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The Listening Biennial

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Paula Ferreira

 

Dentre os batentes de alumínio das janelas, raios solares se dissipam pela sala, consumindo a superfície muito branca das paredes e colunas com sua presença luminosa. Refletem no chão de pedra clara, uniformizando a iluminação do espaço povoado pela ausência do visível. No centro, repousam apenas dois relevos que parecem nascer do piso: dois bancos que convidam o público a demorar-se. Do privilégio de estar situada em um dos edifícios mais bem-aventurados na relação entre exterior e interior, em Lisboa, vem a ideia de que a galeria Quadrum foi uma feliz escolha para receber uma exposição em que não há nenhuma presença visual. Em The Listening Biennial, o próprio prédio da galeria se transmuta em escultura e acolhe, em seu interior, obras que são inteiramente sonoras. Neste lugar limítrofe entre o seu interior e os jardins que a circunscrevem, os batentes de alumínio parecem desaparecer, deixando o vívido verde e o jogo de luz e sombra que o correr do dia oferece adentrarem o espaço expositivo.

É nesse cenário, privilegiado pela própria arquitetura da galeria Quadrum, que habita uma sinuosa paisagem sonora criada a partir de trechos, de até quinze minutos, de todos os trabalhos que integram a segunda edição da bienal. Assente na ideia da escuta enquanto origem de práticas criativas e metodologia de pesquisa e trabalho, The Listening Biennial é um projeto transcontinental e contínuo, do diretor artístico Brandon Labelle, no qual artistas e curadores são convidados a criar uma programação que atravessa territórios geográficos e disciplinares. Nesta edição, Luísa Santos, Guely Morato, Dayang Yraola e Rayya Badran são as curadoras convidadas a pensar a mostra que acontece simultaneamente em diversos países e instituições e traz um conjunto de trabalhos em áudio, performances experimentais e conversas. Através da ideia de “partilha, reciprocidade, troca e mutualidade”[1], reafirmam o interesse e a necessidade em pensar as ecologias da atenção no contexto contemporâneo. A exposição homônima do projeto, patente até o próximo dia 8 de agosto, encontra nesses ideais uma maneira de convidar o público à pausa e à permanência.

Na ampla e desabitada sala expositiva, se escondem, junto ao topo dos pilares de sustentação do edifício, quatro pequenas caixas sonoras. Das mesmas, ecoam os trabalhos em um fluxo quase ininterrupto — os únicos breves silêncios são logo preenchidos pelas vozes dos artistas a apresentarem a si mesmos e às obras. O espaço sensível da exposição se circunscreve na relação de captura que o som produz em relação aos visitantes — em uma experiência intensamente sensorial e reflexiva. Por vezes, o público se torna testemunha dos sussurros inaudíveis dos seres microscópicos que comunicam uns aos outros, em uma conversa cuja linguagem só se pode alcançar pela imaginação e pela especulação[2]. Em outras alturas, um vórtice de traumas da infância se projeta em sons estridentes, entrecortados pelo barulho de antigas portas de madeira rangendo, em uma montagem capaz de amplificar e quase materializar o imaginário sonoro dos filmes de terror[3]. A seguir, um antídoto a esse estado de medo se apresenta na forma de uma voz calma que, imersa em uma intrincada paisagem sonora, narra uma saga à procura das ideias individuais que ressoam nos outros e ecoam de volta, originando uma ideia de voz coletiva[4]. Ao longe, um novo momento surge na escuta de uma lavoura histórica que ambienta uma comunicação inter-espécie, que une os animais aos homens — os quais, pela yunta[5], constróem a sua linguagem comum[6].

 

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Na confluência de trabalhos sonoros tão heterogêneos, a ideia de linearidade se faz abstrata. Ao habitarem territórios distantes, eles criam a possibilidade para relações radicalmente opostas serem estabelecidas com o público. Como uma trilha sonora a ressoar no fundo do pensamento, o olhar pode se perder pela janela afora: no jardim, duas crianças jogam com uma bola vermelha, atravessando as sombras formadas pela incidência solar nos troncos e nas folhas das árvores. Em um instante, a cena se fixa na retina. Tal imagem se prolonga na memória, fazendo o jogo pueril se reproduzir visualmente pelo tempo que durar a paisagem sonora que ecoa na galeria — ainda que lá fora já não haja mais crianças a jogar. Mecânica e involuntariamente, os ouvidos captam o som, ainda que ele se dilua e se transforme nesse ruído quase silencioso e apenas discretamente presente nas paredes do pensamento.

