa-se bem com a linha de trabalho da Fundación Cerezales, que é um lugar que pensa e faz futuro. Recentemente fiz uma obra para Cáceres Abierto, um programa de intervenção no espaço público da cidade de Cáceres. Achei que, se era para fazer algo para o espaço urbano, então que levantasse um problema, que abordasse uma questão que levasse as pessoas a repensar a forma como vivem, neste caso, a cidade. Escolhi intervir numa rua onde arrancaram as árvores e pavimentaram todo o solo. Perguntei-me, “Mas é preciso um artista para ir dizer aos arquitectos e engenheiros responsáveis que aquilo hoje já não se pode fazer, pavimentar uma rua inteira, retirar sombra, fazer reflectir luz e calor, impermeabilizar o solo?” A minha proposta foi retirar uma parte do pavimento e deixar no seu lugar terra e plantas. Não aceitaram, claro. Mas isso levou a autarquia a pensar no problema e a pôr lá uma série de canteiros e de arbustos para minimizar aqueles efeitos.

Esse poder de alterar as coisas, que os artistas têm, interessa-me, por pouco que seja. Outro exemplo: estar num jantar muito formal com assessores de uma alta figura do Estado e trazer o feminismo ou o anti-racismo à conversa. Temos que ir abrindo pequenas brechas para as pessoas irem pensando nas coisas.

Se calhar um dos motivos pelos quais me interessa tanto o espaço urbano é porque as mulheres não desenharam nem construíram espaço público. Ou assim parece, porque na realidade as mulheres estiveram envolvidas em grandes projectos urbanísticos no século XX, mas esse trabalho ou foi apagado ou não foi relevado, e certamente não foi publicado. Há uma mulher, uma urbanista muito pouco mencionada, sobre a qual estou agora a trabalhar, a Lotte Stam-Beese. Foi a única mulher que estudou arquitectura na Bauhaus, durante um ano. Teve que sair da escola, porque era amante do Hannes Meyer e ele, por razões pessoais, pediu-lhe para abandonar a escola. Ela saiu, engravidou dele e, com um filho, mãe solteira, trabalhou na Rússia, antes e durante o Estaline, trabalhou na Ucrânia em grandes projectos de urbanismo e de habitação social. No pós-guerra, em Amesterdão e Roterdão, é uma das responsáveis pelo desenvolvimento urbano e pela reconstrução de grandes áreas das cidades. Ouvi falar dela pela primeira vez há muito pouco tempo e fiquei espantada. Esta mulher projectou uma quantidade de espaço, desenhou e pensou cidade na perspectiva de resolver o problema de casas para todos, com espaços verdes, jardins, com uma visão inclusiva que tinha em conta a vida dos mais velhos, das mulheres e das crianças; e é praticamente desconhecida.

 

CR: Isso faz-me lembrar o Jardim das Ondas, que fizeste para a Expo’98, que é mais um parque de recreação do que outra coisa. Isso já tem que ver com o teu desejo de fazer obras que possam ser apropriadas pelas pessoas?

 

FF: Sim. O recinto da Expo’98 era um espaço muito condicionado, muito dirigido, e o Jardim das Ondas nasceu em diálogo crítico com o projecto de arquitectura e do desejo de criar um espaço de liberdade. Quis criar um corpo, uma espécie de jardim-corpo, com o qual o nosso corpo se relacionasse directamente, sem intermediários, sem matérias duras, sem bancos, sem caminhos. Aliás, fui muito questionada pelo facto de não existirem caminhos dentro do jardim. O que é bonito no Jardim das Ondas é que ele foi feito para ser efémero, porque está num terreno demasiado valioso. Penso que havia o projecto de fazer ali um auditório para o Oceanário, mas a forma como as pessoas se apropriaram do espaço foi tão forte e com tanto amor, que ninguém teve coragem de o retirar dali. Houve problemas de conservação, quando ele passou para a gestão da Junta de Freguesia dos Olivais, que não tinha meios nem sabia como o manter. A comissão de moradores contactou-me porque queriam iniciar um processo de abaixo-assinados para a recuperação do jardim, o que acabou por acontecer com o patrocínio do Oceanário. É bonito quando são as pessoas que querem as obras, quando se envolvem e respondem a elas. E esse desejo que as pessoas têm, de que as coisas aconteçam, é uma força vital que é muito importante para o meu trabalho.

 

CR: As tuas esculturas, de um modo geral, funcionam com uma reflexão sobre a arquitectura, os espaços e o modo de os ocupar.

