25 / 32

Pablo Echaurren: La Révolution R.S.V.P.

Pablo Echaurren-7.jpg
Enzo Di Marino

 

 

Uma revolução impossível (hoje)

 

La Révolution R.S.V.P. é a primeira exposição individual do artista italiano Pablo Echaurren (Roma, 1951) em território português. Com apoio do Italian Council, um programa criado com o objetivo de promover a arte italiana além-fronteiras, esta exposição procura representar a prática complexa e heterogénea de um artista excecionalmente atípico. Através de um amplo conjunto de obras — algumas das quais apresentadas pela primeira vez — que se compõe de desenhos, pinturas, tecidos, jornais, magazines e outros materiais de arquivo, a mostra de Echaurren configura um relato da história da agitação cultural que se viveu em Itália na década de 1970 e que tentou propor, e não apenas impor, uma cultura diferente.

Os dois pisos da Galeria Zé dos Bois são assim invadidos por toda uma conjugação de signos que, como um rio a transbordar, assoberba o espectador, mergulhando-o num caos aparentemente desprovido de qualquer lógica. Não é assunto trivial, uma exposição monográfica de Pablo Echaurren; o confinar de uma prática tão elusiva a uma esquemática tão rígida e, por vezes, pedante poderia ser contraproducente. No entanto, os dois curadores parecem deixar de parte qualquer pretensão de se apresentar um conjunto unitário, total, exaustivo, coerente da obra do artista, destacando antes alguns aspetos que caracterizam a prática e o pensamento de Echaurren. Entre eles, inclui-se um forte potencial revolucionário, uma espécie de tentativa obsessiva de escapar do jugo de um sistema pré-estabelecido e pré-definido, com vista a criar uma alternativa possível. Em tempos idos, ter-se-ia definido esta tendência como "vanguardista", mas, considerando tanto o artista como o contexto social, político e histórico a que nos referimos, podemos tranquilamente recorrer ao termo "revolução".

Logo nas primeiras salas, começa-se a desenhar uma personagem incansável. Rejeitando participar na lógica do sistema da arte, Pablo Echaurren decide, em 1977, abandonar a sua carreira artística. Junta-se então ao movimento dos Indiani Metropolitani, a ala criativa e sardónica do Movimento de 1977, que pretendia desvelar os mecanismos através dos quais o poder vigente manipulava a política e a comunicação social para gerar consenso. Nessa época, Echaurren trabalha sobretudo no campo da ilustração e da banda desenhada, chegando inclusivamente a publicar algumas fanzines, como Oak?!, e il Complotto di Zurigo, e a assinar bandas desenhadas para os jornais mais icónicos dos movimentos políticos italianos de esquerda, como Lotta Continua.

Ainda antes de se juntar ao movimento, Echaurren já parece olhar para a banda desenhada como um instrumento de liberdade. Não obstante as "grandes artes figurativas", a banda desenhada é vista sobremaneira na altura como uma arte "menor", uma expressão superficial de baixa cultura. Contudo, é exatamente este gesto minimal, leve, que fascina o artista; e Echaurren, por sua vez, conjuntamente com os seus pares, começa a usar o desenho humorístico enquanto forma de dissidência política. As copiosas possibilidades que este medium oferece permitem a uma geração inteira ensaiar uma ideia atípica, alógica, irracional e antagonística de cultura: ao imitar as estruturas clássicas da racionalidade ocidental (no caso de Echaurren, a grelha e os sistemas de classificação científica), estes artistas procuram extravasar a rigidez deste esquema, abrindo-o a novas significações. Com efeito, tentou-se construir os alicerces de uma efetiva contracultura.

Esta tendência é particularmente evidente nos chamados quadratini (1970–1976), que vemos na terceira sala do primeiro piso da ZDB. Embora se assemelhem a estudos classificativos reais, comportando ilustrações excecionalmente precisas e detalhadas, na verdade estes trabalhos não parecem analisar ou estudar coisa nenhuma. Após toda uma sucessão de variações do mesmo tema, só no fim surge um título irónico que nos deixa um sorriso amargo no rosto. Observando as crateras lunares, as ilhas, os dinossauros, as folhas e as flores, todas as figuras meticulosamente reproduzidas nestes quadradinhos, conseguimos identificar uma ordem de leitura, a codificação chama-nos a atenção, e tudo parece óbvio! Porém, o significado parece eludir-nos: numa espécie de experiência dadaísta, a linguagem empregue por Echaurren nestas peças, mas também em muitas outras obras, aparenta esquivar-se a algum significado predeterminado. Jogando antes com a racionalidade das estruturas através das quais, por norma, captamos e entendemos a realidade, o artista desfaz as nossas crenças e, com ironia, convida-nos a ir além das fronteiras do senso comum.