Algo de misterioso acontece na distância entre ouvir e escutar. O primeiro se refere a um processo fisiológico e involuntário — as ondas sonoras viajam pelo espaço até os pequeninos ossos dos ouvidos que as recebem, traduzem e amplificam as informações que, então, são processadas pelo cérebro. O segundo, por sua vez, se refere a uma capacidade relacional e voluntária[7]. Ambos não são processos análogos, da mesma maneira que o olhar e o ver não o são. Escutar implica prestar atenção[8]. E, por essa perspectiva, a escuta se transforma em uma categoria intrinsecamente filosófica, potencialmente política e veemente anti-mecanicista.

Ao escrever a partir de sua própria experiência em um workshop de Deep Listening[9], a artista e pesquisadora Emily Pothast faz uma curiosa descrição sobre o processo de escuta que contrapõe as respostas psicossociais de quando se ouve algo que soa familiar à de ouvir o desconhecido. Segundo ela, o familiar reflete na identificação daquilo que se ouve com os sentimentos resguardados pela memória, enquanto o desconhecido é propício a gerar uma possível rejeição ou desagrado. Por sua vez, um “ouvido treinado” sabe confrontar esse instinto de rejeição ao desconhecido ou a tentativa de projetar nele uma busca por fragmentos cognoscíveis, e reconhece esse encontro como uma possibilidade de aprendizagem. A segunda relação que se pode criar entre o público e os trabalhos da exposição, diametralmente oposta à primeira, parte do mesmo princípio de que fala Pothast. É preciso, para além de tal “ouvido treinado”, reconhecer no embate com o não-familiar uma oportunidade para aprender novas maneiras de comunicação com os sons ao redor.

Tal exercício se situa à margem da lógica de consumo rápido e imediato que é sintomática não apenas da sociedade contemporânea, mas também da forma que muitas instituições culturais e museológicas tendem a funcionar. Talvez por isso, pedir ao público que abdique do hábito de exaurir rapidamente as possibilidades de leitura e experiência artísticas seja a mais árdua proposta de The Listening Biennial — o que incita a ideia de que talvez a mostra precise explorar ainda mais os seus formatos expositivos a fim de melhor aceder ao público. Mas, apesar dessa ressalva, interessa aqui apontar para uma das infinitas possibilidades que se cria justamente quando a segunda relação é a que se estabelece.

A História contada através de uma perspectiva unilateral é, talvez, uma das piores heranças coloniais. Uma possível maneira de romper com essa tradição, como aponta a artista e pesquisadora Daniela Medina Poch em seu texto que integra a primeira publicação impressa da bienal, intitulado The Land of Thunder and Lightning[10], pode ser através da escuta — enquanto lugar de atenção, generosidade e cuidado. A escuta enquanto espaço para múltiplas vozes — que, ao ganharem espaço para serem ouvidas, desmontam as narrativas unilaterais. O pensamento que Poch desenvolve em seu texto explica o potencial profundamente político contido no ato de, solidariamente, escutar.

Quando um zumbido contínuo e grave que, aos poucos, inunda a cabeça e anuvia os pensamentos é ouvido, e, distante, o barulho incômodo das usinas eólicas construídas no Istmo de Tehuantepec (Oaxaca, México) causa uma invasão sonora nas vidas dos habitantes das redondezas, narrativa sonora e testemunho se tornam uma mesma coisa. Viento Sagrado, de Griselda Sánchez, é capaz de, nessa união, trazer para primeiro plano aquilo que verdadeiramente deve ser ouvido: as vozes das pessoas que são afetadas pelos empreendimentos do pseudo-progresso. Em 10,000 Simple Steps to Perfectly Draw an Arabian Horse, de Hasan Hujairi, um audio manual de como desenhar perfeitamente um cavalo árabe, explicado por uma criança, é interrompido por cítaras e ruídos agudos. Caso contrário, a explicação levaria à perfeita execução do desenho? Se não é possível ouví-la, há que existir outra maneira de ensinar a lição. Entretanto, devem as disciplinas das instituições de ensino artístico ser seguidas cegamente? Estão elas adequadas à realidade prática de seus contextos? É a escuta o campo de batalha a ser conquistado para fazer surgir novas pedagogias?