 

FF: Não sei se é por ter vivido desde muito pequena em frente ao rio Tejo, um lugar onde parece que nunca nada acontece, mas fiquei sempre muito interessada na relação do corpo com o espaço e com o vazio. Sempre me interessou a experiência de construir espaço com o meu corpo, conforme o movimento que o corpo faz na ocupação do espaço. Mas o espaço público, o espaço urbano, é o espaço de todos, e isto já é político, aí é possível ter uma acção mais democrática. Quando fiz a exposição Sala Sul, na Sala do Veado, em 1990, fi-lo porque quis intervir numa universidade onde nunca se tinha feito nada ao nível das artes visuais e escolhi a Faculdade de Ciências porque...

 

CR: Quer dizer que a tua exposição foi a primeira da Sala do Veado?

 

FF: Foi. Mas não foi na Sala do Veado, foi numa outra sala que se chamava Sala Sul. A faculdade tinha ardido cerca de dez anos antes, em 1978, e aquela sala era impressionante, com as amplas paredes rebocadas a cimento, cruas, sem estuque ou pintura. O incêndio do Chiado tinha sido há pouco tempo [em 1988] e havia a experiência colectiva de uma parte central da cidade em ruínas, esventrada, com a estrutura e o esqueleto à vista, tudo cinza. Para essa exposição na Sala Sul, fiz uma série de construções em gesso branco, como que casas tombadas, muros instáveis, tudo um pouco frágil.

 

CR: Mas onde entra a componente democrática da abordagem ao espaço nessa exposição?

 

FF: Escolhi a Faculdade de Ciências porque era um sítio de estudantes universitários, qualquer um que passasse à porta podia entrar e ver a exposição. Queria um sítio que não tivesse os constrangimentos das galerias e dos museus em Portugal na altura, que eram muito reservados e eu sentia que esse não era o meu mundo, interessava-me estar em contacto com toda a gente, sobretudo com jovens e estudantes, o que voltou a acontecer na Caixa para guardar o vazio. Sempre tive essa ligação a uma vertente mais pedagógica, sem seguir nenhum modelo, mais no sentido de me aproximar de pessoas que estão a aprender, a ganhar conhecimento, e partilhar o meu conhecimento e as minhas questões com eles.

 

CR: A teoria informa muito o teu trabalho, mas também a própria materialidade dos livros e das revistas, que desfazes, cortas, seccionas e incorporas dentro de esculturas. Outras vezes apresenta-los inteiros ou inteiras. Qual é o apelo que os objectos livro e revista têm para ti?

 

FF: Para mim eles são uma matéria de construção como outra qualquer. Vejo num tijolo ou numa pedra uma informação tão valiosa e profunda e variada como a que há num livro. Ou que há numa pintura. Uma pintura minimalista, monocromática, contém a mesma dimensão de informação que um livro, é só preciso atravessá-la. Um livro tem camadas. E quando é cortado, para lhe dar outra forma ou tamanho, quando se abre não se consegue ler tudo, muito desapareceu. Mas isso é a nossa vida e é a própria história, aquilo que sabemos é sempre só uma parte, estamos sempre a descobrir coisas que não sabíamos e a rever outras. O Rui Chafes costuma dizer-me, “Mas como é possível tu cortares livros? Isso não se faz!” Mas um livro cortado continua a ser uma grande fonte de informação. E mesmo que não seja cortado e fique fechado e não se consiga ler, a sua presença é o mistério e a beleza das bibliotecas. Quantos de nós abrimos apenas um décimo dos livros que temos nas estantes? Elas são uma paisagem, um muro, uma parede, uma construção que está nas nossas casas durante toda a nossa vida. São raras as pessoas que, quando mudam de casa, não levam consigo a sua biblioteca. As pessoas morrem e deixam grandes bibliotecas cheias de livros. Depois, ninguém sabe o que fazer com eles. Para mim uma biblioteca é uma construção, é uma parede de tijolo, e essa parede tem assunto, tem informação, tem história.

 

Fernanda Fragateiro

CCB: Centro Cultural de Belém

 

Catarina Rosendo [Lisboa, 1972] Historiadora da arte. Investigadora Integrada do Instituto de História da Arte [FCSH-UNL]. Desenvolveu, entre 2014 e 2017, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea [Almada]. Co-autora do filme sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar [2008]. Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio [ex aequo] da Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 [2007]. Actualmente, lecciona no Mestrado em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes — Universidade de Coimbra.

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico. 

 



Fernanda Fragateiro: Em Bruto; Relações Comoventes. Vistas da exposição no CCB: Centro Cultural de Belém. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia da artista e CCB: Centro Cultural de Belém.

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