"Damned Metropolitan Indians, it’s impossible to understand a damn thing you're saying" [Que raio, Indianos Metropolitanos, é impossível perceber o que caraças estão para aí a dizer], exclama o cobói encurralado pelos indígenas norte-americanos no trabalho homónimo. E é precisamente este sentimento que assola o espectador diante das "vitrines" que classificam pequenos desenhos e diversos objetos quotidianos, e também diante das representações da bachelor machine de Duchamp e Picabia, que, provavelmente com alguma avaria, vertem e borrifam líquido vermelho.

No entanto, em aceitando o convite de Pablo, conseguimos reparar numa espécie de fio condutor que interliga todas as obras presentes na exposição, incluindo até as mais recentes, já sobre tela. Também se evidencia uma obstinada falta de comunicabilidade nas pinturas de Echaurren: pinturas que suscitam uma especial estranheza, que se compõem de inscrições, que não são bem pinturas, que são definitivamente contrapinturas. Ainda conseguimos discernir o código com clareza: as inscrições, como que graffitis nas paredes, falam-nos de dissidência. Porém, agora, o antagonismo parece subsumir-se, e, particularmente em peças como Dolce stil provo, 2015, e Io, io & d'Io, 2017, notamos que as letras, individualmente, se congregam num conjunto de formas. Embora ainda pudessem dizer tudo, deixam-nos sem coisa alguma para dizer. O artista continua a jogar com uma construção anárquica de sentidos pessoais, parciais e indefinidos: mais uma vez, Echaurren deixa-nos sozinhos, diante de um sem-número de possibilidades, com um sorriso aturdido nos nossos rostos.

E seguimos pela exposição, cambaleando por entre bandas desenhadas que se tornam padrões sobre tecidos suaves e desenhos que nos ensinam a medir um Homo sapiens, até que nos deparamos com uma outra pintura, intitulada Caino e Babele/Lingue moribonde e lingue viventi, 2016. Como quando acordamos de um sono profundo, tudo parece voltar; os clássicos balões de fala estão agora vazios; e vê-se um líquido a gotejar, como se fosse sangue. Algo ou alguém foi assassinado. Com efeito, cometeu-se um homicídio, e a revolução provavelmente morreu!

Olhando novamente para todos estes fragmentos, espalhados aqui e ali, e integrando-os numa perspetiva mais contemporânea que renuncia a algum fascínio infantil por épocas idas, Pablo Echaurren parece sugerir que as ferramentas que ainda hoje consideramos essenciais para a construção de uma alternativa são na verdade totalmente ineficazes. O fervilhar de um antagonismo generalizado, as constantes incompatibilidades e as pequenas revoluções levadas a cabo em nome de um bem maior — todos os elementos se desenovelam através de gestos de anacronismo e nostalgia. Absorvidas pelo sistema que pretendem combater, estas ações ficam confinadas às salas dos museus.

Como Alfredo Jaar escreveu em néon, "Abbiamo tanto amato la rivoluzione" [Amámo-la tanto, a revolução]. E, honestamente, fico com a sensação de que, se a deixarmos morrer desta forma, se calhar não era amor verdadeiro!

 

Pablo Echaurren

ZDB: Galeria Zé dos Bois

 

Enzo di Marino [Vincenzo Di Marino] é um curador Italiano, sediado em Nápoles. Em 2018, co-fundou o projecto curatorial Bite The Saurus. Colaborou com a Fundação Prada, Milão; Museu Madre, Nápoles, entre outras. Em 2019-2020 foi curador assistente no MAAT. 

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro

 





 

Pablo Echaurren: La Révolution R.S.V.P. Vistas da exposição na ZDB: Galeria Zé dos Bois, Lisboa, 2023.  Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e ZDB: Galeria Zé dos Bois.

Voltar ao topo