Destacar esses dois exemplos, notavelmente díspares, é uma forma de ilustrar aquilo que talvez seja o mais frutuoso contributo da exposição: estabelecer a escuta enquanto força motriz para necessárias mudanças em relação à postura adotada na percepção e, consequentemente, na ação de cada indivíduo sobre aquilo que o cerca. Entendê-la enquanto espaço de acolhimento e reconhecimento de vozes, humanas e não-humanas, que têm sido costumeiramente silenciadas. É por acreditar nessa potência contida no ato de escutar que The Listening Biennial coleta, em vários recantos pelo mundo, histórias de artistas que trabalham dedicadamente à procura de tais vozes.

 

 

The Listening Biennial

Galeria Quadrum 

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Seu trabalho se desenvolve maioritariamente em uma pesquisa sobre formas de criação de espaços de diálogos e debates.

 

 

 

Nota da autora: Este texto se restringe à crítica da exposição The Listening Biennial, patente na Galeria Quadrum, a qual integra a vasta programação do projeto homônimo. O mesmo envolve uma série de performances, exposições e eventos discursivos que decorrem em Lisboa e em vários países além de Portugal.

 

 

Este texto foi escrito em português do Brasil.

 

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The Listening Biennial. Sequência de imagens: imagem de capa e primeiro slideshow: Vistas da bienal na Galeria Quadrum/Galerias Municipais de Lisboa/EGEAC. Fotos: Arthur Molard. Segundo slideshow: Vistas da bienal na Brotéria. Vistas da bienal na Galeria Antecâmara. Fotos: Catarina Esteves. Cortesia de The Listening Biennial.

 

 

Notas:

 

[1] “Pensada como um projeto coletivo e colaborativo que assenta na partilha, na reciprocidade, na troca e na mutualidade, a segunda edição da Bienal contempla a exposição de 27 trabalhos artísticos em áudio — peças integralmente sonoras, sem qualquer presença visual ou física —, performances experimentais e eventos discursivos apresentados numa constelação de instituições em vários países em simultâneo, onde a escuta e a localidade são acentuadas, e as especificidades culturais contribuem para uma maior ecologia da atenção.” Folha de sala exposição The Listening Biennial.

 

[2] Referência ao trabalho The Great Succession, pela dupla Landra (Sara Rodrigues e Rodrigo Camacho).

 

[3]  Referência ao trabalho Scoring Fear, por Aia Atoui.

 

[4] Referência ao trabalho NEVER BE NO VOICE, por Mamoru.

 

[5] "Yunta" se refere a uma junta ou par de animais de carga ou tração, geralmente bois ou cavalos, que trabalham em conjunto puxando arados ou outros equipamentos agrícolas. Esses animais são treinados para trabalhar em sincronia, formando uma equipe para auxiliar nas atividades agrícolas.

 

[6] Referência ao trabalho Rimarispa Wakaswan, por Lucia Herbas Cordero.

 

[7] Pioneira nos estudos sobre a escuta atenta, Pauline Oliveros desenvolveu metodologias de ensino e workshops de Deep Listening ao longo de sua pesquisa. Nos mesmos, é explorada a diferença entre a natureza involuntária de ouvir e a natureza voluntária e seletiva de escutar.

 

[8] Destaco aqui a utilização do verbo “prestar”, como o equivalente ao “pay” em inglês, e as limitações linguísticas que podem surgir ao repensar os termos. Como sugere o texto original da segunda edição da The Listening Biennial, na língua inglesa, faz sentido substituir o “pay” pelo “give” (dar) quando se fala sobre a escuta atenta.

 

[9] Constructive Notice, Emily Pothast. Disponível em: The Wire, edição Agosto de 2018.

 

[10] Em The Land of Thunder and Lightning, Daniela Medina Poch, poética e também didaticamente, explora a relação entre a potência política da escuta e a exploração neoliberal dos recursos naturais levada a cabo pelos países considerados desenvolvidos (lê-se: o norte global) em detrimento das condições de vida e manutenção da tradição, do direito à terra e dos ecossistemas do sul global. Disponível aqui.

 

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